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MODELOS DE ATENÇÃO À SAÚDE

CAPITULO II PROCESSO DE TRABALHO E MODELOS DE ATENÇÃO EM

2.3 MODELOS DE ATENÇÃO À SAÚDE

A análise dos modelos de atenção à saúde deve ser resgatada na estrutura histórica de constituição das sociedades humanas e nos movimentos culturais que assim formularam uma referência popular e científica. Em determinados contextos, apreendem-se marcos teórico- conceituais que caracterizam expressão de valores e práticas significativas para a representação social de saúde e doença.

Assim, configurou-se inicialmente o desenvolvimento da medicina, principalmente, a partir da Era Moderna, destacado no estudo específico Sociologie da la Maladie et de

Médecine (ADAM, HERZLICH, 2001), que, entre outros, apresenta contribuições para a análise de um campo de conhecimento e intervenção que, por necessidade de divisão sociotécnica, agregou disciplinas, constituiu especificidades de objetos de intervenção e determinou as demais profissões da área de produção em serviços de saúde.

Quando se define um modelo de atenção, compreende-se uma base de conceitos que qualificam o processo de saúde e doença. Os modelos explicativos abordam conceitos fundamentados historicamente, orientados por um campo de conhecimento que se traduz em uma disciplina. As definições de doença e saúde transitam do campo biológico até a concepção da antropologia social. As doenças têm uma história e um contexto determinante manifestados em períodos cíclicos e contraditórios de suas consequências.

64 As análises da sociologia da doença e da medicina foram estruturadas por Adam e Herzlich (2001), que, em uma perspectiva multidisciplinar, demonstram como o processo social e a história das sociedades configuram o estado de saúde e doença. Destacam-se contribuições por parte da população, sendo que a

Enuncia-se e avalia-se em termos da saúde um número sempre crescente de fenômenos individuais e coletivos. O corpo tornou-se um signo: a saúde está em tudo e tudo está na saúde. Para o individuo - e isso quanto mais elevada for sua categoria social -, a saúde inscreve-se na temática da liberdade de expressão e da realização pessoal. Numerosos estudos, entretanto, que, à medida que se desce a escala social, o discurso de valorização da saúde se rarefaz e fica mais desligado da realidade das situações e dos comportamentos. (ADAM, HERZLICH, 2001, p. 86)

As representações sociais de saúde e doença são constituídas a partir de uma necessidade histórico-econômica com vistas a subsidiar o desenvolvimento das sociedades em diferentes contextos. Assim, busca-se o resgate de concepções significativas que atualmente se relacionam às áreas de saúde pública e coletiva e, mais recentemente à saúde da família, campo teórico na área da atenção primária à saúde. Considera-se que situar tal discussão é necessário para desenvolver análise do objeto de pesquisa.

Dessa forma, encontram-se nas concepções que representam modelos de atenção à saúde no campo da medicina preventiva (AROUCA, 1975), da medicina comunitária, descrita (SILVA JUNIOR, 2006; DONNANGELO, 1976) ou mais especificamente da medicina da família apresentada no Manual de medicina familiar (MCWHINEY, 1994), contribuições em relação ao conjunto de princípios e atributos da prática dos profissionais de saúde que trabalham com a Estratégia Saúde da Família, e não apenas referida à prática do médico de família. Na área da organização dos sistemas de saúde, destaca-se novamente o importante referencial do relatório de Dawson (1920), cuja base teórica foi incorporada no conteúdo da Conferência Mundial de Saúde (Alma-Ata-1978) e mais tarde no qualificado trabalho de STARFIELD (2002), que sintetiza uma análise sobre os princípios e atributos da atenção primária à saúde.

Portanto, a estruturação de modelos de atenção em saúde representa uma síntese constituída em diferentes bases conceituais analíticas, em diferentes tempos históricos, sob responsabilidade de sujeitos que apontam um conjunto de concepções e práticas que se estabelece por consenso ou dissenso, ou são resultado de uma correlação de forças no campo institucional ou das profissões da saúde, que coletivamente configuram um campo especifico de trabalho em saúde.

