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4 ANÁLISE DO DEBATE MODERNIDADE/PÓS-MODERNIDADE NO CORPUS

4.5 Teorias emergentes e outras epistemologias

Durante o processo de análise dos trabalhos constituintes do corpus documental notamos que estes não somente criticam o conhecimento científico, mas reconhecem que o conhecimento deve ir além da ciência, e por este motivo, nos trabalhos T6808 e T6199 são propostos que o saber se faça nos contornos da transdisciplinaridade, na Multirreferencialidade ou na Complexidade.

4.5.1. Multirreferencialidade e Complexidade nos trabalhos analisados

O conhecimento multirreferencial adotado pelo T6808, como se vê em “o conhecimento corresponde a um exercício vital de conectividade com o outro e com o meio ambiente, dimensionado individual e coletivamente, onde a aprendizagem se opera num

sistema complexo e multirreferente” (T6808, p. 41). Este trabalho analisado parte da noção de Multirreferencialidade, trabalhada por Jaques Ardoino, qual seja:

[...] a abordagem multirreferencial propõe-se a uma leitura plural de seus objetivos práticos ou teóricos, sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas, em função de sistemas de referências distintas, considerados, reconhecidos explicitamente como não redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos. (ARDOINO, 1998, p. 25, apud T6808, p. 20).

Ao articular a “multirreferencialidade e a multidimensionalidade do ser humano e do mundo” a transdiciplinaridade, nos preceitos de Nicolescu citado no trabalho T6199, “pode ser concebida como uma teoria do conhecimento, como uma nova atitude” (T6199, p. 66), o que

Necessariamente implica numa ‘postura sensível, intelectual e transcendental

perante si mesmo e do mundo’ sendo necessário que para tal, aprendamos a interpretar as informações provenientes dos diferentes níveis que compõem o ser humano e como eles influenciam uns nos outros. (Idem)

No interesse em apresentar teorias complementares ao paradigma da Modernidade os trabalhos analisados se baseiam em pensadores que discutem a necessidade de enxergar a realidade com as lentes da “Complexidade”, majoritariamente.A forma de enxergar o mundo a partir de várias realidades é uma esperança diante da forma moderna de conhecer a realidade, a verdade, esta certeza verificável que acaba por ignorar como a realidade pode ser múltipla e complexa. Podemos notar esta intenção na seguinte passagem:

no reconhecimento da impossibilidade de concebermos o mundo preso e restrito a um único nível de realidade, mas, pelo contrário percebermos a concretude da concomitância de diversos níveis de realidade, entendendo que cada nível de realidade é o que é graças ao fato de haverem outros níveis que coexistem com ele, constituindo a complexidade na sua essência; Complexidade, no sentido não de complicado mas de aquilo que se inter-relaciona, se interliga, se complementa; e a Lógica do Terceiro Incluído, demonstrada na física quântica, quem possibilita o trânsito entre os infindáveis níveis componentes da realidade, apresentando a figura de um terceiro elemento incluído no todo, consolidando um novo plano de realidade, com base na tensão provocada pelos tradicionais pares contraditórios propostos pela ciência moderna , vindo ao encontro de uma a uma necessidade premente de encontrar formas de diálogo transcultural, transnacional e trans-religioso, que, respeitando as individualidades e ao mesmo tempo as diferenças, encontre convergências que vitalizem a busca por novas formas de construir o mundo com amorosidade, resgatando-se, desta forma, o sentido do sagrado desta aventura que é viver e portanto do sagrado implícito na dinâmica relação que se estabelece na riqueza do processo ensino-aprendizagem (T6199, p. 61 – 62, grifo nosso).

