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Enquanto a ciência visava à descoberta dos mecanismos da natureza, e mais recentemente das relações/organizações sociais, tornava-se, cada vez mais especializada em disciplinas, sub-disciplinas, até reduzir ao máximo seu objeto de estudo, isolando-o da realidade que o cerca. Neste sentido, o cientista moderno entende seu foco de estudo como objeto externo a ele e aos outros fatores que podem modificá-lo, até o ponto que este objeto de pesquisa perde-se nas relações que o estabeleceram daquela maneira e torna-se uma parte da realidade. Desta forma, a ciência fragmentada e reducionista passou a ser incapaz explicar o real.

Levando em consideração este alarme, sabe-se que a forma de interpretar o real, a partir da origem do raciocínio científico, trilhou o caminho do recorte, da ramificação do conhecimento. Movimento este que possibilitou o crescimento fabuloso da produção de conhecimento nos últimos séculos, quantitativa e qualitativamente, ao passo que, ao definir um ou outro recorte as ciências autonomizaram-se e ganharam identidades, legitimidades próprias. (GALLO, 2001).

Com este instrumental, tornou-se impossível observar/analisar todos os fatos e fenômenos de uma única vez. E, por não conseguir abarcar toda a realidade, Morin (1990) aponta para duas das deficiências características deste “paradigma da simplicidade”: a disjunção (que separa o que está ligado substancialmente) e a redução (que minimiza a complexidade dos fenômenos). A disjunção e a redução soam ainda mais perniciosas na medida em que se entende a fragmentação do conhecimento como um exercício de poder, pois no contexto de uma sociedade pautada nas desigualdades do conhecimento, “fragmentar os saberes, é uma forma de fragmentação dos poderes” (GALLO, 2001, p.18).

Fragmentada, a realidade tornou-se incognoscível para racionalidades reducionistas, organizadas em disciplinas especializadas.

As incertezas geradas pelo isolamento exacerbado dos objetos de pesquisa e consequentemente das áreas disciplinares permitiram que cientistas e intelectuais começassem a questionar o método racional cartesiano e o positivismo como forma de produzir conhecimento. Movimento registrado por Gallo, 2001:

Se a especialização conseguiu, num primeiro momento, responder aos problemas humanos e à sede de saber científico, em fins do século XIX e no início do século XX ela começa a apresentar desgastes, e foi com a mais antiga das ciências modernas, a física, que os desgastes começaram a aparecer. No interior de uma ciência baseada na perfeição do universo, na precisão das medidas e na certeza das previsões, apareceram os princípios da indeterminação, da incerteza, da relatividade. Problemas que já não podiam mais ser resolvidos pela especialidade de uma única ciência começaram a aparecer: um acidente ecológico remete para a biologia, a química, a física, a geografia, a política. (p. 18)

A condição da incerteza trouxe para a discussão científica a possibilidade de compreender um objeto a partir de suas relações com diferentes variáveis, sem tentar enquadrá-lo dentro de leis gerais ou postulados. Já à perspectiva da Complexidade coube incluir no debate a característica do dinamismo das relações, do acaso, da desordem, do caos. As noções de imprevisibilidade, de impossibilidade da compreensão da totalidade, pois “a soma das partes não pode mais ser considerada como a totalidade”, já que nenhuma disciplina é capaz de abarcá-la, começaram a fazer parte, gradualmente, do saber científico. (WATANABE- CARAMELLO, 2012).

Almejando, então, superar as falhas do paradigma da Modernidade, novas teorias científicas e de outros sistemas de conhecimento começaram a conviver, e colaborar, com a Ciência Moderna. No intuito de demonstrar a existência de abordagens complementares à Ciência Moderna serão apresentadas características gerais do modelo de conhecimento multirreferencial e da teoria da Complexidade.

2.6.1 Sobre as formas de conhecer o mundo

Observam-se dois sistemas de trabalhar/produzir/organizar o conhecimento sobre a realidade que pretendem complementar e “preencher lacunas” da abordagem tradicional19 do conhecimento moderno e da disciplinaridade: As abordagens complexas e a multirreferencial.

“A disciplinarização está, pois, na origem da constituição da ciência tal como a conhecemos hoje” (GALLO, 2001, p. 1). Fróes-Burnhám (2003) complementa, ao explicar sua ideia de disciplinaridade, pode ser compreendida como “a progressiva exploração científica especializada numa certa área ou domínio homogêneo de estudo, isto é, a utilização de estratégias de organização histórico-industrial da ciência” (p.12).