65 Modalidades Assistência Seguro Seguridade

Denominações Residual Meritocrático Institucional

Ideologia Liberal Corporativa Social-democracia

Princípio Caridade Solidariedade Justiça

Efeito Discriminação Manutenção Redistribuição

Status Desqualificação Privilégio Direito

Finanças Doações % Salário Orçamento Público

Atuária Fundo Acumulação Repartição

Cobertura Alvos Ocupacional Universal

Benefícios Bens/Serviços Proporc. Salarial Mínimo Vital

Acesso Teste/ Meios Filiação Necessidade

Administração Filantrópico Corporativo Público

Organização Local Fragmentada Central

Referência Poor Laws inglesas Bismarck Beveridge

Cidadania Invertida Regulada Universal

Quadro 1 - Modelos de proteção social Fonte: Fleury,1994, p. 108.

Em relação à necessidade de repensar o modelo assistencial hegemônico, rompendo com a excessiva fragmentação do trabalho e buscando recolocar prioridades de atenção ou assistência integral à pessoa, Merhy (2002), entre outros autores, destaca os desafios postos aos profissionais de saúde do novo milênio. No contexto das instituições de saúde, observa-se no processo de trabalho a vigência de características do modelo tradicional da assistência à saúde centrada no médico. As concepções que analisam a micropolítica do trabalho vivo em ato qualificam as abordagens com os usuários e exigem entendimento dos sujeitos no espaço institucional. Nessa relação se inserem as tecnologias leves, definidas como “Diferentes modos do agir humano no ato produtivo e os tipos de questões interessantes de se levantar acerca deste processo.” (MERHY, 2002, p. 41).

As demais categorias profissionais ainda não apresentam condutas de autonomia para reorientar e reverter a lógica tradicionalista da centralização do trabalho em saúde. Essa condição é muitas vezes reforçada, colocando-se essas categorias em uma posição acomodada, sem provocar mudança de concepção e práticas. Isso significa manter-se como protagonista do modelo hegemônico de assistência à saúde, ou ainda a manutenção de uma prática que reproduz e fortalece a condição subordinada de apropriação do saber e poder médico.

Em uma direção mais interdisciplinar e intersetorial do trabalho em saúde, apresenta- se a formulação teórica metodológica da saúde coletiva, que se destaca pela correlação filosófica, com base no denominado método paideia: “uma reconstrução contemporânea do conceito clássico de paideia; que [...] seria um modo de lidar com esse fluxo maluco e

66 contraditório de informações, com essa ciranda perversa de destruição de valores penosamente construídos” (CAMPOS, 2003, p. 10).

Em um contexto de lutas travadas desde o movimento sócio-histórico da Reforma Sanitária até a constituição do SUS (1988) e a elaboração de legislação específica e normas operativas do sistema de saúde, a Estratégia Saúde da Família se constitui como uma prática vigente no campo saúde, como o modelo de atenção à saúde adotado pelo Brasil. A estruturação da ESF se dá por um conjunto de categorias analíticas: valores, princípios e atributos apreendidos na atenção primária à saúde (CONNAS, 2007). Como estratégia estruturante do SUS, ou ainda como um modelo de atenção à saúde, a ESF agrega um conjunto de concepções filosóficas e ao mesmo tempo reconstrói o processo de trabalho, sob diferentes perspectivas: território, família e comunidade; ou equipe interdisciplinar de saúde e setores populares. As práticas e compromissos profissionais passam pela compreensão da realidade e da singularidade e totalidade dos processos produtivos do trabalho em saúde.

O desafio posto aos profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família vai além da superação do modelo de assistência flexneriana, o qual enfatiza o locus hospital como condição privilegiada de atenção à doença, em pressuposto propagado por estruturas de serviços tradicionais cujas influências se perpetuam no imaginário social e se refletem nas condutas profissionais e processos de trabalho das equipes.

Na direção de mudanças, o locus de atenção à saúde é a residência ou as relações de base familiar e a comunidade, ao que se associam os cuidados técnicos profissionais. Na mediação com sujeitos não profissionais (sujeitos de saber popular que constituem elos de referência complementar nas relações pessoais ou familiares), podem-se constituir laços significativos de apoio ao processo de atenção à saúde. Compreendida no processo natural de laços afetivos ou conflitos, a família define as condições - meio ou fim - da promoção da saúde, do cuidado ou do processo terapêutico, mais efetivamente e além da capacidade técnica e humana da equipe interdisciplinar.

