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A música do Teatro de Bonecos de Josivan de Chico Daniel

Foto 31 – Orquestrim – 1

5.1 As práticas de transmissão oral de conhecimento musical no Conexão

5.1.1 A música do Teatro de Bonecos de Josivan de Chico Daniel

A brincadeira do Teatro de Bonecos no Brasil tem seu percurso histórico e aqui tomaremos como início a época colonial. É um folguedo que ao chegar no país, ainda como Teatro de Bonecos, se firmou na região Nordeste.

Apesar de enfrentar determinado desinteresse por parte da população e não ser mais um dos principais atrativos nas comunidades das quais pertence, a brincadeira continua existindo até os dias atuais. O assunto continuidade e mudança neste folguedo é relevante para estudos mais específicos, porém não é o foco deste trabalho, podendo ser levantada a questão mais à diante quando tratarmos de processos de transmissão de conhecimento musical.

Para entendermos o folguedo do qual está sendo tratado aqui, é importante que se faça uma identificação partindo do processo de criação da brincadeira.

No Teatro de Bonecos existe um criador ou seguidor de uma tradição criada por outra pessoa, podendo ter sido um pai ou outro membro da família do atual agente da brincadeira. O criador no ato da criação estrutura estórias algumas vezes que partem de uma realidade e, outras vezes, de uma fantasia já conhecida por ele e pela população. Esse mesmo ator cria personagens no intuito de apresentar suas estórias na forma de brincadeira. Na necessidade de representar os personagens surgem os bonecos que ganham nomes e que, por sua vez, serão manipulados pelo próprio criador. Com seus nomes e a manipulação, tanto manual quanto verbal, de seu feitor os bonecos ganham identidade, características de personalidades e consequente vida. Todo esse processo de estruturação inicial é estabelecido e fortalecido durante uma extensa trajetória de apresentações e isso ocorre bem antes de chegar um possível seguidor. Contudo, ao seguidor cabe a continuidade das atividades da brincadeira quando assumir esse fazer.

Há vários momentos na brincadeira do Teatro de Bonecos nos quais questões sociais são levantadas pelos personagens em suas estórias. Durante uma apresentação há espaços específicos nas cenas onde se mescla a fantasia do Teatro com a vida real, a partir de provocações dos personagens direcionadas a uma pessoa e outra da plateia. Isso é possível na parte destinada a improvisos, quando bonecos têm suas falas propositadamente direcionadas ao público presente. Dessa forma, a brincadeira facilita a mistura entre os dois mundos, podendo levar os apreciadores a reflexões sobre o modo como são vividas as questões cotidianas ligadas à política, saúde, relações interpessoais e estudos, sugerindo uma postura mais tranquila para resolver situações sem deixar de lado a seriedade de fatos. A partir desse preâmbulo, poderemos direcionar a atenção para o fazer musical.

A música está presente no Teatro de Bonecos como parte da brincadeira, não sendo algo separado ou deslocado e sim, dentro do todo no folguedo. É possível perceber essa importância quando observadas as funções que ela exerce desde o momento de prelúdio, antecedendo a entrada dos primeiros personagens, permanecendo ao longo da apresentação até chegar o término do evento. Os momentos musicais são específicos às cenas e aos personagens, podendo se fazer presente também nos espaços entre uma cena e outra e entre uma estória e outra.

A existência da música já se fazia importante nessa brincadeira, e de acordo com as necessidades do criador, ela era direcionada a um grupo de instrumentistas que tinham certa liberdade na execução, mas a função os permitia ser coadjuvantes – musicalmente tratando. Dessa maneira, a formação instrumental se instituía e se tornava responsável pelo acompanhamento das estórias apresentadas no folguedo em questão. As formações instrumentais eram variadas e específicas a cada brincadeira e seu dono. Essa prática instrumental era habitual e com o tempo a tradição do Teatro de Bonecos foi se estabelecendo e a música era componente imprescindível.

Geralmente, se procurava uma instrumentação próxima das estórias encenadas, que por sua vez, guardavam ligação com a região da qual pertencia seu brincante criador. Nesse sentido, um grupo era formado – como no Nordeste, por exemplo – por um tocador de Pandeiro, um tocador de Triângulo, um tocador de Rabeca e alguns casos até mesmo um tocador de Pífano. Não significa dizer que se empregava esse modelo de instrumentação como regra para todas as brincadeiras, mas que permeava sempre nesse sentido, como sendo: 1 ou 2 instrumentos de Percussão e 1 instrumento responsável para fazer versões dos solos de músicas cantadas. Com uma formação igual a essa, um Teatro seguia suas apresentações recheadas de grande variedade musical desde músicas instrumentais, passando por pequenas músicas autorais (instrumental e vocal) até paródias de canções populares das mais conhecidas pelo público.

