• Nenhum resultado encontrado

Assim, a idéia de organização práxica, ou máquina, desemboca, não só numa fabricação repetitiva do mesmo, mas também na criação duma enorme

diversidade de acções, processos, fenómenos, coisas, seres. Desemboca no de-

senvolvimento da variedade e da novidade no universo. Veremos até que as or-

ganizações produtivas, ou máquinas, podem produzir não só outras organiza-

ções mas também organizações igualmente produtivas. Nova etapa na generati-

As únicas máquinas que produzem exclusivamente destruição são as máquinas de guerra, elas mesmas produzidas nas e pelas nossas sociedades históricas. Enquanto na natureza, a morte e a des- truição vêm em desordem e de modo irregular, as máquinas de morte organizam o aniquilamento, a pedido e à ordem.

vidade, os seres vivos associam a geração poiética e a cópia multiplicadora do mesmo, no processo dito de reprodução, isto é, uma organização produtiva pode produzir a sua própria organização produtiva.

Assim, os seres-máquinas participam do processo de crescimento, multipli- cação, complexificação da organização no mundo. Através deles a gênese prolonga-se, prossegue e metamorfoseia-se na e pela produção.

4. O circuito práxico: «praxis» trabalho

I I

transformação produção As idéias de produção, trabalho, transformação, quando entram no campo organizacional deixam de ser isoláveis. A idéia de trabalho deve ser concebida já não apenas como o produto duma força por deslocamento do seu ponto de aplicação, mas sim como actividade práxica que transforma e produz. Também não pode ser isolada do aprovisionamento energético que permite o trabalho, nem da degradação organizacional que todo o trabalho provoca. Portanto conduzir-nos-á à idéia de abertura e à idéia de reorganização, que examinarei no capitulo seguinte.

A idéia de transformação torna-se recíproca da idéia de produção: uma transformação não é só o produto de reacções ou de modificações, é também produtora quer de movimento (os motores), quer de formas e de actuações. As noções de praxis, trabalho, transformação, produção não são unicamente in- terdependentes na organização que as comporta: transformam-se também umas nas outras e produzem-se mutuamente, visto que a praxis produz trans- formações, que produzem actuações, seres físicos, movimento. Esta rotação entre os termos «produção» e «transformação» está bem expressa no sufixo

dução de «produção» e no prefixo trans de «transformação»... A dução (circu- lação e movimento) torna-se transformação, e o trans conserva e continua a idéia de circulação e de movimento. E assim encontramos o carácter primeiro da acção: o movimento. Uma organização activa comporta, na sua própria ló- gica, a transformação e a produção^

5. O desenvolvimento do conceito de máquina

Para formularmos uma primeira noção de máquina, teríamos de efectuar a revolução wieneriana: considerar a máquina como um ser físico. Mas vemos já que, para autonomizar verdadeiramente esta noção, precisamos doutra revolu- ção que nos liberte do modelo cibernético da máquina artifícial.

Tal como o conceito de produção, hoje mecanizado e industrializado, o conceito de máquina está hoje muito sobrecarregado com as suas limitações e as suas cargas tecno-económicas. Denota unicamente, na acepção corrente, a máquina artificial, e conota o seu ambiente industrial. Assim, para conceber correctamente a máquina como conceito de base, temos de nos desipnotizar

Assim seria erróneo definir a máquina (segundo o modelo dos artefactos) como uma organiza- ção mecânica dedicada à produção. É uma organização activa cuja complexidade é produtiva.

154 EDGAR MORIN das máquinas que povoam a civiljzação em que estamos mergulhados. Não de- vemos ser prisioneiros das imagens que surgem em nós: eixos, balanças, barras, bielas, botões, batentes, camos, cardas, cárteres, cadeias, carretos, válvulas, correias, cremalheiras, culatras, cilindros, engrenagens, hélices, manípulos, manivelas, pinhões, pistões, molas, torneiras, rodas dentadas, válvulas de segu- rança, pernos, varões, agulhetas, válvulas, volantes... Não sejamos prisioneiros

