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MORFOSTASE E REORGANIZAÇÃO PERMANENTE Onde existe anel recorrente não existe nada que esteja fora do fluxo, da de-

Defino aqui como recorrente todo o processo através do qual uma organi zação activa produz os elementos e efeitos que são necessários à sua própria ge-

B) MORFOSTASE E REORGANIZAÇÃO PERMANENTE Onde existe anel recorrente não existe nada que esteja fora do fluxo, da de-

gradação, da renovação. A própria organização é constituída por elementos em trânsito, é atravessada pelo fluxo, a degradação, a renovação. A maravilha, o paradoxo e o problema residem no facto de esta actividade permanente e ge- neralizada produzir estados estacionarios, no facto de o turnover ininterrupto produzir formas constantes, no facto de o devir incessantemente criar ser. Co- mo iremos ver, as organizações recorrentes são organizações que, no e pelo de-

sequilíbrio, na e pela instabilidade, no e pelo aumento de entropia, produzem estados estacionarios, homeostasias, isto é, uma certa forma de equilibrio, uma certa forma de estabilidade, uma forma certa de constância, uma verdadeira morfostase.

1. O estado estacionario

A constância da chama duma vela, da forma dum remoinho, da morfolo- gía duma estrela, a homeostasia duma célula ou dum organismo vivo são inse- paráveis dum desequilibrio termodinâmico, isto é, dum fluxo de energia que as percorre. O fluxo, em vez de destruir o sistema, alimenta-o, contribui necessa- riamente para a sua existência e para a sua organização. Mais ainda, a paragem do fluxo provoca a degradação e a ruína do sistema.

Trata-se, portanto, de considerar estes estados, que se equilibram no dese- quilíbrio; que, compostos por elementos instáveis, são globalmente estáveis; que, percorridos por fluxos, são constantes na sua forma. O termo steady

State, ou estado estacionario de não equilíbrio, defíne-os. A partir dai, surge o problema organizacional: como é que estas formas e estes estados estacionarios estão ligados à mudança e ao movimento?

Já é muito notável que exista um estado estacionario apesar de haver dese- quilíbrio, instabilidades, movimento, mudança. É perfeitamente admirável que exista um estado estacionario porque há desequilíbrio, instabilidades, movi- mento, mudança.

A invariância relativa das formas do sistema depende, efectivamente, do

turnover dos seus elementos constitutivos. Temos pois de conceber que a per- manência do movimento mantém a organização da permanência das formas e que esta organização mantém o movimento. A partir daqui, surge uma relação recorrente entre a organização e a renovação dos constituintes, incluindo os constituintes desta mesma organização. Daí nasce e mantém-se o estado primá- rio de toda a organização activa: o estado estacionario.

O sistema activo só pode ser estabilizado pela acção. A mudança garante a constância. A constância garante a mudança. Toda a organização da constân- cia destina-se a garantir a renovação, que por sua vez garante a constância. Os dois caracteres antinómicos activismo/invariância, por um lado, estacio- naridade/constâncià, por outro, não só concorrem entre si, mas também co-produzem-se mutuamente:

activismo/dinamismo > estacionaridade/constância

Esta idéia é claramente visível nos remoinhos, onde a forma fenoménica e o cinel generativo se confundem: aquilo que é constante é, ao mesmo tempo, aquilo que está em movimento. O movimento recorrente é aquilo que transfor- ma o escoamento dinâmico dum fluxo em circuito de forma constante, e, a partir daí, cada um dos dois termos co-produz o outro. O fluxo é a condição do trabalho, o qual transforma o fluxo em organização produtiva, não tanto a produção dalgum objecto, mas a produção-de-si; não tanto a organização dal-

178 EDGAR MORIN guma actividade distinta, mas a*organização-de-si. O fluxo alimenta o circuito recorrente, que é o do todo orgknizador-de-si.

O estado estacionario deve ser concebido como um aspecto-chave da pro- dução-de-si, e isto nos dois sentidos, o sentido da produção e o sentido do si.

