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É por haver organização que falamos àç physis No entanto, è um conceito ausente da física A ordem era a noção que, esmagando todas as outras, esma-

gara também a ideia de organização. Depois dos surgimentos da desordem e dos

primeiros refluxos da ordem, vimos finalmente a interacção tornar-se ideia cen-

tral na física moderna. A interacção é, efectivamente, uma noção necessária,

crucial; é a placa giratória onde se encontram a ideia de desordem, a ideia de

ordem, a ideia de transformação, e, finalmente, a ideia de organização. A físi-

ca converteu-se à ideia de interacção. Mas resta ainda fazer emergir a ideia de

organização.

Ora esta não pode tomar a forma dum principio que seria o antagonista complementar do segundo principio da termodinâmica. A origem generativa da organização é, como vimos, a complexidade da desintegração cósmica, a complexidade da ideia de caos, a complexidade da relação desordem/inlerac- çâo/encontros/organização.

Enquanto basta subir a temperatura dum ambiente para que um cubo de gelo se derreta, mexer os ovos para fazer ovos mexidos, não basta arrefecer o ambiente para que o gelo retome a sua forma ou mexer os ovos em sentido contrário para que voltem à sua forma; a organização não é a desorganização em sentido inverso. E é também devido a todas estas dificuldades que a organi- zação, questão fundamental onde desembocam todas as avenidas da ciência moderna, não podia ser tratada pela ciência clássica'; era uma questão comple- xa. Reduzi-la a uma questão simples é desorganizar a organização.

A ciência da ordem repeliu o problema da organização. A ciência da desor- dem, o segundo principio, só a revela no vazio, negativamente. A ciência das interacções só nos conduz até à sua antecámara. A organização está ausente da física, é o paradoxo da termodinâmica, o enigma dos sóis, o mistério da micro- física, o problema da vida. Mas que é a organização?

Que enigma é este, neste universo de catástrofe, de turbulência e de disper- são, e que aparece na catástrofe, na turbulência e na dispersão: a organização? É a esta questão que vou dedicar-me, não com a ilusão de definir uma «força organizadora« do tipo «virtude dormitiva do ópio», falsa solução que adensa o mistério, mas com a intenção de reconhecer o seu modo de existência e de de- senvolvimento. Isto vai exigir a discussão prévia da noção de objecto, que obs- truía com a sua massa opaca e homogénea o acesso a toda a ideia de sistema ou organização.

1 — Do objecto ao sistema; da interacção à organização

A) DO OBJECTO AO SISTEMA

A realeza do objecto substancia! e da unidade elennentar Num universo físico que conhecemos a partir das nossas percepções e das nossas representações, sob as espécies de matéria fluida ou sólida, de formas fi- xas ou mutáveis, no nosso planeta onde as aparências são infinitamente diver- sas e encadeadas, apreendemos objectos que nos parecem autónomos no seu ambiente, exteriores ao nosso entendimento, dotados duma realidade própria. A ciência clássica fundou-se sob o signo da objectividade, isto é, dum uni- verso constituído por objectos isolados (num espaço neutro) submetidos a leis

objectivamente universais.

Nesta visão, o objecto existe de modo positivo, sem que o observa- dor/conceptor participe da sua construção com as estruturas do seu entendi-

Enlendo por ciência clássica aquela que, fundando o seu princípio de explicação sobre a or- dem e a simplificação, reinou até ao inicio do século XX, e hoje se encontra em crise.

94 EDGAR MORIN mentó e as categorias da sua c^iltura. É substancial; constituido por materia com plenitude ontológica, é auto-suficiente no seu ser. O objecto é, por- tanto,uma entidade fechada e distinta, que se define isoladamente na sua exis- tência, nos seus caracteres e nas suas propriedades, independentemente do am- biente. Determinamos a sua realidade «objectiva» quando o isolamos experi- mentalmente. Assim, a objectividade do universo dos objectos mantém-se na sua dupla independência em relação ao observador humano e ao meio natural. O conhecimento do objecto é o da sua situação no espaço (posição, veloci- dade), das suas qualidades físicas (massa, energia), das suas propriedades quí- micas, das leis gerais que actuam nele.

Aquilo que caracteriza o objecto pode e deve converter-se em grandezas mensuráveis; a sua própria natureza material pode e deve ser analisada e de- composta em substâncias simples ou elementos, entre as quais o átomo, que se torna a unidade básica, insecável e irredutível até Rutherford. Neste sentido, os objectos fenoménicos são concebidos como compostos ou misturas de elemen- tos primeiros detentores das suas propriedades fundamentais.

