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As raízes do livre mercado

De acordo com BROWN (1997), a concepção do livre mercado é uma filosofia importante da cultura ocidental, principalmente da norte-americana, uma vez que incorpora três princípios fundamentais daquela nação: o individualismo, a igualdade e a resistência à autoridade. Tais princípios são a base do capitalismo anarquista que confere maior valor ao individualismo e sacrifica a igualdade, a fim de evitar a autoridade. Os adeptos de tal filosofia acreditam que o mercado, livre da intervenção do governo, pode promover a coordenação de todas as funções da sociedade, incluindo as de justiça e de defesa nacional. O livre mercado funda-se nos direitos individuais, base do sistema de propriedade privada, que pressupõe que todas as transações sejam efetuadas num ambiente isento de qualquer coerção individual. A intervenção governamental rompe o processo natural e voluntário de trocas e cria problemas que devem ser corrigidos por novas intervenções, fortalecendo, assim, o poder do governo e restringindo a liberdade humana. Portanto, a oposição a qualquer forma de governo é uma idéia tão central do livre mercado quanto seus atributos econômicos.

É profundamente arraigado na sociedade americana o sentimento anti-autoritário. Suas raízes se reportam à formação da nacionalidade, uma vez que a colonização iniciou-se com a imigração dos peregrinos que procuravam escapar da perseguição religiosa. Qualquer forma de poder ou de autoridade era na época considerada abusiva, a não ser que fosse exercida por consentimento mútuo dos indivíduos; desse modo, a coletividade restringiria os abusos do poder em seu próprio seio. O sentimento anti-autoritário consolidou-se ao longo da história americana, e a resistência à autoridade expandiu-se, voltando-se contra quaisquer regras ou regulamentos que limitassem a liberdade ou a expressão humana, quer viessem eles do governo ou dos capitães da indústria. Entretanto, o anti-autoritarismo é a fonte de duas visões divergentes do mercado: a primeira é a visão negativa que surgiu como uma crítica ao poder das empresas (personificação do mercado)

usurpadoras dos direitos dos indivíduos, exercendo sobre eles poder excessivo. Segundo essa visão, o Estado aparece como o salvador, capaz de resolver os problemas causados pelo desmedido crescimento dos negócios.

Essa concepção coexiste com a de livre mercado, que é considerado a solução para os excessos originados da conivência entre as empresas e o governo. Suas raízes remontam ao século XIX, e as idéias que a fundamentam focam inicialmente não o mercado, mas os direitos individuais ao trabalho e à propriedade. Os anarquistas adeptos dessa corrente consideravam-se socialistas, opostos ao ideário do socialismo de estado, e não percebiam contradição entre suas concepções individualistas e sua rejeição ao capitalismo. Mais tarde, adotaram os princípios da teoria do valor de Adam Smith, segundo a qual os trabalhadores criavam valor pelo seu trabalho, e esse valor era apropriado pelos donos das empresas em troca de salários. Embora acreditassem na igualdade material e legal, identificavam-se como um grupo comprometido com a soberania do indivíduo e com o comportamento voluntarista. Não perceberam, entretanto, que seus direitos naturais não podem ser protegidos por consentimento mútuo, se tal consentimento não estivesse estatuído na Constituição ou em leis, caso contrário não haveria garantias nos contratos, nem direito à liberdade e à propriedade.

Os anarco-capitalistas condenam, assim, toda limitação aos direitos naturais dos indivíduos; entretanto, o estabelecimento e a proteção dos direitos individuais, pré-requisito do Mercado, depende da ação coletiva, que os anarco-capitalistas igualam à ação social. Ocorre que eles negam a existência do social. Para eles, a realidade existe nos indivíduos, e o social é uma abstração; só os indivíduos agem no mercado, portanto, todas as atividades humanas tornam-se atividades de mercado. Margareth Thatcher, defensora ferrenha do neoliberalismo – denominação mais corrente do anarco-capitalismo, chegou a afirmar em discurso que a sociedade não existe. Claro, o mercado é a sociedade.