A compreensão da urgência em considerar as diferentes realidades é corroborada pelo trabalho T7169: “O mundo de um não é o mesmo mundo para o Outro, a realidade de um não é a mesma realidade para o Outro. Há, assim, diversos mundos humanos. Diversos mundos dentro de um mesmo mundo, bem como, nos afirmou Luijpen alhures”. (p. 42)

Mesmo com poucos trabalhos que explicitem a referência a realidade multirreferencial e de realidades diversas, o corpus documental garante como consenso a necessidade de pensar e recriar a relação entre sociedade e natureza pelo olhar da Complexidade. No trabalho T83 a categoria da complexidade é esmiuçada, a partir da obra de Edgar Morin. Veja-se:

A categoria complexidade na obra de Edgar Morin, a partir de uma perspectiva metodológica e epistemológica, diz respeito ao movimento recursivo e dialético entre elementos antagônicos por princípio, mas que só existem na complementaridade: vida/morte, ser/não-ser, belo/feio, bem/mal, razão/loucura, natureza/cultura, etc. Ou seja, trata-se de uma relação dialética, antagônica, interdependente e mutuamente determinante entre o todo e suas partes, entre a unidade e a diversidade (T83, p. 138)

Assim, a complexidade difere completamente do reducionismo e fragmentação típicos da Modernidade, pois “não cria somente novas alternativas e novas junções, cria um novo tipo de junção (...). Cria um novo tipo de unidade, que não é de redução, mas de circuito”. (T83, p. 118). Os princípios da forma de conhecer complexa, segundo Edgard Morin (1990), foram sintetizados pelo trabalho T473 da seguinte forma:

o princípio sistêmico ou organizacional, o qual ligaria o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, opondo-se à concepção reducionista por meio da visão sistêmica; o princípio ´hologrâmico´, que trata da posição global de que tanto a parte se inscreve no todo quanto o inverso também se verifica; o princípio do circuito retroativo , o qual se opõe ao da causalidade linear, em face da existência de processos autorreguladores através dos quais os efeitos também atuam sobre as causas; o princípio do circuito recursivo , entendido como um sistema no qual produtos e efeitos devem ser percebidos simultaneamente como produtores e causadores daquilo que os produz;o princípio da autonomia/dependência (auto-organização) , que trata os seres vivos como seres inerentemente auto-organizadores, que desprendem e demandam energia, sendo, por conseguinte, inseparáveis do meio em que vivem; o princípio dialógico, que concebe uma relação dialética da existência na relação constante e indissociável entre ordem, desordem e organização; o princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento, o qual viria apontar todo conhecimento como sendo uma reconstrução de outros conhecimentos, tendo como diferencial a cultura e a época em que é produzido (T473, p. 30)

A contribuição teórica dada por Edgard Morin sobre a sua formulação da Complexidade parece ser muito cara aos trabalhos analisados, visto que cerca de um quarto do total dos trabalhos que constituem o corpus documental fundamentam-se a partir das ideias deste autor (T83/ T2252/ T2024/ T2254/ T2976/ T4142/ T6199 / T7643). No entanto, mesmo que diante de uma preferência teórica pela Complexidade trabalhada em Morin, dois trabalhos também se utilizam das contribuições sobre o modelo interativo e sistêmico de relação entre homem e natureza dadas por Fritjof Capra (T6172/T2254), outros dois complementam suas

argumentações também pelo modelo de “Nova Aliança”22 (T2976/T7643) por Ilya Prigogine, e de transdisciplinaridade de Barasab Nicolescu (T6199).

Consideramos um dado interessante observar que pouco mais da metade dos trabalhos constituintes do corpus documental afirmam basear-se em fundamentos da complexidade. Apesar de não termos condições de afirmar qual compreensão de complexidade é preponderante nos trabalhos analisados, visto que esta intenção foge aos objetivos desta investigação, pudemos notar que os trabalhos preocupam-se em clarear seus fundamentos sobre o que entendem por complexo. Ademais, esta intenção de estudar e admitir a questão ambiental como complexa é bastante atraente para o campo da pesquisa em educação ambiental, se considerarmos que a problemática ambiental é por si complexa, relacional, e parece ser, cada vez mais, importante superar os reducionismos e fragmentações da forma moderna de conhecer o ambiente e sua relação com a sociedade.