Na condição de sujeito de um trabalho coletivo, o profissional de saúde deve saber potencializar estratégias de promoção da saúde e do cuidado na família-comunidade, “mas o que interessa ficar claro é que o centro desse trabalho é pensar o agir no âmbito das organizações de saúde, particularmente nos atos produtivos dos atos de saúde, como lugar de uma transição tecnológica para um novo patamar produtivo” (MERHY, 2002, p. 37). Além do especifico de uma competência técnica, de cada categoria profissional da saúde, apresenta-se um campo movido por interações subjetivas da ação profissional, caracterizada como trabalho vivo, ou seja, de relações humanas, significativas de vínculos, de sentido da confiança, de ato

67 de compromisso, os quais são assumidos por sujeitos que completam uma perspectiva de mudança, ou não.

Indica como indispensável, e mesmo como produto dessa ação, a construção de um compromisso efetivo dos trabalhadores de saúde com o mundo das necessidades dos usuários, que permite explorar de modo exaustivo o que as tecnologias em saúde detêm de efetividade, em um novo modo de operar a gestão do cuidado em saúde. Mostra como essa passa pela produção de novos coletivos de trabalhadores comprometidos ético-politicamente com a radical defesa da vida individual e coletiva. (MERHY, 2002, p. 32-33)

Cabe ainda resgatar no capítulo que trata do tema “A micropolítica do trabalho vivo em ato: uma questão institucional e de território das tecnologias leves” (MERHY, 2002, p. 41-52) e ainda no texto “Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato” (MERHY, 1997), contribuições significativas “dos diferentes modos do agir humano no ato produtivo e os tipos de questões interessantes de se levantar acerca deste processo.” (MERHY, 2002, p. 41). Nesse texto descreve-se as várias etapas do processo produtivo citando como exemplo a produção artesanal de um sapateiro que se apropria de matéria-prima, ferramentas, organização, saberes tecnológicos e trabalho em si, que resulta o produto final. No processo produtivo, associam-se as concepções do trabalho morto e do trabalho vivo.

Na sua capacidade de imprimir novos arranjos tecnológicos e novos rumos para os atos produtivos em saúde, o cotidiano da prática é a instância central da transição tecnológica do setor saúde e, portanto, o território em disputa pelas várias forças interessadas nesse processo, bem como os também sujeitos do processo terapêutico. Os trabalhadores, distanciados das bases conceituais ou apartados de uma visão critica, afastam-se da compreensão e exercício do trabalho na APS/ SF, fragmentam a coerência das práticas entre o fazer e o pensar, o mandar e o executar. Com essa fragmentação nos processos de trabalho em saúde, chega-se às concepções dos velhos paradigmas, como o modelo biomédico, incapacitando os trabalhadores de construírem novas bases do trabalho reflexivo, crítico e coletivo.

Em determinada conjuntura político-institucional, operam concomitantemente concepções e práticas de modo contraditório e complementar. Dessa forma, sempre será um desafio compreender ou reverter os nós críticos das relações e processos de trabalho, diante, por exemplo, das infinitas demandas de atenção emergencial à doença, ou pressão de interesses de mercado da doença, o que exige respostas contraditórias por parte dos profissionais de saúde que atuam nas unidades com APS e ESF.

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Trata-se da função ampliada do gerenciamento das questões locais, que dizem respeito ao processo saúde/doença no âmbito de um território delimitado, com uma população reconhecida e uma complexa trama de relações interinstitucionais, sociais, políticas e individuais ou coletivas. A mesma sociedade que produz doença é capaz de produzir saúde. Ao gerente local cabe atender a situação de fato de predomínio das demandas doencistas, assim como trabalhar na promoção de atitudes e ações governamentais integradas à ação social e política dos indivíduos e da coletividade. É o que se denomina de autoridade sanitária local, muito mais “saudista” do que “doencista.” (RAGGIO; GIACOMINE, 1995, p. 8).

Nesse contexto, é exigida a compreensão de novos objetos postos no trabalho em saúde para as diferentes categorias profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família, bem como a identificação das contradições, os desafios do trabalho na atenção primária à saúde, mais especificamente na Estratégia Saúde da Família. Nessa dimensão, o processo de trabalho em saúde é reconhecido como o diferencial emancipador que rompe os modelos de exploração e alienação do ser social: trabalhador e/ou usuário dos serviços de saúde.