Para começar, o estado estacionario faz parte da organização recorrente que o produz: não só é renovado permanentemente, mas também é necessário à renovação do próprio processo recorrente: é necessário que exista uma cons- tância, uma permanência, numa palavra, um ser, para que exista a organização que alimenta este ser. O ser, à sua maneira, mantém a organização que, por sua vez, o mantém.

E aqui o aspecto ontológico do estado estacionario deve ser sublinhado tanto mais que geralmente é ignorado. Como uma maionese sob o rodopio da batedeira, o ser e a existência adquirem uma primeira consistência, sob o efeito da recorrência, no e pelo estado estacionario. Com efeito, a partir da desor- dem, o movimento generativo produz uma ordem e um determinismo internos; a partir da improbabilidade estatística geral, produz uma probabilidade de existência local e temporária. Através do mesmo movimento criam-se, mantêm-se e conservam-se, reciprocamente, organização, ser e existência. Com efeito, ser é permanecer constante nas suas próprias formas, na sua própria or- ganização, na sua própria genericidade, isto é, na sua própria identidade. O es- tado estacionario constitui assim o estado primário dum ser dotado duma orga- nização activa. E, para o ser vivo, a homeostase, complexo de estados estacio- narios pelo qual o organismo mantém a sua constância, identifica-se com o ser deste organismo. "

O estado estacionario, numa física atomizada sem conceito de organização e sem conceito de ser, é um estado físico particular. Pelo contrário, vemos que, numa perspectiva de organização recorrente, e portanto generativa, é um ser dotado de quanto-a-si, que se forma e se consolida no e pelo estado estaciona- rio.

2. A dinâmica estacionaria: nnetadesequilíbrio, meta-instabilidade

Nestas condições, não podemos opor como alternativas simples equili- brio/desequilibrio, estabiUdade/instabilidade: temos simultaneamente de en- globar e ultrapassar estes termos que se tornam complementares, sem deixarem de ser antagónicos.

Efectivamente, nem a noção termodinâmica (ausência de fluxo), nem a no- ção mecânica (estado de repouso resultante da igualdade das forças antagóni- cas) de equilibrio, nem a noção de desequilibrio são pertinentes qugndo consi- deradas isoladamente para a compreensão do steady state e, no entanto, cada uma delas pode contribuir com uma parte de verdade contanto que falemos de

metadesequilíbrio. Nesta noção, equilibrio e desequilíbrio associam-se comple- mentarmente (visto que o desequilíbrio é necessário ao sempre recomeçado reequilíbrio do estado estacionario), mas permanecem antagónicos. A idéia de metadesequilíbrio é uma idéia activa; é o equilíbrio/reequilíbrio, desequilíbrio compensado ou recuperado, a dinâmica de reequilíbrio.

A complexificação da relação equilíbrio/desequilíbrio devemos juntar a complexificação da relação estabilidade/instabilidade. A idéia de estabiUdade

comporta já não só a manutenção dum estado definido, mas também a pro- priedade de retomar este estado após pequenas perturbações. Neste sentido, podemos considerar o steady state como um estado de estabilidade, que supor- ta variações e oscilações. Mas é esquecer que o regresso ao estado estável, no

steady state, não é o regresso ao repouso, mas o produto da actividade. É es- quecer sobretudo que o steady state comporta a instabilidade como virtude ori- ginal. Já vimos: o desequilíbrio e a instabilidade são genésicos, a organização activa apresenta indelevelmente a marca desta origem; nasceu das turbulências, choques, rupturas, antagonismos. Este traço genésico tornou-se genérico: os sóis, os remoinhos, os turbilhões contêm a confrontação de que nasceram.