Cumpre destacar a atenção dada às contribuições do pensador Enrique Leff pelos trabalhos analisados (por exemplo, em T6199, T2577, T83), sobre a Epistemologia Ambiental, na qual o autor mexicano delimita a crise socioambiental como “crise do conhecimento humano sobre a natureza” cada vez mais se torna um ponto de partida importante para a conceitualização e contextualização da problemática ambiental dentro do campo da Educação Ambiental.

No trabalho T83 a discussão realizada por Leff sobre a complexidade é realizada com bastante minúcia ao trazer a comparação entre as Teorias da Complexidade deste pensador e de Morin, como se pode notar em:

Apesar de propor um entendimento muito próximo desse defendido por Morin, Leff sustenta que sua orientação teórica é de uma Complexidade Reflexiva, o que se diferenciaria da complexidade ôntica e epistemológica de Morin por um maior engajamento com o mundo da vida, bem como por reconhecer e levar em conta, e de modo mais consequente, as relações de poder, as disputas de sentidos e as múltiplas interações das alteridades, das culturas e dos discursos. (T83, p. 226)

Neste trabalho, há apontamentos que destacam que as contribuições de Leff poderiam ser mais valiosas para pensar sobre o quadro da problemática ambiental em comparação às ideias de Edgard Morin, no sentido de que Leff tem enfoque mais prático do que Morin, e critica o autor francês ao apontar que por focar na pluralidade (dos saberes) abre espaço para as desigualdades, e deixa de levar em consideração que a educação é uma prática política.

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A contribuição de Prigogine se dá quando se defende uma Nova Aliança (1991). Sua ideia de Nova Aliança é

resumida na resposta que dá ao jornalista do Le Monde (1984:54) quando diz que a “Nova Aliança é uma escuta poética da Natureza, onde o homem é reintegrado no universo que ele observa”. (T7643, p. 107, grifo nosso)

Nesta direção, delimita sua opção epistemológica pela Complexidade de Leff, pois: “a crítica mais provocativa e de maiores consequências é essa que identifica na teoria de Morin um malfadado projeto que busca ‘internalizar a complexidade ambiental dentro de uma racionalidade em crise” (T83, p. 225).

No trabalho T6199 o embate de Leff contra a racionalidade opressora moderna, a partir do conceito de transdisciplinaridade, também é ressaltado:

Acredito que neste ponto cabe dizermos que concordamos com Enrique Leff (2000), que entende a transdisciplinaridade como um questionamento ao logocentrismo e ao conhecimento estabelecido pela ciência moderna que, simplesmente, erradicou todo saber não cientifico tendo-o como estranho, patológico, não confiável. (T7169, p. 48)

Neste sentido, destaca-se que alguns trabalhos analisados apresentam suas fundamentações sobre a Complexidade a partir de mais de um autor de referência, e que, muitas vezes, não distinguem os afastamentos e proximidades teóricas dentre eles, e, inclusive, podem listar contribuições teóricas de caráter primário ou secundário, sem, no entanto, que tais movimentos de definição e contextualização conceituais fossem distinguidos e comentados nos trabalhos analisados.

Sobre tais propostas, nota-se que há certa tentativa de recuperar uma suposta “unidade perdida” com a fragmentação moderna da realidade e do conhecimento, pois ambas Complexidade e Multirreferencialidade criticam o ponto de vista disciplinar. Assim, por estabelecerem a crítica a partir de uma estrutura de pensamento moderna, não devem ser consideradas epistemologias alternativas a Modernidade, talvez poderiam ser compreendidas como formas de pensamento em transição uma vez que cuidadosamente apresentam possibilidades de diálogo menos opressoras entre o conhecimento científico moderno, suas disciplinas científicas, e outras formas de conhecimento.

Para a pesquisa em educação ambiental apontar alternativas a forma de conhecer moderna é preciso que se busque um olhar a partir da multiplicidade, no qual a fragmentação da realidade não faça mais sentido23 .