Em uma estratégia de trabalho em saúde pautada pela territorialização, a implantação de sistemas locais de saúde e a construção de um modelo assistencial para a saúde, capaz de responder às novas demandas postas pela população,

Vai implicar mudanças que se darão na concepção de saúde, no paradigma sanitário e na prática sanitária. Por concepção de saúde entendo o sistema dominante de crenças que existe num determinado momento e em dada sociedade sobre o que é ou como se representa o processo saúde-enfermidade. (MENDES, 1995, p. 21) Esse processo exige “práticas participativas de gestão”, exercício do planejamento com participação efetiva das equipes, como também da população, por meio do controle social. As unidades de saúde e suas equipes avançam na consolidação da vigilância à saúde a partir de um espaço-população sob sua responsabilidade, assim revertendo os indicadores epidemiológicos sociais.

Com referência aos estágios de desenvolvimento dos sistemas de saúde que adotaram o modelo de Atenção Primária à Saúde, resgata-se de Conass (2007, p. 34), o quadro abaixo, com a finalidade de correlação e análise do objeto de pesquisa.

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Interpretações da APS Definição ou Conceito de APS

APS seletiva. Um conjunto

específico de atividades e serviços de saúde voltados à população pobre.

A APS constitui-se em um conjunto de atividades e serviços de alto impacto para enfrentar alguns dos desafios de saúde mais prevalentes nos países em desenvolvimento.

Um nível de atenção em um

sistema de serviços de saúde. APS refere-se ao ponto de entrada no sistema de saúde quando se apresenta um problema de saúde, assim como o local de cuidados contínuos da saúde para a maioria das pessoas. Esta é a concepção mais comum da APS na Europa e em outros países industrializados.

Uma estratégia para organizar os sistemas de atenção à saúde

Para que a APS possa ser entendida como uma estratégia para organizar o sistema de saúde, este sistema deve estar baseado em alguns princípios estratégicos simples: serviços acessíveis, relevantes às necessidades de saúde; funcionalmente integrados (coordenação); baseados na

participação da comunidade, custo-efetivos, e

caracterizados por colaboração intersetorial. Uma concepção de sistema de

saúde, uma “filosofia” que permeia todo o sistema de saúde.

Um país só pode proclamar que tem um sistema de saúde baseado na APS quando seu sistema de saúde se

caracteriza por justiça social e equidade;

autorresponsabilidade; solidariedade internacional e aceitação de um conceito amplo de saúde. Enfatiza a compreensão da saúde como um direito humano e a necessidade de abordar os determinantes sociais e políticos mais amplos da saúde (Ministério da Saúde) no sentido mais profundo da expressão.

Não difere nos princípios de Alma-Ata, mas sim na ênfase sobre as implicações sociais e políticas na saúde. Defende que o enfoque social e político da APS deixaram para trás aspectos específicos das doenças e que as políticas de desenvolvimento devem ser mais inclusivas, dinâmicas, transparentes e apoiadas por compromissos financeiros e de legislação se pretendem alcançar mais equidade em saúde.

Quadro 2 - Estágios de desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde Fonte: CONASS, 2007, p. 34.

O modelo de saúde pautado na APS, como se demonstra o campo de produção de serviços na saúde na estratégia de atenção à família implica gestão do cuidado integral à saúde, alocação de recursos, meios e fins, planejamento local e vigilância à saúde compartilhada entre os diferentes sujeitos do processo de atenção (profissionais de saúde, pessoas, família e comunidade), além dos suportes de referência das demais políticas públicas e serviços, entre outros recursos qualificados de um modelo de atenção à saúde.

Para concretizar dita finalidade, uma das maiores preocupações é com a formação e a educação permanente dos profissionais de saúde, seja a qualificação tecno-humana (desenvolvendo habilidades frente à complexidade das demandas na área da saúde), sejam as

70 respostas na capacidade clínica assistencial e ético-política, pautadas em uma relação interdisciplinar e na interação de espaços de trabalho para as categorias coletivamente constituídas na atenção à saúde da família.

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