Na sua origem, na sua existência, na sua permanência, os estados estaciona- rios dos seres-máquinas comportam, como factor fundamental, da sua ordem e da sua organização, um factor fundamental de desordem e de desorganização. Assim, o steady state nasce duma instabilidade, mantém-se através de insta- biUdades, reconstitui incessantemente uma estabilidade global para lá da insta- biUdade. Poderíamos ter falado de meta-estabilidade, se o termo não tivesse já um emprego físico circunscrito. A idéia de ultra-estabilidade (Ashby, 1956), proposta para exprimir a propriedade dum sistema de manter a sua estabilida- de, em condições de stress que normalmente deviam suprimi-la, poderia integrar-se aqui, mas seria insuficiente. Precisamos duma noção que indique que a estabilidade nova já não é uma verdadeira instabilidade nem uma verda- deira estabilidade: donde a idéia, que sugiro, de meta-instabilidade, que se in- tegra na idéia de dinamismo estacionario'.

O que aqui foi dito vale a fortiori para o ser vivo, no qual (e para além do equilíbrio e do desequilíbrio, da estabilidade e da instabilidade) a unidade do ser e do movimento se efectuam neste estado seguro e frágil, constante e flutuante: a vida.

Assim, para concebermos toda a organização activa, toda a máquina natu- ral, temos de associar de modo central as idéias de equilíbrio e de desequilíbrio, de estabilidade e de instabilidade, de dinamismo e de constância; mas esta asso- ciação deve ser concebida como anelamento, isto é, como relação recorrente entre estes termos que formam circuito, onde aquilo que é gerado gera, por sua vez, aquilo que o gera.

3. A Idéia de regulação

A idéia de regulação aparece no universo das máquinas artificiais com a ci- bernética; é a introdução de dispositivos informacionais que operam uma re- troacção negativa por detecção e anulamento do erro. A partir daí, parece uma das propriedades da organização propriamente informacional. No entanto, notara-se que existiam nas máquinas pré-cibernéticas dispositivos de retroacçâo negativa (como o dispositivo de esferas na máquina a vapor). Todavia, não se extraiu a conseqüência teórica de que a regulação precede a informação. Ora

' Assim, incessantemente a organização reequilibradora, reestabilizadora reage às perturbações que sobrevêm do exterior (variações nos fluxos, forças e pressões) e do interior (tendência para a dis- persão e para a desintegração), e a sua reacção manifesta-se através de pequenas flutiiações que, ao mesmo tempo, exprimem (desvio) e corrigem (regresso à norma) as perturbações sofridas.

180 EDGAR MORIN importa fundar a regulação, nã« na informação, mas no anel recorrente; este não é um dispositivo que aperfeiçoe o automatismo, a eficacia, a fiabilidade das máquinas; é generativo da própria existência do ser. Importa pois salientar que:

• O seres-máquinas naturais não podem existir sem regulação e que a regula- ção é um dos caracteres próprios da retroacção recorrente do todo e sobre o todo; • As arquimáquinas e as máquinas selvagens não comportam um dispositi- vo especifico de correcção do desvio e do erro.

O anel retroactivo não é, portanto, fundamentalmente, o resultado ou o efeito do dispositivo informacional de correcção do erro; é o anel retroactivo que é fundamental, e o dispositivo informacional corrector é um desenvolvi- mento próprio do fenómeno vivo, que ressurge, de modo unicamente regula- dor, no estado cibernético das máquinas artificiais.

Como vimos, a regulação espontânea da estrela, fruto de dois processos an- tagónicos, confunde-se com o anel retroactivo dum todo formidavelmente complexo. Esta regulação comporta, no que concerne o nosso Sol, enormes pulsações de amplitudes vastíssimas, sobressaltos e paroxismos. Comporta tur- bulências aterradoras na fotosfera. Comporta enormes desordens. O admirá- vel não é tanto o carácter grosseiro desta regulação, ameaçada por enormes desordens que podem fazer explodir a estrela, no seu percurso, como indicam as migalhas de sol que semeiam aqui e ali o mapa celeste. O admirável é que esta regulação, unicamente espontânea, suporte e supere tais desordens. Mais uma vez, aquilo que omitimos admirar no mundo, não só biológico e antropos- social, mas também físico, foi a'virtude espontaneista da organização-de-si.

Estamos demasiado habituados a procurar e encontrar a regulação num dispositivo de correcção de erros e não na poiesis, onde o jogo das solidarieda- des e dos antagonismos forma um anel. Porque a totalidade activa não é, repe- timos, uma transcendência investindo as partes, mas o conjunto das inter- -retroacções entre partes e todo, todo e partes.