da idéia de repetição mecânica, da idéia de fabricação estandardizada. A pala- vra «máquina», temos de «senti-la» também no sentido pré-industrial ou extra- -industriãl em que designava os conjuntos ou disposições complexas cuja mar- cha é no entanto regular e regulada: a «máquina redonda» de La Fontaine, a máquina política, administrativa... Temos sobretudo de senti-la na sua dimen- são poiética, termo que conjuga em si criação e produção, prática e poesia. Não devemos apagar a possibilidade de criação na idéia de produção. Pense- mos que a idéia de produção ultrapassa largamente o seu sentido tecno-econo- mistico dominante, que pode significar também, como comecei por dizer: dar existência, ser origem de, compor, formar, procriar, criar. Na máquina não existe apenas o maquinai (repetitivo), há também o maquinante (inventivo). A idéia de organização activa e a idéia de máquina (que a encarna e a coroa) não devem ser vistas à imagem grosseira das nossas máquinas artificiais (embora se- ja graças á máquina artificial, como vou mostrar, que emergiram na nossa consciência). Temos de pensar na produção da diversidade, da alteridade, de si mesma... Assim entendida, no sentido forte do termo «produção», a máquina é um conceito fabuloso. Leva-nos até ao âmago das estrelas, dos seres vivos, das sociedades humanas. É um œnceito solar; é um conceito de vida. As ideias-chave de trabalho, praxis, produção, transformação, atravessam a

physis, a biologia, e vêm fermentar no coração das sociedades contemporâ- neas.

II — As familias-máquinas

Quero agora mostrar que a nossa primeira noção de máquina, concebida como ser físico práxico/transformador/produtor tem valor universal, isto é, aplica-se (salvo talvez aos átomos) a todas as organizações activas conhecidas no universo (que no entanto são todas elas constituidas por átomos).

Vamos ver que se aplica às estrelas, aos seres vivos e às sociedades. A arquimáquina: o Sol

Nunca imagináramos, nós que tanto sonhámos ao olhar para as estrelas, que o seu fogo fosse a tal ponto artista e artesão. Nunca pensáramos que estas bolas de fogo fossem também seres organizadores em actividade integral e per- manente.

Nunca imagináramos que possam ser as máquinas-mães do nosso universo. Mas agora sabemos: as estrelas são seres-máquinas que a cosmogénese fez florescer aos bihões. São máquinas-motores de fogo e em fogo. Motores nu- cleares, transformam o potencial gravitacional em energia térmica. Máquinas ferreiros, produzem, a partir do menos organizado (núcleos e átomos leves), o

mais organizado, isto é, os átomos pesados como o carbono, o oxigênio e os metais.

Máquinas selvagens, as estrelas nasceram sem deus ex machina, a partir de enormes turbulencias, através das interacções gravitacionais, electromagnéticas e, depois, nucleares. Tornaram-se máquinas quando a retroacção gravitacionaJ desencadeou a ignição, que por sua vez desencadeou uma retroacção anta- gónica no sentido centrífugo.

Têm existência e autonomia pela conjugação destas duas acções antagóni- cas cujos efeitos, anulando-se mutuamente, efectuam uma regulação defacto.

Portanto, os sóis são plenamente seres físicos organizadores. São dotados de propriedades simultaneamente ordenadoras, produtoras, fabricadoras e criadoras. São muito mais do que os centros duma máquina-relógio constituída por planetas. São, ao mesmo tempo, os motores mais arcaicos, as máquinas mais arcaicas e os sistemas reguladores mais arcaicos. Continuam a ser os maiores distribuidores de energia conhecidos, os mais avançados de todos os reactores nucleares conhecidos, os maiores fornos de transmutações conheci- dos, as mais grandiosas de todas as máquinas conhecidas, sempre superiores na organização global, embora — e porque — sempre inferiores na organização do pormenor, às máquinas artificiais. Oferecem o mais admirável exemplo de or- ganização espontânea: esta fabulosa máquina, que se fez a si mesma, no e pelo fogo, e isto não apenas uma única vez por uma sorte incrível, mas biliões de ve- zes, turbina, fabrica, funciona, regula-se sem conceptor, sem engenheiro, sem peças especializadas, sem programa nem termóstato.

Assim, o nosso Sol merece muito mais, algo muito melhor do que os hinos a Rá e as homenagens a Zeus, dedicados à potência energética e à ordem sobe- rana. Devemos sobretudo dedicar os nossos louvores à sua verdade matricial, que Zeus ocultara, ao devorar a sua esposa, a grande Metis*.

