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O livre mercado e a competitividade

Um dos valores do discurso neoliberal é o imperativo da competitividade, considerado pré-requisito para a entrada e a conquista de mercados no mundo globalizado. Esse discurso integra narrativas internacionais e locais, sendo reproduzido no nível organizacional. Trata-se de um discurso heterogêneo, uma vez que compreende, além de teorias econômicas, práticas, costumes, crenças e valores associados à vida em sociedade,

refletindo diferentes níveis de análise, pontos de vista de vários interesses e abordagens diversas, a mais comum das quais é a quantitativa.

No nível macroeconômico das nações, a competitividade, que também é um conceito múltiplo, tem sido analisada tanto em termos de preço, custos e taxa de câmbio, como em termos de capacidade demonstrada por um país para competir no mercado internacional livre, tendo em vista a necessidade de melhorar o padrão de vida nacional (OECD, 1992). Para autores como PORTER (1986) e CHESNAIS (1994) a competitividade depende da performance individual das indústrias e empresas de um país, enquanto para SACHS, STONE (1997), a competitividade refere-se à habilidade de a economia nacional alcançar altas taxas de crescimento econômico, com base em políticas econômicas apropriadas. Há estudos que combinam os resultados de várias empresas para compor um macro índice, sem considerar as características próprias de cada país e as estratégias desenvolvidas pelas empresas e pelo governo. BUCKLEY, PASS, PRESCOTT. (1988) argumentam que a competição é mais do que a soma da competitividade coletiva, e o desempenho de um país deve considerar o tamanho de seu mercado, seu nível de saturação e seu desenvolvimento econômico, assim como variáveis culturais e políticas, além de levar em conta o contexto e o nível objeto de análise: internacional, doméstico, industrial ou empresarial.

A análise da competitividade em nível organizacional significa o desempenho econômico, diretamente associado a custos, preços e lucratividade, de acordo com BUCKLEY. PASS, PRESCOTT (1988). Para BARNEY (1986), no entanto, essa análise implica capacidade de formulação e execução das estratégias organizacionais que controlam os níveis de competição entre os concorrentes. HAMEL, PRAHALAD (1994) argumentam que, para alcançar posição de liderança em seu setor, a organização deve ter, além de capacidade de competir, a capacidade de construir alianças estratégicas, mesmo que seja com seus concorrentes. Há autores que consideram a competitividade como resultado do processo decisório; como geração e manutenção de vantagens competitivas, ou ainda como habilidade de melhorar o desempenho econômico.

O discurso da competitividade permeia não apenas as relações internacionais, locais e organizacionais, mas também as relações interindividuais. Em cada um desses níveis o conceito de competitividade (ou de competição) vai sendo construído e reconstruído à medida pessoas lhe atribuem significados e interpretações, compondo bricolagens por meio de associações ou colagem de diferentes pedaços, conforme afirmam RODRIGUES, CARRIERI, LUZ. (1999). A bricolagem é como um "trabalho de costura" de práticas que fornecem soluções para um problema em situações concretas.

“A solução (bricolagem), que é o resultado do método do ‘bricoleur’, é uma construção [emergente] que muda e toma novas formas à medida que diferentes ferramentas, métodos e técnicas são adicionados ao quebra-cabeça.” (DENZIN & LINCOLN, 1994:2)

A bricolagem pode ser entendida como uma estratégia de transformação ou de moldagem daquilo que já está em uso, pelo rearranjo de seus componentes; é uma invenção social, um exercício de improvisação.

“Uma estratégia de conveniência consiste em converter velhos componentes e estruturas em novas funções e usos.[...]