Entretanto, é importante que se tenha bem delineado que a disciplinaridade não se remete somente a questão científica, pois como adverte Gallo (2001, p. 3), exemplificando a questão da ambiguidade do termo “disciplina” com seu uso escolar:

A palavra disciplina é ambígua, e não podemos ser ingênuos a ponto de pensar que essa ambiguidade se dá por acaso. Ao mesmo tempo em que denota uma área específica de saber, disciplina também denota a rigidez da resposta ao exercício de um poder, seja de outro sobre mim, seja de mim sobre mim mesmo. Dizer que a escola é disciplinar, portanto, significa dizer que ela é o espaço do aprendizado de saberes, por um lado, e que é o lugar do aprendizado do autocontrole, por outro lado (Idem, p. 3, grifo nosso).

No intuito de problematizar ou até superar as contradições da disciplinaridade, entende-se por “abordagem multirreferencial”:

À medida que pretende assegurar a complexidade tais fenômenos, pressupõe a conjugação de uma série de abordagens, disciplinas etc. de tal forma que elas não se reduzam umas às outras e nos levem a um tipo de conhecimento que se diferencia daquele que é concebido na ótica do cartesianismo e do positivismo, caracterizando- se, principalmente, pela pluralidade e heterogeneidade. (MARTINS, 2004, p. 85)

Desta maneira, a Multirreferencialidade e a Complexidade são abordagens de pensamento, e opções epistemológicas muito próximas, como defende Martins (2004): “a noção de multirreferencialidade está estreitamente relacionada com a noção de complexidade,

19 “[...] aquela cujos pressupostos vinculam-se ao racionalismo cartesiano ou ao positivismo que tem como

perspectiva “recortar” o real, decompô-lo em elementos cada vez mais simples, cada vez mais fundamentais”.

no sentido que Edgar Morin lhe confere.” (MARTINS, 2004, p. 88). A semelhança está na forma de analisar, conhecer, interpretar o tema de estudo do pesquisador. “[...] para Morin, assim como para Ardoino, a complexidade não está no objeto, mas no olhar de que o pesquisador se utiliza para estudar, na maneira que ele aborda os fenômenos” (Idem, p. 89).

Quando o fenômeno que pretende ser estudado situa-se no campo ambiental, devido sua propriedade complexa, os pensadores “esbarram” em insucessos ao utilizar-se de métodos e teorias disciplinares, isto é, mesmo quando há a intenção de realizar estudos e práticas multi- ou interdisciplinares. Para Fróes-Burnhám (2003, p. 14)

[...] quando se pretende trabalhar na pesquisa em educação ambiental, que por sua própria natureza não se pode contentar com abordagens disciplinares e hegemonicamente científicas, já que envolve aspectos profundamente enraizados nas culturas locais, nos saberes do cotidiano, no conhecimento específico de grupos sociais diferenciados.

Ao tratar-se da pesquisa no campo da Educação Ambiental (EA) os limites da disciplinaridade tornam-se claros, quando há interesse de se refletir sobre o que é o meio ambiente e o processo educativo, e suas relações. Ambos não podem ser explicados por uma área do conhecimento somente, como foi delimitado pelo conceito complexo de meio ambiente proposto por Leff (2001). Este autor, inspirado pela perspectiva da complexidade ambiental, propõe o repensar da forma de conceber o meio ambiente, sendo que “o ambiente não é a ecologia, é a complexidade do mundo, é um saber sobre as formas de apropriação do mundo, e da natureza através das relações de poder que se inscreveram nas formas dominantes de conhecimento” (LEFF, 2001, p.2).

No campo da pesquisa em Educação Ambiental, a prática da investigação, cada vez mais, passou a interessar-se pelas referencialidades, pelo saber local, pelos mitos de comunidades, por saberes diferenciados daqueles estritamente científicos produzidos dentro da academia, com o intuito de minimizar a relação dicotômica moderna entre sociedade- natureza.

Fróes-Burnhám (2003) vai além e aponta para uma impossibilidade da prática de pesquisa em Educação Ambiental inserida no contexto disciplinar:

Considerando a educação ambiental como um campo de (in) formação próprio para a articulação de diversos saberes, de modo que tal formação possa sair dos padrões compartimentados e se ampliar num diálogo plural, é que propomos uma reflexão sobre perspectivas epistemológicas que visam sugerir alternativas para superar/minimizar a costumeira fragmentação disciplinar do conhecimento. (p. 14)

Neste sentido, quando se trata de conhecimentos sobre a educação e sobre o meio- ambiente pode-se fundamentar a opinião de que não há razão apriorística que justifique a escolha de uma forma de conhecimento sobre outra qualquer. Esta é a concepção dos

partidários ao sistema de conhecimento multirreferencial, o qual abarca mais saberes do que somente o científico, sem desqualificar ou supervalorizar uns em detrimento de outros.

