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“Quando descobri que o ITA era uma escola militar que oferecia alojamento, ensino e alimentação, pensei: ‘É lá que eu tenho que estudar.’”

G

ilberto dos Santos Giuzio tinha 16 anos quando soube da existência do ITA através de um folheto pregado em seu colégio, em Nova Bandeirantes, no interior do Mato Grosso, e passou a sonhar com a faculdade. Mas logo em seguida tomou uma direção que parecia contrária a seu objetivo: abandonou a escola – pela segunda vez.

Ele era um bom aluno. Desde os 5 anos, impressionava resolvendo de cabeça contas que muitos adultos não conseguiam fazer. Seu pai, que trabalhava na roça e estudou somente até o quinto ano, exibia orgulhoso aos amigos o menino prodígio de Nova Monte Verde. Mas quando Gilberto tinha 7 anos o pai morreu de malária. Algum tempo depois, a mãe se casou de novo e a família se mudou para Nova Bandeirantes. Com apenas 14 anos, Gilberto tomou o rumo comum aos garotos da região: parou de estudar e começou a trabalhar no sítio com o padrasto.

Parecia não existir nada além da rotina de criar gado, tirar leite, roçar o pasto, erguer cerca… até que a família comprou um motor a diesel, que lhes permitiu assistir à TV durante uma ou duas horas por dia. Perto de completar 16 anos, Gilberto foi apresentado a um novo mundo, que acompanhava pelo noticiário da televisão. “Eu via as pessoas realizando coisas tão interessantes, tão desafiadoras, e na minha cidade a perspectiva

era ficar fazendo a mesma coisa todos os dias, durante 30 anos”, diz. Naquele momento, a lembrança das contas que fazia na infância pareceu indicar o caminho. Aos 16 anos, venceu a resistência dos pais e voltou a estudar.

No entanto, o tempo que gastava nas aulas e para vencer os 13 quilômetros de caminho de terra até a escola o impedia de ajudar no sítio, então ele largou novamente os estudos. Mas Gilberto já sonhava em conquistar uma das 120 vagas anuais do ITA – provavelmente a prova de vestibular mais difícil do país. Optou por fazer um supletivo e, em vez de passar quatro horas por dia no ônibus, estudar por conta própria.

Como sabe qualquer um que tenha tentado aprender algo sozinho, a falta de um professor não é a única dificuldade. É preciso ter uma força de vontade férrea para manter a disciplina. Nesses casos, traçar uma meta é essencial.

Para Gilberto, entrar na faculdade era seu grande objetivo. Seria um fim que lhe proporcionaria um novo começo. E o ITA representava a solução ideal: uma escola militar que pagava soldo e dava alojamento aos estudantes. Duro era chegar lá. Vendeu cocos para comprar livros e conseguiu outros emprestados na biblioteca da antiga escola. À noite, depois do trabalho, estudava, primeiro com a energia do motor elétrico e, quando ela acabava, à luz de velas. Fez isso durante todo o ano de 2003. E depois, durante todo o ano de 2004. E 2005. Então fez a prova do ITA – e foi reprovado.

Tentou também a prova do Enem e obteve pontuação para entrar na PUC de Campinas. Era uma segunda opção aceitável. Gilberto tinha uma tia que morava na cidade, poderia ficar com ela. No entanto, não conseguiu a bolsa do Prouni, o programa de apoio a universitários do Ministério da Educação. O fato de sua mãe ser proprietária de algumas terras e de ele ter feito supletivo levou à desconfiança de que não se tratava de um aluno carente.

Aos 21 anos, Gilberto decidiu morar em Campinas com a tia, que era diarista, e o tio, um frentista afastado por problemas de saúde. Arranjou trabalho como montador de óculos, para ajudar nas despesas da casa, e ingressou num curso pré-vestibular, onde conseguiu 50% de abatimento nas mensalidades. Já no primeiro simulado ele se destacou. O diretor do curso o chamou para conversar e Gilberto comentou que tinha sido reprovado na

prova do ITA no ano anterior. “Por que não tenta de novo?”, perguntou o diretor. E ofereceu a ele bolsa de 100% se mudasse para a turma preparatória do ITA. O problema era que as aulas eram durante o dia e ele não conseguiria trabalhar e entregar os R$ 100 mensais que tinha combinado dar à tia, Dona Idalina. Os tios compreenderam e o apoiaram.

