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TRABALHO EM SERVIÇOS: TRABALHO EM SAÚDE

CAPITULO II PROCESSO DE TRABALHO E MODELOS DE ATENÇÃO EM

2.2 TRABALHO EM SERVIÇOS: TRABALHO EM SAÚDE

As relações de trabalho sob a égide capitalista, na qual se insere o setor de serviços, incluindo a área de saúde, têm apresentado as mesmas mudanças nas formas de reestruturação produtiva, com significativos impactos associados. A representação social de vínculos trabalhistas, o valor do trabalho assalariado, a capacidade de organização dos trabalhadores e o poder político para preservar a legislação que assegura direitos dos trabalhadores são questões postas diante das necessidades materiais e imateriais dos indivíduos e do coletivo social. Entre outras formas, a reestruturação produtiva promove a mediação entre sujeitos consumidores e produtores de serviços, sob os interesses de lucro e dependência de consumo expansivo.

O trabalho demonstra ter perdido a capacidade de se constituir em eixo estruturador da autoconsciência e organização sociopolítica dos trabalhadores. Entre outros determinantes estruturais relacionados às novas articulações da produção capitalista, ressalta-se o afastamento da classe trabalhadora, protagonista que perdeu a capacidade de articulação decisória nas relações de trabalho e os direitos sociopolíticos já conquistados (cf. OFFE, 1984, p. 19-22).

Descrevendo as diferenças entre o trabalho industrial e o trabalho em serviços, Offe destaca que o trabalho industrial seria estruturado pelas racionalidades técnica e

estratégica, organizando-se em torno do “regime da produtividade técnica e organizacional da valorização” e da “decisiva rentabilidade de cada unidade econômica”. O trabalho em serviços, por sua vez, despido de critérios claros de “controle da execução” e de

60 “economicidade”, seria regulado por uma “racionalidade material” abstraída do trabalho industrial, dotada de um caráter normatizador e voltada para a “garantia institucional do existente” (OFFE, 1984, p. 24).

O processo de fragmentação do trabalho social gera rupturas e conflitos no interior da própria classe trabalhadora, estabelecendo “sistemas de restrições e aversões recíprocas, de cunho cultural e político” e opondo o serviço público aos “protagonistas do modelo da sociedade do trabalho, isto é, a antiga classe média e o operariado”, de modo a incapacitar os trabalhadores a se organizar coletivamente de maneira coesa e integrada (OFFE, 1984, p. 25).

As análises teóricas apresentadas demonstram um conjunto de fragilidades no campo das relações de trabalho sob as novas bases de expansão e regulação produtiva do capitalismo contemporâneo. A concepção de trabalho agrega não apenas um campo de domínio econômico mas também uma força política a partir de influência e interesse consentidos coletivamente sob uma condição de mando. Essa condição é muitas vezes apresentada como abstrata ou “neutra”, assim fortalecendo o poder dominante e os instrumentos de coerção. O trabalho é abstraído e se configura em uma base de relações culturais. De modo específico, ele representa valor significativo material e imaterial para a sociedade humana.

Nesse sentido, a referência estratégica e a racionalidade específica do trabalho na produção são a apropriação e a transformação da natureza externa, com o objetivo da geração da riqueza social. Frente a isso, a referência estratégica do trabalho em serviço – que por isto mesmo é chamado de metatrabalho, trabalho reflexivo ou

secundário [...] – é a garantia do ordenamento institucional e das demais condições funcionais para o andamento do trabalho na produção. (OFFE, 1991, p. 57)

Sobre a relação interdependente do trabalho na produção e nos serviços, que em cada núcleo assegura as suas particularidades, Offe (1991, p. 57) descreve a referência estratégica e a racionalidade específica de cada um dos espaços produtivos. Quanto à referência estratégica e a racionalidade do trabalho na produção, considera-se a capacidade de apropriação da matéria-prima e a transformação para sua finalidade utilitária a serviço da riqueza social. Aqui se insere a produção artesanal ou industrial em série.

Compreende-se a referência estratégica do trabalho em serviço ou metatrabalho quando a ação ou o resultado qualitativo produzido não depende apenas do sujeito prestador de um serviço mas também das condições vivenciadas pelo sujeito usuário - ou seja, aquele que atribui representação valorativa do resultado produzido. As condições de trabalho, a imaterialidade ou subjetividade remete a um processo “reflexivo”, intuitivo por parte dos trabalhadores em serviço.