Uma questão importante a ser resolvida é que o consentimento mútuo implica na existência de leis e, conseqüentemente, em restrições à liberdade. Mas, como numa sociedade anarquista não pode haver organismos governamentais, o problema reside em como estabelecer as leis sem uma força inicial. Alguns acreditam que a lei legítima é a natural, derivada da descoberta dos princípios da natureza, o que cria sérias dificuldades à sua aplicação. FRIEDMAN (1989), citado por BROWN (1997), propõe que a lei seja gerada no próprio Mercado, isto é, produzida para proveito do mercado aberto, o que daria origem à competição entre as leis, cujos tipos seriam representados por diferentes cortes. Nesse sentido, os indivíduos deveriam então inscrever-se em agências de defesa, de acordo com o tipo de lei e de cortes às quais estivessem sujeitos. Os adeptos dessa concepção partem então do suposto de que o Mercado existe fora de um sistema legal, não conseguindo resolver adequadamente a questão do consentimento mútuo e da igualdade perante a lei.

“Assim, esta abordagem torna a lei em mercadoria e transforma-a de um meio de controle social, que provê normas para regular o comportamento de modo que os direitos sejam assegurados, em uma mercadoria disponível no mercado apenas para aqueles que podem comprá-la” (BROWN, 1997:114)

Tal abordagem ignora ainda que a lei surge no contexto social, como o meio pelo qual os grupos sociais mantêm o controle sobre seus membros e condição necessária ao funcionamento das sociedades e dos mercados. O livre mercado não provê condições para a existência de cooperação entre os indivíduos, nem para a solução de seus conflitos.

Os anarco-capitalistas não conseguem explicar a existência do Estado, mas pensam que tanto os Estados quanto os mercados são constituídos de indivíduos que atuam em seu âmbito, podendo cometer ofensas; entretanto, acreditam que a atividade criminosa não pode ocorrer no mercado, associando-a ao Estado. FRIEDMAN (1989:112) afirma que "o governo consiste amplamente de várias formas de roubo legalizado." A atividade estatal é

considerada ofensivamente coerciva, portanto, os anarco-capitalistas não admitem que a ação do governo possa também ser coercivamente defensiva, o que afasta a possibilidade de que o governo possa ser considerado legítimo. Não admitem tampouco que o mercado surja da complexidade da sociedade, baseada em elaborada divisão do trabalho, que dá origem também ao aparecimento do Estado. Usando as palavras de BROWN (1997), o anarco- capitalismo não resolve o grande problema do indivíduo e da sociedade, porque não aceita os aspectos sociais e culturais da natureza humana.

O ideário anarco-capitalista foi inspirado pelas idéias de Proudhon, Spencer e outros, mas foi por meio de duas importantes escolas de economia – a Escola de Chicago e a Escola Austríaca – que o modelo de livre mercado ganhou a ascendência que tem hoje. Outros fatos da história americana também contribuíram para isto: um deles foi a prosperidade que se seguiu à Segunda Guerra Mundial; outro foi a rejeição demonstrada pela geração dos anos sessenta ao governo, por sua atuação na guerra do Vietnã e também por suas manifestações de segregação racial. Esses fatos colocaram em evidência as concepções do livre mercado como conducentes a uma conjuntura mais benéfica e desejável. Na década de setenta, a produção industrial, que suportava em grande parte o bem-estar das economias ocidentais, começou a entrar em declínio, sendo o quadro agravado pelas políticas governamentais dos anos oitenta, orientadas para o livre mercado. O declínio da indústria foi seguido pela ascensão do setor de serviços, e a imagem que esse setor infunde é mais de provisão do que de produção; em outros termos, é uma imagem de Mercado.

CARRIER (1997) observa que, no bojo dessas mudanças, até o meio acadêmico começou a falar em "consumo" e "mercado," para descrever o que antes denominava "classes" e "capitalismo;" afinal, o mercado é o capitalista, mas foi como que "abrandado." Os antigos argumentos e análises foram esquecidos, e a literatura acadêmica foi descartada, por ser inaplicável. Os adeptos do livre mercado, para implementarem suas idéias, vincularam o conceito tanto a instituições concretas, atores e formas de comportamento,

como a políticas específicas. Principalmente políticos e economistas criaram organizações para encorajar ou obrigar as pessoas a agirem de modo apropriado e seja qual for o resultado que obtiveram, conseguiram tornar concreto o conceito de Mercado. Essa assertiva é coerente com a percepção de RODRIGUES, CARRIERI, LUZ (1999) de que políticos, economistas, agentes do governo e jornalistas, imbuídos da lógica do mercado, vão passando para os governos, empresas e instituições uma série de conceitos, índices e medidas de desempenho que, afinal, demonstram a performance desejável, símbolo da competição no mercado.