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SAÚDE E DOENÇA NA PROVÍNCIA DO PARANÁ

CAPITULO III CONTEXTO SOCIO HISTÓRICO DA ATENÇÃO À SAÚDE NO

3.1 SAÚDE E DOENÇA NA PROVÍNCIA DO PARANÁ

Na história do desenvolvimento da nação brasileira, de modo especifico na ocupação do solo e na expansão populacional pelo território da província do Paraná e de Curitiba, sua capital, definiram-se as bases produtivas da economia, a política e a cultura de uma sociedade da qual historicamente se apreendem os determinantes do processo de doença e saúde.

Com base em estudos, documentos e citações de protagonistas que em diferentes momentos demarcaram a construção dessa sociedade, demonstram-se as experiências na área da saúde pública ou saúde coletiva, entre outros projetos de desenvolvimento social, de iniciativa estatal ou popular. Destacam-se os eventos, os programas institucionais e as práticas da ciência e do saber popular que protagonizaram estratégias de intervenção e contribuíram na elaboração das políticas de saúde. Destacam-se ainda, entre outras iniciativas da área da saúde pública, aquelas práticas que demonstram os fundamentos de cuidados primários à saúde no Paraná e em Curitiba, desenvolvidos no período provincial.

Por meio de uma ação política impulsionada pelo governo provincial de São Paulo a partir de 1850, empreendeu-se um amplo programa de colonização que teve a contribuição de imigrantes alemães, italianos, poloneses e ucranianos, mobilizados pela estratégia de ocupação das terras da província paranaense, com a meta de renovação de sua estrutura econômica e social. No início do regime imperial brasileiro (1822), o território do Paraná pertencia à província de São Paulo, da qual se desmembrou em 1853. Nessa época, o cenário econômico brasileiro se diversificava com a produção de café, cultura que atraiu milhares de imigrantes das províncias do Sul, do Sudeste e do Nordeste do país.

74 Em tese de doutorado sobre Saúde e doença na província do Paraná, Márcia Teresinha Andreatta Dalledone Siqueira desenvolve uma descrição fundamentada sobre o estudo das doenças epidêmicas que acometeram a população paranaense naquele período, destacando as políticas de saúde adotadas, demonstrando a inter-relação do saber científico com o saber popular. Esclarece a autora que a fonte de dados representa o discurso oficial ou da classe dominante à época, qualificando as características do período estudado e servindo à reconstituição da trajetória da doença e à sua articulação com as políticas de saúde naquele contexto histórico (SIQUEIRA, 1989, p. 12-13).

Considerando que, nesse contexto histórico, a noção de saúde pública pautava-se pela concepção do binômio saúde-doença, no período colonial associado à ideia de sujeira: para se atingir a saúde era necessário cuidar da limpeza. Nos centros urbanos, o poder municipal era responsável tanto pela “coleta de esterco e de lixo, quanto pela supervisão dos mercados, comércio e portos e também pelos cuidados relativos a animais e águas. Assim o que deveria ser evitado nesta sociedade era a sujeira e a doença.” (SIQUEIRA, 1989, p. 34)

Desde o período provincial, seja na sociedade brasileira como um todo ou no contexto paranaense, demonstram-se condutas adotadas pela população no exercício da responsabilidade, cobrando do poder público o enfrentamento das doenças endêmicas, a mais comum competência da saúde pública nessa época, assim conformando concepções de saúde e doença:

Saúde e doença são, portanto noções que caminham juntas, refletem e são reflexos das estruturas de uma dada sociedade, modificando-se no tempo e no espaço. Neste contexto as estruturas sociais podem tanto levar a melhores condições de saúde, educação, alimentação, habitação, bem como salário e transporte, além de favorecer as condições de trabalho, participação política ou então provocar diretamente a expansão de doenças. (SIQUEIRA:1989, p 1)

Assim, delinearam-se as primeiras estratégias de ação em saúde no período provincial, fortalecendo-se a noção de saúde-doença, quando possível nas mediações entre Estado e sociedade, mas de outra forma em manifestação de confronto entre conhecimento popular e prática médica vigente. Nesse período, as características conceituais e práticas específicas do setor de saúde eram de confronto na inter-relação do saber científico com o saber popular. Nessas bases se desenvolveram as condutas da prática medica, bem como a adesão da população diante do contexto e da complexidade dos problemas a serem enfrentados.