... os sistemas montados por bricolage têm uma vantagem evolutiva. Sendo fracamente ligados e incoerentemente montados de componentes mistos, eles podem ser parcialmente retrabalhados sem grande investimento.” (CORREIA, 2000: 408)

Nas organizações, os gerentes são os artífices dessa bricolagem, como "mediadores principais de ideologias elaboradas em níveis hierárquicos mais elevados e até mesmo pelos governos" (RODRIGUES, CARRIERI, LUZ, 1999). A gerência sofre a influência de símbolos diferentes, estranhos a seu contexto cultural, vindos como material importado de outras culturas, sendo reinterpretados em âmbito nacional, transformados em nível organizacional, não refletindo com fidelidade as idéias originais. “As idéias são

reinventadas, absorvidas parcialmente ou em estágios; elas se colam umas às outras resultando numa bricolagem.” (RODRIGUES, CARRIERI, LUZ,1999).

DU GAY, SALAMAN, REES (1996), afirmam que a própria categoria dos gerentes é uma invenção social, uma ficção, que sugere processos de formação e transformação, segundo os quais a adoção de certos hábitos e disposições permite que um indivíduo se torne um tipo particular de pessoa e seja reconhecido como tal. Os autores querem dizer que certas categorias de pessoas e sua identidade são definidas em relação a atividades consideradas centrais, importantes para determinada cultura, contexto ou período histórico; portanto, o conceito que se tem de gerente varia de acordo com as concepções mais difundidas de administração e com as técnicas e práticas associadas ao modo como funcionam as organizações. A associação entre representações da atividade de administração e as práticas materiais envolvidas podem ser compreendidas quando se usa o conceito de discurso que, segundo o autor, serve para abrandar as diferenças entre pensamento e ação, linguagem e prática:

“O termo refere-se tanto à produção de conhecimento por meio da linguagem e representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, moldando práticas sociais e tecnologias culturais e estabelecendo novas práticas e tecnologias. Então, é possível dizer que os discursos da administração ‘inventam’ modos particulares para que a atividade de administração seja conceituada e exercida.” (DU GAY, SALAMAN, REES, 1996:266)

Certamente o seu papel, as funções e qualificações requeridos dos gestores são considerados de modos diversos, tendo em vista o contexto sócio-econômico e cultural, variando de acordo com as concepções de organização e de administração. O gestor do início do século, quando predominavam as concepções tayloristas, tinha perfil diferente daquele dos anos trinta, sob a égide das relações humanas, ou dos anos oitenta, década em que o fenômeno da globalização dos mercados se tornou mais acentuado. Desde então, a preocupação com a função gerencial, considerada como um dos meios para que as

organizações pudessem continuar competindo, deu origem a uma nova configuração, ou "invenção" do gestor. Surgida principalmente na Grã-Bretanha, essa nova configuração difundiu-se por outros países. Inicialmente, argumentava-se que as empresas britânicas estavam ameaçadas de perder sua posição no mercado, em face da competição estrangeira, porque seus administradores não estavam adequadamente treinados nem apresentavam as habilidades necessárias. Para garantir sua posição e conquistar novos mercados, era preciso desenvolvê-los de modo sistemático, para atuar em organizações que estavam experimentando novos arranjos estruturais e adotando filosofias de qualidade total e de excelência, de reengenharia de processos, de downsizing, e terceirização, entre outras. As estruturas organizacionais estavam se tornando mais flexíveis, e as práticas enfatizavam cada vez mais o foco no mercado, os mecanismos, as relações e as atitudes próprias de mercado.

Nessa nova ordem, as organizações exigiam a produção de um perfil profissional diferente para seu corpo gerencial: pessoas empreendedoras, autônomas, produtivas, autodirigidas e responsáveis. É importante lembrar que, nesse discurso, a responsabilidade de assegurar tais qualificações passa a ser não mais da organização, mas dos próprios gestores, individualmente; cada qual passa a ser o gestor de sua própria carreira, o "empreendedor de si mesmo."