Protomáquinas e motores selvagens

A radiação solar e a rotação da Terra desencadeiam fluxos eólicos que, com as diferenças de temperatura e as. desigualdades do relevo, tomam direcções di- versas, por vezes contrárias, e assim como o anel solar se constituiu no e pelo encontro de duas seqüências de acções antagónicas, igualmente se constituem, a partir de encontros, choques, confrontações e desvios, as formas turbilho- nantes dos ciclones. Com os fluxos eólicos combinam-se os fluxos, evapora- ções e precipitações aquáticas, e assim se constituem os ciclos da água que podem ser considerados como processos maquinais selvagens de carácter termo-hidroeólíco.

A leitura do trabalho consagrado por Détienne e Vernant à metis dos gregos, Les Ruses de l'in-

telligence (M. Détienne e J.-P. Vernant, 1974), mostra que a metis, a inteligência do sistemare e da

eombinazione que procede por agrupamento e lipção do diverso e dos contrarios, foi concebida pela teogo- nia hesiódica e pela tradição órfica como «a grande divindade primordial, que, emergindo do ovo cósmico, traz consigo a semente de todos os deuses, o germe de todas as coisas, e (...) dá à luz, en- quanto primeira geradora, o universo inteiro no seu curso sucessivo e na diversidade das suas formas» (p. 128). Aqui vimos que da ligação e da combinação de duas retroacções inimigas nasce uma Metis primordial, a organização práxica do sol.

156 EDGAR MORIN

fonte

O ciclo mar—>nuvem—>chuva—>fonte—>rio é feito da associa-

t . I

cao em anel de processos distintos, cada um deles ligado a um contexto pro- prio, mas constituindo um momento do ciclo. É um processo maquinal simul- taneamente térmico (evaporação da água do mar e formação da nuvem), eólico (transporte das nuvens), hidráulico (queda da água da fonte no mar) no qual o rio, escavando um leito, ou um vale, transportando e transformando materiais, é o momento mais produtivo. Este ciclo, não sendo diferenciado e autónomo em relação a todos os processos que o constituem, não tem verdadeiramente ser físico, existência própria, e é por isto que digo «ciclos ou processos maqui- nais» e não ser-máquina. ^

Os turbilhões aéreos (ciclones, tornados e tufões) têm uma existência intensa mas efémera. Os remoinhos aquáticos, como aqueles que se formam com uma certa duração sobre e em torno duma rocha assente no leito dum rio, podem aceder de modo duradouro à existência.

Um remoinho pode ser considerado não só como um sistema, mas também como uma organização activa e até como um motor selvagem. É um sistema composto por um grande número de elementos agrupados e misturados (as moléculas de água) e constitui uma unidade global complexa organizada. A sua forma espiralóide é constante, embora improvável relativamente ao fluxo que escorre unidimensionalmente; a organização do remoinho substitui a interac- ção ao acaso das moléculas no seio do fluxo indiferenciado por uma repartição espacial heterogénea e uma velocidade diferencial, muito rápida no centro e mais lenta na periferia. Trata-se, portanto, dum sistema, pela sua forma global emergente, pela sua organização criando a diferença, pela sua estabilidade rela- tiva, embora seja atravessado por um fluxo.

Este sistema aberto (é alimentado pelo fluxo) é integralmente activo: não só todos os seus elementos estão em movimento, mas também o seu estado esta- cionario é garantido pela actividade organizadora do movimento turbilhonante que incessantemente faz circular as moléculas da entrada á saida; sem a acção do fluxo e a acção sobre o fluxo, desintegrar-se-ia imediatamente.

É certo que a forma, a organização e a praxis são quase indiferenciadas no remoinho. Mas trata-se realmente dum ser produtor, dum motor selvagem. Não só «trabalha» para escavar um pouco mais o leito do rio de que faz parte (e que por sua vez faz parte dum processo maquinai), mas também produz o próprio movimento que caracteriza a raça principal dos motores, o movimento rotativo. E o movimento deste motor selvagem não está pura e simplesmente

votado à dispersão; faz parte dum processo global de produção que é a produ-

Outline

Documentos relacionados