• Nenhum resultado encontrado

mas nunca podemos conceber logicamente como podiam, não direi comunicar, mas apenas coexistir, estas duas orientações.

Ora ao examinar este problema, vimos surgirem por toda a parte relações interessantes, múltiplas, de sentido duplo, confusas, ambiguas, e ricas, entre a ordem e a desordem. Para tentar conceber a complexidade destas relações, te- mos de considerar a nova complexidade de cada um dos dois termos.

A ordern da desordem

Exclama Michel Serres: «Sim, a desordem precede a ordem, e só a p.'imeira é real; sim, a nuvem, ou seja os grandes números, precede a determinação, e só os primeiros são reais» (Serres, 1974o, p. 225). Sim, há uma promoção da de- sordem, um destronamento da ordem, mas eu não inverto a hierarquia como Michel Serres, mas desierarquizo. Se existe alguma coisa de primeiro, é o esta- do indizível, em termos de ordem ou de desordem, anterior à catástrofe. A par- tir da catástrofe, a desordem e a ordem nascem quase em conjunto: desde os primeiros momentos do universo, desde a nuvem, aparecem as primeiras impo- sições. O que é «único real», é a conjunção da ordem e da desordem.

Com efeito, a cosmogénese mostra-nos que a desordem não é apenas dis- persão, espuma, baba e poeira do mundo em gestação, é também carpinteira.

O universo não se construiu apenas apesar da desordem, construiu-se tam- bém na e pela desordem, isto é, na e pela catástrofe original e as rupturas que se seguiram, no e pelo desenvolvimento desordenado de calor, nas e pelas tur- bulências, nas e pelas desigualdades de processos que comandaram toda a ma- terialização, toda a diversificação e toda a organização.

A desordem está em acção em toda a parte. Permite (flutuações), alimenta (encontros) a constituição e o desenvolvimento dos fenómenos organizados. Co-organiza e desorganiza, alternada e simultaneamente. Todo o devir está marcado pela desordem: rupturas, cismas e desvios são as condições das cria- ções, dos nascimentos e das morfogeneses. Recordemos que o Sol, nascido na catástrofe, morrerá na catástrofe. Recordemos que a Terra, enquanto gira sen- sata e regularmente em torno do Sol, tem uma história feita de cataclismos, de desabamentos, de enrugamentos, de erupções, de inundações, de derivas e de erosões...

A desordem não é uma entidade em si, é sempre relativa a processos energé- ticos, interaccionais, transformadores ou dispersivos. Os seus caracteres modificam-se segundo estes processos. Vimos que não existe uma desordem: existem várias desordens entrelaçadas e interferentes: existe desordem na desor-

dem. Existem ordens na desordem.

Não podemos classificar, dum lado, as desordens «positivas» generativas e construtivas e, do outro lado, as desordens destrutivas e dispersoras. Se excep- tuarmos a desordem da poeira, donde já não resulta nenhum desenho, nenhum desígnio, todas as outras desordens, mesmo o movimento browniano, são am- bivalentes: a desordem do fogo é portadora de criatividade e de síntese, mas também de deflagração, de cinzas e de dispersão. A desordem das rupturas, di- visões, instabilidades e cismas é também a desordem das morfogeneses. É certo que podemos discernir em numerosos casos, segundo as condições e os proces- sos, a oposição entre desordens generativas e degenerativas, mas na própria origem dos processos, através dos quais o cosmo se desintegra e se organiza ao

76 EDGAR MORIN mesmo tempo, a desordem é, de ftiodo ambíguo, generativa e degenerativa, ao mesmo tempo.

No rasto da desordem segue uma constelação de noções, de que fazem par- te o acaso, o acontecimento e o acidente. O acaso denota a impotência dum observador para realizar predições diante das múltiplas formas de desordem; o acontecimento denota o carácter não regular, não repetitivo, singular e inespe- rado dum facto físico para um observador; o acidente denota a perturbação causada pelo encontro entre um fenómeno organizado e um acontecimento, ou o encontro eventual entre dois fenómenos organizados.

Assim há riqueza e diversidade, polimorfismo, multidímensíonalidade da/das desorden(s). Há omnipresença, actividade permanente e mefistofélica das desordens. A desordem reclama agora o seu lugar: toda a teoria deve agora trazer a marca da desordem, dar lugar à desordem tornada princípio cósmico absoluto e princípio físico imánente. Mas não é possível, depois de a ter encer- rado nos subterrâneos do real, isolá-la de novo, para fazer dela o novo princí- pio absoluto do universo. A desordem só existe na relação e na relatividade.

A desordem da ordem A ordem já não é soberana.

Morreu uma ordem; a ordem-principio de invariância supratemporal e supra-espacial, ou seja, a ordem das leis da natureza. Estas leis supremas eram, na realidade, «leis simplificadas inventadas pelos sábios» (Brillouin, 1959, p. 190), abstracções tomadas pelo concreto (Whitehead, 1926).

Uma ordem encolheu: a ordem universal que se estendia sem limites no tempo e no espaço, nasceu agora no tempo, comprimida no espaço entre o caos microfisico e a diaspora. Já não é geral, mas sim provincial. Já não é inal- terável, mas sim degradável. Todavia, se perde em absoluto, ganha em devir: é capaz de desenvolver-se.

Decaída como evidência, a ordem é promovida como problema. Como nas- ceu? Como se desenvolveu a partir do zero? Como concebê-la apesar da, com a e na desordem? Como pôde parecer-nos a única soberana do universo se agora é tão difícil justificar a sua existência?

Para compreender a ordem, temos de traçar a sua genealogía. O seu nasci- mento não se distingue do nascimento do universo: a ordem nasce com as e nas condições iniciais e singulares do universo, essas boundary conditions que deli- mitam e restringem o campo dos possíveis, eliminam os universos digressivos ou transgressivos eventuais, e constituem-se assim em determinações negativas ou imposições. Por outras palavras, a ordem traz a marca irremediável dos acontecimentos iniciais dum universo singular! A ordem, que emerge sob a forma de determinações/imposições iniciais, vai desenvolver-se através de ma- terializações e, depois, de interacções e de organizações. As determinações primeiras precisam-se e multiplicam-se em necessidades condicionais, com a constituição das partículas materiais: com efeito, entre todas as partículas pos- síveis ou criadas, um número restrito, dotado de propriedades singulares, é ao mesmo tempo viável (capaz de sobreviver num ambiente aleatório) e operacio- nal (capaz de interacções produtoras de efeitos transformadores). Portanto, a materialidade e a diversidade finita dos elementos particulares vão determinar

diferentes tipos de interacções donde decorrerão as grandes leis do universo.

Outline

Documentos relacionados