A partir daqui, impõe-se a explicação dita científica pelos seus promotores, dita reducionista pelos seus contestatarios. A descrição de todo o objecto feno- ménico composto ou heterogéneo, inclusive nas suas qualidades e proprieda- des, deve decompor este objecto em elementos simples. Explicar é descobrir os elementos simples e as regras simples a partir dos quais se operam as combina- ções variadas e as construções complexas.

Uma vez que todo o objecto pode definir-se a partir das leis gerais a que es- tá submetido e das unidades elernentares de que se constitui, todas as referên- cias ao observador ou ao meio são excluídas, e a referência à organização do objecto não pode ser senão acessória.

No decurso do século xix, a investigação «reducionista» triunfou em todas as frentes àa.physis. Isolou e recenseou os elementos químicos constitutivos de todos os objectos, descobriu as mais pequenas unidades de matéria, primeiro concebidas como moléculas, e depois como átomos, reconheceu e quantificou os caracteres fundamentais de toda a matéria, massa e energia. Assim, o átomo resplandeceu como o objecto dos objectos, puro, pleno, insecável, irredutível, componente universal dos gases, líquidos e sólidos. Todo o movimento, estado ou propriedade podia ser concebido como quantidade mensurável em referên- cia à unidade primeira que era própria dele. Assim, a ciência física dispunha, nos finais do século xix, duma bateria de grandezas que lhe permitiam caracte- rizar, descrever e definir um objecto, fosse ele qual fosse. Trazia, ao mesmo tempo, o conhecimento racional das coisas e o seu reconhecimento. O método de decomposição e de medida permitiu experimentar, manipular e transformar

o mundo dos objectos: o mundo objectivo!... ^ Os sucessos da física clássica levaram as outras ciências a constituir igual-

mente o seu objecto, isolando-o de todo o meio e de todo o observador, a explicá-lo em virtude das leis gerais a que obedece e dos elementos mais simples que o constituem. Assim, a biologia concebeu isoladamente o seu objecto próprio, primeiro o organismo e depois a célula, quando esta encontrou a sua unidade elementar: a molécula. A genética isolou o seu objecto, o genomg: re- conheceu as suas unidades elementares, primeiro os genes e depois"os quatro elementos-bases químicos cuja combinação fornece os «programas» de re- produção, que podem veu-iar infinitamente. A explicação reducionista triunfou

também ai, ao que parece, porque era possivel referir todos os processos vivos ao jogo de alguns elementos simples.

O esboroamento da base

Ora é na base da física que se opera uma estranha inversão, no inicio do sé- culo XX. O átomo já não é a unidade primeira, irredutível e insecável: é um sis- tema constituido por partículas em interacções mútuas. A partir daqui, a partí- cula não ¡ria tomar o lugar prematuramente atribuido ao átomo? Com efeito, parece ser indecomponível, insecável, substancial. Todavia, a sua qualidade de unidade elementar e a sua qualidade de objecto vão confundir-se muito rapida- mente.

A partícula não conhece apenas uma crise de ordem ^ e uma crise de unida- de (calculam-se hoje mais de duzentas partículas), sofre sobretudo duma crise de identidade. Já não é possivel isolá-la de modo preciso no espaço e no tem- po. Já não é possívérísólâ-lá totalmente das îfttéfâcçoes da observação. Hesita entre a dupla e contraditória identidade de onda e de corpúsculo ^ Perde por vezes toda a substância (o fotão, em repouso, não tem massa). É cada vez me- nos plausível que seja um elemento primeiro; ora é concebida como um sistema composto por quarks (e o quark seria ainda menos redutivel ao conceito clássi- co de objecto do que a partícula), ora é encarada como um «campo» de inte- racções especificas. Enfim, foi a própria idéia de unidade elementar que se tor- nou problemática: não existe talvez uma última ou primeira realidade indivi- dualizável ou isolável, mas sim urn «continuum» (teoria do bootstrap), ou uma raiz unitária fora do tempo e fora do espaço (D'Espagnat, 1972).

Assim, deixando de ser um verdadeiro objecto e uma verdadeira unidade elementar, a partícula provoca uma dupla crise: a crise da idéia de objecto e a crise da idéia de elemento.