De outra parte, uma formação instrumental para o folguedo também dependeria da disponibilidade de tocadores da região. Isso significa que um mestre de teatro poderia estar mais preocupado em conseguir os tocadores que, necessariamente, em escolher dentre muitos músicos os que estivessem esteticamente de acordo com seu folguedo. É importante observar que se um mestre pertencia a uma determinada região, seria natural que o usufruto instrumental estivesse ligado a oferta de tocadores locais e esses faziam parte de um contexto musical e estético comum.

Era natural que, neste sentido, certo número de instrumentistas fosse convidado a participar das brincadeiras e apresentações. Esses músicos eram atuantes em suas regiões, pois compunham grupos que se apresentavam em bailes de forró e circos, bem como atuavam em brincadeiras de Folguedos espalhadas pelos sítios das localidades.

Seguindo esse raciocínio, aconteciam convites aos músicos para que participassem da brincadeira de Teatro de Bonecos e em outras, e isso estava ligado ao conhecimento das pessoas em relação às habilidades instrumentais desses tocadores que eram apreciados em eventos os mais variados. Consequentemente, lhes era próprio um convite e outro que surgia nesse campo. Como parte do campo de atuação dos músicos, e de maneira semelhante, Chico Daniel encontrou tocadores para compor seu mamulengo.

De acordo com Canella (2004), Mamulengo era o termo empregado pelo pai de Chico Daniel e outros brincantes da época à brincadeira. Era dado esse nome na região Nordeste para a manipulação de bonecos. Apesar de controvérsias, a origem do termo pode estar na junção da expressão mão molenga que, com o passar do tempo, foi se transformando e ficando conhecido como Mamulengo.

O Mestre mamulengueiro Chico Daniel é nascido na região Nordeste na cidade de Assú, interior do estado do RN. Sapateiro por profissão e Mestre no Teatro de Bonecos na arte herdada de seu pai. Nessa família, o processo de transmissão de conhecimento da brincadeira aconteceu através das gerações a partir de seu pai, sendo passada de Chico Daniel e dele para os filhos.

Chico Daniel tinha seus personagens brincados por seu pai e, apesar das estórias permanecerem em sua gênese, de acordo com a compreensão de mundo de seu mestre atuante, a brincadeira se reinventava sem perder as características primas do folguedo. Como fortes características estão os personagens: Baltazar, Dr. Pindurassaia, Etelvina, Capitão João Redondo, Boi Coração, Mestre Guedes, o Malandro de Coca-cola, o Padre, Dr. João Bondado, Cassimiro Coco, Tenente Bezerra de Melo, Pedro Marinheiro, João Guedes e o Cachaceiro (CANELLA, 2004).

Segundo Canella (2004), o mamulengo de Chico Daniel ficou conhecido pelo nome de João Redondo, nome de um dos personagens da brincadeira. Nesse sentido, aponta para a questão de nomes do Teatro de Bonecos dizendo que, em cada região do Brasil, a brincadeira tem um nome e, em cada estado ou sub-região, ele tem outro nome de acordo com características próprias do seu autor. Desta feita, a nomeação, no estado do RN, de João Redondo de Chico Daniel mamulengueiro.

No João Redondo havia um Grupo de tocadores que fazia parte da tradição. Cada tocador tinha sua atuação no folguedo de acordo com a necessidade do mestre do mamulengo e as habilidades e conhecimentos dos músicos. Paralelo à história do mamulengo, cada instrumentista tinha o seu particular que, no curso da vida, cruzava com as histórias outros. Essa realidade se tornava possível a partir do prospecto de grupos instrumentais locais e folguedos nos quais atuavam.

Para o acompanhamento do João Redondo havia, no caso, um tocador de Pandeiro, um tocador de Triângulo e um rabequeiro. Um grupo com essa formação e neste folguedo toca músicas pautadas no repertório nordestino que era o contexto de vida desses indivíduos. Predominava o forró, porém passeava-se por outros estilos do cancioneiro popular.

A escolha das músicas é uma das características que faz parte da tradição da brincadeira. Pois, apropriar-se de músicas populares está ligado não somente à composição das estórias e personagens, como também é mais uma forma objetiva de aproximação com o público que, a partir de então, se identifica com a brincadeira culminando no estreitamento da relação: bonecos-público-teatro.

Nesse sentido, havia forrós, valsas, sambas, marchas e tantos outros estilos de música que fizessem relação direta com o cotidiano dos apreciadores. O repertório era em sua grande parte de músicas cantadas, ou seja, músicas que tinham letras, porém suas melodias eram executadas por um instrumento melódico e acompanhado pelos de Percussão e um ou outro harmônico (Sanfona ou Violão).