A característica ideológica que fundamentava as práticas em saúde no período provincial representava a conjuntura política de um Estado incipiente na sua constituição e na

75 sua responsabilidade social. Os modos de intervenção, bastante restritos na época, eram comprometidos pelas limitações na capacidade tecnológica do trabalho em saúde, bem como pela escassez de recursos alocados na estrutura provincial. De outra forma, considerando a vigência da cultura da colônia portuguesa e as condutas de um sistema de governo provincial autoritário, contextualizavam-se os limites do desenvolvimento da medicina cientifica, a qual buscava se impor na relação de confronto com o saber popular presente naquele contexto histórico:

Assim, o saber científico confrontou-se muitas vezes com o saber popular, embasando-se em seus conhecimentos, experiência, que, depois de aceita, tornava- se científica e, consequentemente oficial. O Estado desempenhava, portanto, uma ação efetiva pela sua articulação com as políticas de saúde. Esta fase de prevenção não visava ao indivíduo, mas à sociedade. (SIQUEIRA, 1989, p. 322)

Nessa conjuntura, o estudo de Márcia Siqueira destaca o impasse das condutas dos profissionais de saúde, que encontravam dificuldades em considerar o saber popular em saúde, pois na sociedade brasileira o saber popular era uma condição posta como obstáculo para a implantação das práticas assistenciais em saúde, provenientes do saber médico. Contrapondo-se a isso, o referido estudo argumenta que a medicina também passou por uma fase empírica antes de se tornar reconhecida como ciência. No período enfocado, o Estado se apresentava como um mecanismo de suporte ou intervenção diretiva, respaldando os interesses do modelo de medicina que fundamentava as características da saúde pública vigente.

A mesma autora ainda destaca que, no Brasil do século XIX, duas propostas de medicina social se impuseram de maneira mais significativa, oriundas

• da Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, representando o pensamento da elite agro-exportadora, preocupada com o operariado e se traduzindo no discurso oficial; e

• da Escola Tropicalista Baiana, influenciada por três médicos de formação sanitarista e clínica, os pesquisadores Antonio Silva Lima (português), James Patterson (inglês) e Otto Wücherer (alemão), que tinham como proposta a articulação entre saber e pratica, associando-a às questões sociais e objetivando o escravo enquanto força de trabalho. O saber baseava-se na observação direta da doença e das autópsias, conforme modelo alemão (cf. SIQUEIRA, 1989, p. 40-41)

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As referidas escolas de medicina partiam de pressupostos diferenciados que explicitavam o processo econômico, político e cultural vigente na sociedade brasileira. Portanto, assumiam concepções diferenciadas na explicação e na analise de causas e efeitos das doenças, como também adotavam estratégias diferentes no reconhecimento de necessidades de saúde, buscando o enfrentamento das questões sociais de maneira opostas:

Na Escola Tropicalista, dada a sua orientação teórica, a atenção que inicialmente visava à higiene, partiu em direção à medicina legal, devido à ênfase que dava às autópsias. Já para a sociedade de medicina do Rio de Janeiro, o caminho vai ser o inverso: partindo da medicina legal, assiste-se ao longo do século ao aumento da ênfase dedicada à higiene pública e, consequentemente, à medicina preventiva. Isso em virtude de uma postura política surgida com a medicina social. (SIQUEIRA, 1989, p. 42)

Ocorreram também transformações na noção de prevenção com a formulação de novas posturas políticas para a área da saúde, com a adoção de medidas mais específicas e detalhadas. A higiene pública passou a ser organizada não somente pelos governos municipais mas também pela população envolvida. Essa conduta de saúde púbica ou coletiva marca o inicio da convocação do município e da população como sujeitos responsáveis pela execução de ações preventivas e interventivas no meio ambiente com vistas à melhoria das condições de saúde. Ao município cabia a responsabilidade de alocação de uma infra-estrutura de serviços, dando atenção às questões de abastecimento de água, esgoto, detritos, ocupação de solo, habitação e alimentação coletiva.