Assim, toda a organização activa comporta necessariamente uma regula- ção, no sentido em que a retroacção do anel (ou circuito recorrente global) ten- de a anular os desvios e perturbações que surgem relativamente ao processo to- tal e à sua organização; assim, esta retroacção do todo pode dizer-se negativa.

É evidente que existe uma distância prodigiosa entre as regulações espontâ- neas da grande caldeira solar, indistintas da produção e reorganização-de-si, onde o que aquece, o aquecer e o aquecido são o mesmo, e a regulação da cal- deira de aquecimento central com termóstato, que só concerne o funcionamen- to da máquina.

Todavia, mesmo neste caso em que se apresenta muito circunscrita e apa- rentemente muito simples, a regulação é muito mais do que uma ccjrrecção do desvio própria dum dispositivo sui generis, quanto mais não seja porque a in- trodução deste dispositivo acarreta a criação dum anel não só entre as «saidas» e as «entradas» da caldeira, mas também entre esta e entidades do seu meio. Comecemos por considerar uma caldeira sem termostato. Esta corresponde a uma organização aparentemente atomística do aquecimento em que estão im- plicadas três unidades distintas:

De facto, existe não só fluxo e transformação de energia entre estas três entida- des, mas também ajustes e regulações, sendo estes efectuados por seres huma- nos.

A introdução dum termostato, digamos no local a aquecer", constitui a in- trodução dum dispositivo de regulação nas relações entre alimentação/cal- deira/local. O termóstato estabelece uma medida e fixa uma norma. Mede, através da temperatura, o calor produzido no local, e, quando esta temperatu- ra desce abaixo do grau requerido, a informação assim inscrita conve-te-se num sinal que desencadeia e aumenta a combustão até ao restabelecimento da norma.

Ora a introdução deste dispositivo de retroacção cria, de facto, um metas- sistema de tipo novo em relação às anteriores inter-relações entre as três entida- des: o caudal da alimentação, a combustão na caldeira e a temperatura do local tornaram-se automaticamente interdependentes no seio duma nova totalidade retroactiva dotada de qualidades próprias. O anel não está só entre as «infor- mações de saida» (output) que retroalimentam (feed-back: retroalimentar) as «informações de entrada» (input). O anel está agora entre a alimentação, a cal- deira e o local, via comimicação de informações. Já não existe unicamente a máquina-caldeira, existe a constituição dum ciclo maquinai mais vasto que en- globa a alimentação e o local. O anel constitui, em suma, uma organização re- corrente que se gera por si mesma, e se desvanece logo que pára. A partir dai, o anel retroactivo comporta e traz as seguintes propriedades organizacionais:

alimentação ^ caldeira ^ local

t

L

termostato <-

• A organização e a manutenção dum estado estacionario;

• A organização duradoura dum estado improvável, por modificação do jogo provável das causas e dos efeitos (sendo a probabilidade, a curto prazo, a combustão intemperante e, a longo prazo, a homogeneização das temperaturas exterior e interior);

• A organização dum trabalho antagónico à homogeneização das tempera- turas, criando e organizando uma heterogeneidade térmica;

• O estabelecimento dum determinismo interno opondo-se aos acasos e perturbações de origem interna e externa, nomeadamente a conjuração dos pe- rigos (incendiarios, explosivos) de sobreaquecimento e dos perigos (gelo, etc.) de subaquecimento;

• A sujeição a uma norma, a um fim (cf., mais adiante, cap. iv desta parte).

Assim, a retroacção negativa não é exactamente um acrescento que traga o

finish da correcção, e a regulação não é um simples contributo de regularidade.

Poderia limitar-me ao termostato fixado na própria caldeira, que regula o aquecimento segun- do a temperatura da água no inicio, mas a integração do local, sem modificar em nada a natureza do exemplo, ilustra-o melhor.

182 EDGAR MORIN

Não é apenas a organização da pficácia e da precisão automática num funcio-

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