“Esta idéia de vida humana individual ‘como uma autoempresa’ sugere que qualquer que seja a circunstância que tenha vivido a pessoa, ela permanece sempre engajada (mesmo quando tecnicamente ‘desempregada’) naquela empresa, e que é ‘parte do empreendimento contínuo da vida prover a adequada preservação, reprodução e reconstrução do próprio capital humano.’ ” (GORDON, 1991, citado por DU GAY, SALAMAN, REES, 1996:269)

O modo de gestão empresarial invade todos os domínios da vida e todas as formas de conduta –do comportamento das organizações ao dos governos e dos indivíduos, redefinindo

as relações sociais, que passam a ser regidas em termos de contratos estritamente definidos. Esse contratualismo, conforme argumentam DU GAY, SALAMAN, REES (1996), significa a atribuição de uma função ou atividade a uma unidade distinta, individual ou coletiva, que se torna responsável pelo desempenho eficiente daquela função ou conduta, o que acaba por conferir-lhe certa identidade, essencialmente empresarial. Em muitas empresas, há um "contrato" entre os empregados e os gerentes de linha, segundo o qual o empregado é pago de acordo com seu desempenho ao buscar a consecução de certas metas. O contrato tradicional em que as empresas ofereciam segurança, emprego de longa duração, possibilidade de fazer carreira profissional e treinamento em troca de lealdade e envolvimento, é agora substituído por relações de mercado definidas em termos de avaliação regular e contínua, com possibilidade de renovação ou término da relação contratual com base em medidas de desempenho.

A gestão empresarial requer de gestores e empregados novas competências, a fim de melhorar continuamente o desempenho das organizações, de modo que elas possam permanecer competitivas no mercado. O papel dos gerentes recebeu, assim, uma ênfase considerável, pois o retorno dos investimentos das organizações passou a depender em grande parte de sua atuação. Apesar da redução do número de gerentes nas empresas flexíveis, cabe-lhes a responsabilidade pela conduta dos subordinados, principalmente quanto à adoção de hábitos empresariais de ação. O próprio gestor deve adotar tais hábitos e desenvolver atitudes adequadas, habilidades e conhecimentos, enfim, competências, para assegurar o alcance dos resultados desejados. Seu novo papel é construído e inventado, sendo bastante diverso do de outrora, porque o conteúdo do trabalho gerencial foi redefinido.

“Um dos mecanismos chave por meio do qual as autoridades de vários tipos têm procurado moldar, normalizar e instrumentalizar a conduta da administração – ‘inventar’ o novo gerente – tem sido o desenvolvimento da gestão de competência s.” (DU GAY, SALAMAN, REES, 1996: 272)

A gestão de competências encerra, portanto, a lógica da competição/competitividade, que acena para as empresas com a promessa de sucesso contínuo. É este o discurso que os gestores passam para seus subordinados, compondo bricolagens de acordo com suas próprias interpretações das mensagens recebidas dos níveis corporativo, nacional e internacional. Em suma, os fenômenos da globalização dos mercados e da internacionalização da economia têm influenciado as práticas de gestão de vários modos, não apenas construindo um novo conceito de gerência, mas exigindo das pessoas a mesma competição que ocorre no mercado através do discurso da competência.

Presume-se neste trabalho que o discurso da competência seja o mesmo discurso da competitividade e da competição, trazido para o nível das relações interindividuais, compondo os discursos da competência gerencial. Supõe-se ainda que outros valores, crenças e práticas subjacentes ao discurso do livre mercado sejam repassados aos níveis da nação, das organizações, e dessas aos indivíduos.

O discurso do livre mercado coloca como ideal a ser atingido pelas organizações a competitividade, resultante da racionalidade instrumental e de comportamentos pautados pela capacidade de inovação, pelo desejo de empreender e competir, pelo desempenho de alta qualidade, competência, autoconfiança e outros. Em contrapartida, as organizações devem evitar a concessão de qualquer tipo de benefício, subsídio ou proteção a pessoas, grupos e instituições, qualquer relação de dependência, assim como qualquer tipo de regulamentação que cerceie a liberdade e a iniciativa.