A sociedade deveria criar regras para orientar as condutas ou formas de adaptação do homem à natureza. Contrariamente, observa-se a exploração desordenada do solo, a apropriação inadequada dos recursos minerais, vegetais e animais. Como resultado,desenvolvem-se na cultura brasileira formas de apropriação desequilibrada da natureza pelo homem, com repercussões desastrosas para a qualidade de vida e de saúde da população desde o inicio da colonização do país.

As noções de saúde e doença construídas na província do Paraná, bem como o campo do saber médico, tiveram influência da Escola de Medicina do Rio de Janeiro, que era o modelo oficial disseminado e adotado em todas as províncias do império. O enfoque da pratica médica pautava-se pelo controle dos microorganismos patogênicos causadores de reações biológicas no corpo humano. Transformada em um problema político e econômico do Estado, a saúde passou a ser desenvolvida pautando-se pela estratégia de relação determinante

77 e direta entre o homem e seu meio ambiente – o que, ao longo do tempo, apresenta diferentes formas de interpretação.

Mesmo assim, considerava-se que as possibilidades de atenção ou recuperação da saúde estava sujeita a um confronto entre o saber cientifico e as práticas populares vigentes naquele período. Cada época, cada nação e cada cultura têm formas próprias de entrever e interpretar o projeto de saúde e doença. São legados que agregam valores e princípios tanto do saber técnico como do saber popular e nessa relação dialética constroem-se teorias, qualifica- se um saber cientifico e sua consequentes práticas constituindo modelos tecnológicos assistenciais no campo da saúde.

Em outro estudo que destaca o período provincial, Jaime Reis (1889) discorre sobre os problemas de saúde mais comuns na cidade de Curitiba, os quais eram de características endêmica e epidêmica, relacionando-se a doenças como tétano, coqueluche, disenteria, febre tífica, tifo exantemático, influenza, pneumonia, erisipela, febres, paludismo, sarampão, varíola, escarlatina e difteria. Para todas as doenças descritas eram apresentadas medidas profiláticas, entre outras estratégias pontuais que visavam ao enfrentamento dessas doenças típicas, de características endêmica ou epidêmica, que ocorreram no período provincial.

Nesse período, destacam-se fases distintas no processo saúde e doença, de um lado com a busca do desenvolvimento da higiene pública e de outro com iniciativas restritas ao desenvolvimento da ciência médica. A medicina e o Estado buscavam criar mecanismos de controle do quadro sanitário, especialmente pelas medidas tomadas diante dos flagelos epidêmicos, com o estabelecimento de cordões sanitários de isolamento, quarentenas e hospitais provisórios.

Em outra obra que resgata as origens e a evolução histórica da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (Sesa-PR), Lindolfo Ribeiro Fernandes Júnior (1987) desenvolve como marco de referência aspectos da saúde pública a partir do período provincial. Nesse pioneiro estudo, o autor demonstra uma apreensão significativa da origem e da evolução histórica da infra-estrutura de serviços de saúde implantados nos diferentes períodos de desenvolvimento socioeconômico e político no Paraná e no país. Em diferentes contextos da economia, da política e da cultura paranaense e brasileira, destacam-se experiências de protagonistas que construíram a história da saúde pública no estado, condição em que se insere o próprio autor.