61 Para desenvolver a compreensão do processo de trabalho em saúde, buscamos as contribuições teóricas de Claus Offe (1991), cujos estudos apontam para o crescimento do setor de serviços, também denominado setor terciário. O autor discorre sobre um conjunto de definições que considera residuais ou insatisfatórias frente à complexidade de que se reveste a área e sugere uma definição funcional do trabalho no setor de serviços:

Para compreensão desta definição é necessário pressupor que o processo global de reprodução de uma estrutura social pode ser concebido como composto de duas funções parciais: primeiro, da satisfação social das condições físicas de sobrevivência, através das respectivas atividades econômicas “produtivas”, e, segundo, de atividades que servem à manutenção ou modificação das formas de preenchimento da função inicialmente mencionada... Simplificando, falamos então de uma função parcial de “produção” e uma de certificação da forma. (OFFE, 2001, p. 15)

Destaca o autor que a referência estratégica corresponde “a dois estilos de racionalidade” que podem ser delimitados com os conceitos de “eficiência e eficácia”. O trabalho na produção exige ser “organizado de modo ‘mais eficiente’, isto é, [...] mais regular, padronizado, constante, previsível e controlável, apresentando assim menores custos” (OFFE, 1991, p. 57). Podemos citar como exemplo uma estrutura de produção de exames laboratoriais na área da saúde, a qual produz com eficiência quando estabelece regularidade, padronização, constância, previsibilidade e controle dos processos produtivos. Constatam-se maiores condições de reprodução dos processos produtivos, e obtenção de resultados homogêneos, quando se utilizam tecnologias duras, ou seja, instrumentos, equipamentos de trabalho e meios operativos para produção industrial.

O autor ainda ressalta que

A objetividade da determinação estratégica do trabalho na produção é marginalmente [mais bem] satisfeita na medida em que ele seja organizado de modo “mais eficiente”, isto é, seja mais regular, padronizado, constante, previsível e controlável, apresentando assim os menores custos. Em contraposição, o trabalho em serviços é determinado no sentido da “garantia”, ou seja, da orientação estratégica a partir dos riscos, das perturbações, irregularidades, incertezas, imponderabilidades do ambiente natural, técnico e social que ele deve absorver e processar, predominando os critérios da eficácia na preservação dos efeitos perturbadores do processo produtivo. (OFFE, 1991, p. 57).

Considera-se que a produção de serviços de atenção à saúde, a ser desenvolvida por diferentes trabalhadores de saúde para diferentes pessoas e problemas, baseia-se em referência técnica e evidências cientificas, obtendo a “garantia” das intervenções ou resultados esperados quando é ancorada em linhas de conduta ou protocolos convencionados cientificamente.

62 A análise das concepções torna presente a complexidade do serviço e dos processos de trabalho em saúde, com

• reconhecimento indiferenciado das possibilidades de risco ou perturbação (modificação, desordem ou alteração) que influem nas intervenções diagnósticas ou terapêuticas, com pessoas diferentes e doenças comuns;

• atuação, com mediações necessárias, em um campo permeado pela incerteza dos processos interventivos, ou dos resultados esperados, mesmo que apoiados em evidência clínica;

• desenvolvimento de habilidades para mediar ações, contando com a imponderabilidade (ambiente físico, natureza humana, capacidade técnica, representação valorativa da sociedade);

• controle dos métodos científicos e reconhecimento das evidências clínicas, entre outros meios estratégicos que envolvem a participação de sujeitos profissionais e usuários dos serviços, para promover a eficácia dos resultados.

Em situação especifica, compreende-se como componente do trabalho em saúde o aporte tecnológico (máquinas, computadores, próteses e medicamentos etc.) junto a uma atuação pautada pelas tecnologias leves (escuta, acolhimento, conduta de evidência clínica e qualificação do cuidado) entre outros meios e processos que compõem a complexidade, a variabilidade e a dinamicidade dos serviços de saúde.

Merece ser retomada nesta pesquisa a contribuição analítica de Campos (2007), cujo texto apresenta discussão sobre a categoria teórica marxista do valor de uso:

Alguém poderá arguir-me sobre o sentido com que emprego a categoria valor de

uso. Sim, Marx valeu-se dela para analisar a mercadoria, em suas duas faces: um valor de troca e valor de uso. Bem, não encontrei em Marx nenhuma restrição ao seu emprego em outros contextos. O resultado do trabalho em sistemas públicos, ainda que dentro de uma formação capitalista, o Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, que face teria? Qual o interesse em produzir bens ou serviços em sistemas públicos? Bem, penso que os serviços que produzimos - consultas, assistência, cuidado, aulas, pesquisas, programas etc. - não podem ser caracterizados como mercadoria. (CAMPOS, 2007 p. 13-14)

O trabalho em saúde não produz uma mercadoria e, dessa forma, não representa um valor de troca. Considerando que o serviço de saúde ou as práticas profissionais são experienciados de modo subjetivo e valorativo pelos usuários, em ato podem ser avaliados os resultados produzidos: satisfação, resolutividade ou ao contrário.

63 Outras concepções que representam o contexto do setor de serviços em saúde considerando finalidade, desempenho e resultados apresentam outras categorias analíticas de base estrutural ou conjuntural de uma sociedade. O setor de serviços é mais exposto ou visível a usuários, trabalhadores e gestores institucionais, bem como à população geral. Na condição de sujeitos de uma experiência, identificam-se mais imediatamente as contradições ou localizam-se as causas determinantes do processo de reprodução de uma estrutura social.

De outra forma, o sujeito avalia o resultado imediato do serviço de saúde correlacionando os avanços ou contradições com a estrutura política de governo, com a cultura dos servidores públicos, com a capacidade produtiva do trabalho das equipes e com a habilidade humana dos profissionais de saúde. Entre outros enfoques, as causas de reprodução macroinstitucional ou de condições micro das relações humanas caracterizam a identidade e a qualidade do serviço prestado.