Canella (2004) apresenta o quadro de cenas dizendo que também existiam as paródias cantadas pelos personagens da brincadeira que tinham a intensão de tornar jocosa uma situação qualquer do cotidiano. Ela poderia ser tema do ato em desenvolvimento ou somente parte de um personagem.

De igual importância poderia ter origem em um personagem e ser direcionada a outro; e até mesmo pegar o nome de uma pessoa da plateia no intuito de envolvê-la e fazer piada, promovendo no público uma relação de aproximação real com o imaginário através desses improvisos textuais com música.

Em relação aos instrumentistas, cada qual com uma função específica na brincadeira a partir de suas habilidades e sabedorias aprendidas e firmadas no decorrer de anos de prática. No entanto, anterior a este ponto no qual os músicos já têm vasta experiência musical, há um ponto semelhante a esses fazeres artísticos: a transmissão oral dos conhecimentos musicais.

No sentido do ensino e aprendizagem musical, tornar-se um tocador de instrumento, para o serviço tanto no Mamulengo quanto a outras brincadeiras interioranas, depende do

acesso do iniciante a tocadores mais antigos. O tocador de um instrumento quando outrora infante, na oportunidade de ter visto, ouvido e observado um membro de sua família ou vizinho atuar na grande variedade de eventos da região, pode haver despertado o interesse na arte musical sendo iniciando a partir desse contato.

As observações de um aspirante a tocador poderiam estar fixadas na admiração a um instrumento específico, e este sendo utilizado no contexto de eventos, como também na certa facilidade de contato permitida pelo outro tocador mais experiente. Uma vez sendo possível uma aproximação, ela poderia servir como ponto de partida à iniciação no instrumento de escolha para somente aos poucos se aventurar como iniciante a tocador. Desta maneira, observamos o modo de transmissão oral do conhecimento musical, com certo grau de informalidade.

Essa forma de aprender está intimamente ligada com a vida do aprendiz e as relações anteriormente estabelecidas nos contextos dos quais pertencem que, segundo o olhar tradicional, esses espaços não são, teoricamente, preparados para se efetivar uma Educação.

Gohn (2006) faz uma descrição a respeito de como os modos de ensino se processam em diversos espaços. Observando o termo preparar, vê-se que ele tem o sentido de planejamento. Logo, planejar diz respeito a ter intensão de desenvolver uma ação que vislumbra a obtenção de determinados resultados. Nesse sentido, para se alcançar os objetivos desejados são especuladas e escolhidas formas mais adequadas de atuação nas situações às quais se apliquem. O modelo que não faz parte de uma prática de ensino que são regidas por uma organização mais ampla. Não se visa uma padronização em alta escala ou ainda mesmo que não sendo em grande escala, mas que não tenha objetivos claros e não siga métodos comuns e discutíveis entre os profissionais envolvidos. A este não lhe cabe o emprego do termo formal. E, não tendo esse preparo, cuja obtenção dos resultados previstos não siga métodos com claros objetivos de ensino, o modelo de Educação é compreendido por Gohn (2006) como informal. Diante disso, explica que:

O que está implícito à informalidade de ensino é que ‘o educador está na figura da família, dos amigos, vizinhos e mídias’; que se educa nas referências de nacionalidade, idade, sexo, religião; educando nos contextos de ambientes espontâneos que não tem intenção de educar, relação de valores definidos pelos gostos de cada indivíduo; cuja finalidade está ligado ao processo de socialização do indivíduo por meio da convivência diária com seu ciclo (família, amigos, etc.); onde o passado orienta o futuro sem que haja sistematização ou organização; não sendo esperados resultados técnicos e sim ligados ao senso comum (GOHN, 2006, p. 28).

De outra parte, Laraia (2002) afirma que não somente um, mas muitos indivíduos são agraciados pelas experiências de uma determinada pessoa habilidosa, e que há nisso uma transmissão interminável quanto ao processo de acumulação.

De acordo com o raciocínio apresentado, podemos constatar que os tocadores de instrumentos dos folguedos ligados à ONG, na prática do exercício do Conexão Felipe Camarão, aprenderam a fazer música informalmente e em suas práticas de vida musical anterior ao contato com a TerrAmar. E que por guardarem essas características houve o convite para participarem pontualmente em momentos esporádicos nas atividades educacionais da Instituição.

A partir dessa perspectiva de entendimento, podemos nos valer de alguns apontamentos da área da Etnomusicologia quando se refere a processos de ensino e aprendizagem de Música nos contextos da transmissão oral. Merriam (1964) diz que a aprendizagem musical pode ser um primeiro passo no processo universal do aprendiz. Que a partir da relação holística do aprendiz com o todo, no qual a música está inserida como parte, ele se sente pertencente e dono do seu contexto, criando assim seus valores com a sociedade na qual está inserido.