Gilberto não desperdiçou a oportunidade. Estudava todos os dias das sete da manhã às 11 da noite. Não era bom em redação, então tratou de escrever duas por semana. No final do ano, passou em primeiro lugar na Unicamp, primeiro lugar em engenharia elétrica na USP, no vestibular do Instituto Militar de Engenharia (IME)… e no ITA.

Essa história de superação foi um dos determinantes para que ele fosse aceito como bolsista da Fundação Estudar, em 2008. O apoio financeiro permitiu que ele não seguisse a carreira militar (a partir do terceiro ano, apenas os alunos que se alistam recebem o soldo). O contato com a rede também reforçou sua vontade de retribuir a ajuda que recebeu.

“A ideia da retribuição é muito forte na Fundação Estudar e eu senti que precisava devolver o que as pessoas fizeram por mim – mas não necessariamente para as mesmas pessoas”, diz Gilberto. Assim, desde o início da faculdade, começou a colaborar com o Curso Alberto Santos Dumont, um cursinho organizado pelos estudantes para ajudar jovens carentes a se prepararem para o ITA. “Eu dava aula de reforço, ficava de plantão para tirar dúvidas. No segundo ano desenvolvi um sistema de aconselhamento, porque era triste ver tantos alunos desistindo por dificuldades financeiras ou problemas familiares.” Um de seus aconselhados havia iniciado a faculdade na Unesp, no interior de São Paulo, mas começou a faltar porque seus pais ficaram desempregados e ele não tinha condições de pagar a passagem até lá todos os dias. Os alunos e os professores fizeram uma vaquinha e resolveram o problema. “Na última vez em que o encontrei, ele estava terminando o mestrado em letras na USP”, conta.

Já formado, Gilberto começou a traçar novos objetivos, inspirado pelos contatos da Fundação Estudar. Após um programa de trainee, foi contratado pelo banco Itaú-BBA, em que ficou por dois anos. Parou para estudar inglês fora – uma forma de alavancar a carreira. Ficou quatro meses em Londres, fez trabalho voluntário e, quando voltou, trabalhou por quase três anos numa consultoria estratégica. Seu próximo passo era um MBA. “A cada

inscrição que fazia, precisava explicar por que tenho tão pouca experiência para alguém com 32 anos.” A idade mais avançada, que normalmente seria uma desvantagem na concorrência pela vaga, no caso dele vira um atributo especial, considerando sua incrível trajetória.

Gilberto foi aceito no MIT, na Universidade Columbia e na London Business School. Escolheu Columbia e, em 2016, se mudou para Nova York.

O PODER DA VONTADE

A persistência – beirando a obstinação – é um dos principais valores da Fundação Estudar. Tem a ver com o apreço pelo trabalho duro, mas é mais do que isso. É o reconhecimento de que, num mundo de amplas possibilidades, chega mais longe quem tem propulsão interna. Quem tem vontade.

Esse conceito se difundiu na filosofia ocidental pelo trabalho do alemão Arthur Schopenhauer, na primeira metade do século XIX. Para ele, toda a natureza, incluindo o ser humano, é expressão de uma insuperável vontade de viver.

Algo parecido anima uma das linhas de trabalho que mais têm chamado a atenção no campo da educação. Segundo a pesquisadora Angela Duckworth, da Universidade da Pensilvânia, autora do livro Garra: O poder da paixão e da perseverança, a determinação é um fator tão ou mais importante do que o talento para prever a taxa de sucesso das pessoas.

Angela parece ter tocado num ponto sensível da cultura contemporânea. Depois de décadas priorizando a capacidade intelectual, educadores têm se voltado para a importância de traços como persistência, capacidade de trabalho e força de caráter como elementos cruciais não só para o sucesso, mas para uma vida mais rica.

No mundo moderno, em que o conhecimento é tão disseminado (ou pelo menos mais acessível) e a concorrência tão exacerbada, o valor relativo da força de vontade só cresce. Como disse em entrevista à revista Época Negócios um dos investidores mais respeitados do Vale do Silício, Michael Moritz, do fundo Sequoia: “Gente inteligente, que estuda e tira boas notas, virou commodity; difícil é achar gente com drive [impulso próprio] e jogo de cintura.”

CAPÍTULO 7

SÓ A OBSTINAÇÃO LEVA A