Esta perspectiva foi fundamentada por Jacques Ardoino, e dela é adepta Froés- Burnham, quem sintetiza as finalidades do sistema de conhecimento da Multirreferencialidade:

uma reflexão sobre a prática, a Multirreferencialidade não tem intenção de integrar conhecimentos, de propor complementaridade ou aditividade, entre campos diversos. Ao invés, procura afirmar a impossibilidade de um único ponto de vista que abarque todos os demais – assumindo que quanto mais se conhece, mais se cria áreas de não-saber –; também postula o luto do saber total (FAGUNDES E FRÓES BURNHAM, 2001 apud FRÓES BURNHÁM, 2003, p. 16)

As características-chave da Multirreferencialidade dialogam de forma similar às da teoria da Complexidade, porque ambas as abordagens concentram o processo de conhecimento no foco nas relações intersubjetivas entre sujeito e objeto, pesquisador e objeto de análise no intuito de superar algumas limitações que o conhecimento moderno disciplinar encontrou.

Para conhecer a perspectiva da Complexidade, devem-se considerar as contribuições de Edgard Morin (1990), principal referência da teoria no campo da Filosofia, e de Enrique Leff (2001), na temática ambiental.

Morin (1990) destaca os princípios de sua teoria, exemplificados por uma indústria de tecelagem. O primeiro é que “um todo é mais do que a soma das partes que o constituem”, no exemplo, a tapeçaria é mais do que a soma dos materiais a constituem; “o todo é então menor que a soma das partes”, no exemplo, o tecido também esconde características originais do fio; então, “o todo é simultaneamente mais e menos que a soma das partes” dependendo da forma que é enfocado. A partir desta metáfora, o autor define que a Complexidade está fundamentada nos princípios dialógico, recursivo e holográfico. Ou seja, o todo e as partes não são preponderantes um ao outro, eles se complementam em um processo dialógico, no qual o movimento é recursivo – a parte e o todo são causas e consequências um do outro, e sua representação é holográfica, no sentido, de que a parte constitui o todo e vice-versa.

Leff (2001) insere-se na temática ambiental a partir da teoria da Complexidade, e com este referencial contribui para o campo da pesquisa em Educação Ambiental, visto que suas interpretações sobre o ambiente possibilitam maior abrangência dos fenômenos e das relações naturais e sociais, se comparada à abordagem disciplinar, esta frequentemente criticada pelo campo da EA. A proposta do autor para a melhor compreensão do saber ambiental apoia-se na “Hermenêutica Ambiental, na direção da Complexidade desenraizam as origens e causas

da crise [...], pois a hermenêutica abre os sentidos bloqueados pelo hermetismo da razão” (2001, p.192).

Na Complexidade, os fenômenos são indeterminados, são possíveis cenários e interpretações de fenômenos, mas não podemos prever/abarcar/compreender a totalidade do ambiente e das relações. Isto se dá, não por erro do pesquisador, da coleta e análise de dados, mas pela própria complexidade da natureza.

A Complexidade e a Multirreferencialidade são possibilidades teóricas que a pesquisa sobre o campo ambiental tem de aproximar-se da totalidade das questões complexas que envolvem o campo. Pois, se a partir da Ciência Moderna (fragmentada e reducionista) deu-se condição para que uma incrível revolução do modo de produção e do modo de vida acontecesse em um curto hiato histórico, e que todo este progresso material deriva da intensa exploração da natureza e das sociedades desfavorecidas política e economicamente, pode-se compreender a origem da descrença nas soluções que a Ciência Moderna e a tecnologia oferecem as crises contemporâneas, como a crise socioambiental.

Apesar de concordar que “o homem foi condenado pela ciência e tecnologia a uma nova forma de precariedade” (BERMAN, 1988, p.81), em meio a escassez de recursos naturais, da péssima distribuição destes, da qualidade de vida em condições de barbárie, no entanto, é preciso notar que a Humanidade não pode abrir mão do conhecimento científico, da técnica intervencionista, do rápido avanço da tecnologia para intervir e achar soluções, mesmo que de caráter emergencial, para a crise socioambiental, porque esta apresentou para o ser humano sua condição de dependência existencial em relação ao meio natural.

Lima (2011) também faz uma abordagem semelhante, destacando os aspectos positivos do desenvolvimento da ciência "[...] quando promove a legitimação e a divulgação do conhecimento sobre tais problemas e quando produz novas descobertas teóricas ou aplicadas que possam reduzir a dimensão da degradação ambiental” (p. 31). Sobre a ambiguidade contida na ciência nos moldes modernos conclui que “[...] a ciência e tecnologia são, simultaneamente, parte do problema e parte da solução, ou seja, são criadoras de risco, mas também são indispensáveis à detecção e mitigação de seus efeitos nocivos” (Idem).