Enquanto objecto, a partícula perdeu toda a substância, toda a clareza, to- da a distinção, por vezes até toda a realidade; converteu-se em nó górdio de in- teracções e de trocas. Para defini-la, é preciso recorrer às interacções das quais participa e, quando faz parte dum átomo, às interacções que tecem a organiza- ção deste átomo.

Nestas condições, não só a explicação reducionista já não convém ao áto- mo, dado que nenhum dos seus caracteres ou das suas qualidades pode ser in- duzido a partir dos caracteres próprios ás suas partículas, mas são os traços e caracteres das partículas que, no átomo, só podem ser compreendidos em referência à organização deste sistema. As partículas têm as propriedades do

sistema muito mais do que o sistema tem as propriedades das partículas. Só po- demos, por exemplo, compreender a coesão do núcleo, composto de protões associados e de neutrões estáveis, a partir das propriedades especificas dos pro- tões, que, num espaço livre, se repelem mutuamente, e dos neutrões, que, mui- to instáveis num espaço livre, se decompõem espontaneamente, cada um em protão e electrão.

Como vimos no capitulo precedente, p. 42.

' E se é alguma coisa diferente de onda ou partícula, como pretende Bunge (Bunge, 1975), con- tinua a ser irredutível ao conceito clássico de objecto.

96 EDGAR MORIN Igualmente o comportamento dos electrões em torno do núcleo não pode decorrer das suas mecânicas individuais. Cada electrão, por si mesmo, tenderia a situar-se ao nível energético mais profundo, e deveríamos esperar que todos os electrões se situassem simultaneamente a este nível fundamental. Mas, como o princípio de exclusão de Pauli demonstrou, «é precisamente aí que actua a imposição da totalidade, que limita a dois electrões de spins opostos o número máximo que pode ter lugar ao mesmo nível, e o efeito desta exigência faz preencher um grande número de níveis do átomo, independentemente do facto de serem mais ou menos profundos. Bem entendido, o átomo assim constituí- do é totalmente diferente quanto à qualidade daquilo que seria se ca3a electrão tivesse ido alojar-se ao nível mais baixo» (N. Dallaporta, 1975).

A partir daqui, o átomo surge como objecto novo, o objecto organizado ou sistema cuja explicação já não pode encontrar-se unicamente na natureza dos seus constituintes elementares, mas encontra-se também na sua natureza orga- nizaciQoaJ e sistêmica, que transforma os caracteres dos componentes. Ora, uma vez que este sistema, o átomo, constitui a verdadeira textura daquilo que é o universo físico, gases, líquidos, sólidos, moléculas, astros, seres vivos, vernos que o universo se funda não numa unidade insecável, mas num sistema cgm- pfexö!

O universo dos sistemas

O universo dos sistemas emefge não só na base da physis (átomos), mas também no fecho da abobada cósmica. A antiga astronomia só via um sistema solar, isto é, uma rotação relojoeira de satélites em torno do astro. A nova as- trofísica descobre miríades de sistemas-sóis, conjuntos organizadores que se mantêm a si mesmos por regulações espontâneas.

Por seu lado, a biologia moderna dá vida à idéia de sistema, arruinando ao mesmo tempo a idéia de matéria viva e a idéia de princípio vital, que anestesia- vam a idéia sistêmica incluída na célula e no organismo. A partir daqui, a idéia de sistema vivo herda simultaneamente a animação do ex-princípio vital e a substancialidade da ex-matéria viva. Enfim, a sociologia, desde a sua funda- ção, considerara a sociedade como sistema, no sentido forte dum todo organi- zador irredutível aos seus constituintes, os indivíduos.

Assim, a partir de todos os horizontes físicos, biológicos e antropossocioló- gicos, impõe-se o fenómeno-sistema.

O arquipélago Sistema ^ Todos os objectos-chave da física, da biologia, da sociologia, da astrono- mia, átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros e galáxias constituem sistemas. Fora dos sistemas só existe a dispersão particular. O nos- so mundo organizado é um arquipélago de sistemas no oceano da desordem. Tudo o que era objecto tornou-se sistema. Tudo o que era unidade elementar, incluindo sobretudo o átomo, tornou-se sistema.

Encontramos na natureza aglomerados, agregados de sistemas, fluxos inor- ganizados de objectos organizados. Mas o que é digno de nota é o carácter po-

lissistémico do universo organizado. Este é urna espantosa arquitectura de sis-

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