Mensagens destinadas ao Poder Legislativo na época provincial e nas décadas iniciais da república destacam em documentos que o principal agente de saúde pública no Paraná e em Curitiba particularmente era o clima da região como determinante das condições de vida dos que aqui residiam. Destaca o autor um no pronunciamento de Zacarias de Góes e

78 Vasconcellos, presidente da província do Paraná em 1854, que

Não houve epidemia nem peste, antes Saúde em abundância, para abonar a bondade deste clima, e só dele, porque a Saúde Pública poucos ou nenhuns desvelos tem merecido aqui dos indivíduos constituídos em poder, os quais nisso procedem como se fora ela exclusivamente de alçada da natureza [...]. (Apud FERNANDES, 1987, p. 4)

Assim, demonstram-se os argumentos que justificam a falta quase absoluta de recursos necessários à instalação de um serviço sanitário adequado e permanente na cidade de Curitiba, entre outras cidades da província. Diante das considerações de que, em comparação com outras províncias do império, a população vivia em “boas condições de saúde” graças à ótima salubridade de seu clima e à dispersão de suas comunidades, o que dificultava a propagação das diversas doenças contagiosas que graçavam na época.

A Inspetoria Geral de Higiene do Paraná foi criada em 1886, com sede em Curitiba e a função de fiscalizar o exercício legal da medicina, bem como orientar as inspeções de higiene nas principais cidades paranaenses. Essa estrutura de política governamental antecedeu a Secretaria Estadual de Saúde e atuou com características de repartição pública, dispondo de escassos recursos técnicos e financeiros. Dessa forma, limitou sua atuação sobre demandas ou problemas de saúde detectados sob suspeita ou comprovação de casos de moléstias contagiosas em determinadas áreas da cidade e em municípios vizinhos. Quando a equipe técnica não conseguia deslocar-se para as áreas de atuação, encaminhava vacinação coletiva, bem como procedia à administração de medicamentos, entre outras medidas de controle das doenças.

Um dos problemas sanitários que mais angustiavam as autoridades provinciais paranaenses estava nos sepultamentos, compreendidos como necessários para manter “os bons ares da cidade” – ou promover um ambiente livre de germes causadores das doenças epidêmicas. Ao governo da província cabia delegar essa função ao município, que era o responsável pela definição e o controle dos locais de sepultamentos e pela alocação dos recursos necessários à construção de infra-estrutura apropriada para a finalidade. Convém ressaltar que a população detinha valores culturais e religiosos que impunham os sepultamentos no espaço de igrejas, hospitais e terrenos privados, sem se preocupar com as consequências dessa prática.1

1 Coube ao governo proporcionar uma legislação específica para o controle dos sepultamentos em locais definidos, afastados

79 Além do problema sanitário dos sepultamentos, havia preocupação com o abastecimento de água potável, o destino dos dejetos e a dessecação dos pântanos, que eram característica de parte do território no município de Curitiba. Essas intervenções no espaço urbano podem ser consideradas como práticas iniciais associadas à saúde pública, a partir do período provincial e até os anos 1920, durante a República Velha.

Por iniciativa do império em associação com a Igreja Católica, os primeiros serviços hospitalares da província do Paraná foram implantados na Santa Casa de Misericórdia. A primeira instalação do hospital deu-se em um prédio provisório que, doado pela Maçonaria, funcionou precariamente de 1855 a 1880, quando foram inauguradas novas instalações. Foram 25 anos de dificuldades econômicas, falta de apoio político e recursos financeiros para a construção do novo prédio.

Houve pressão de lideranças econômicas da província do Paraná para a implantação de recursos hospitalares, a fim de atender os migrantes europeus que chegavam naquela época, pois a infra-estrutura de serviços de saúde fazia parte dos contratos de imigração europeia para o Brasil e “Assim, o maior interessado na conclusão e funcionamento do novo hospital era o próprio governo provincial, ávido por receber mais e mais imigrantes europeus, necessários à colonização de seu território e ao incremento da economia.” (FERNANDES JUNIOR, 1987, p. 10)