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Voltemos ao mais arcaico e mais perturbador motor selvagem: o fogo Se, para constituir a máquina-sol, as interacções gravitacionais, electromagnéticas

e termodinâmicas se fizeram Metis, o fogo fez-se o motor desta Metis. Este fo-

go é regulado pela própria regulação da estrela, o que impede o motor de ex-

plodir. As chamas, que surgem na Terra como incêndio, são caprichosas e ins-

táveis; demasiadamente bem alimentadas, desencadeiam-se até à conflagração

generalizada, a explosão e, finalmente, bem entendido, a extinção; ou então,

privadas de alimentação, apagam-se imediatamente. Mas poderíamos agora,

por exemplo, considerar a chama domesticada duma vela. Se focamos a cha-

ma, considerando a cera como sua reserva energética e o pavio como um prin-

cípio de ordem, então a chama surge-nos como sistema e organização activa;

este sistema diferencia-se em regiões diversamente quentes e coloridas; tal co-

mo no remoinho, o fluxo energético é transformado e esta transformação

torna-se organizacional; tal como no remoinho, a actividade de combustão não

se limita a dissipar a energia em fumo, garante simultaneamente o estado esta-

cionario e a forma original da chama. Ora esta chama é, tal como o remoinho,

um motor nu, selvagem, que pode ser utilizado imediatamente para grelhar,

cozer e ferver. Antes mesmo da domesticação da água e do vento, antes mesmo

da sociedade histórica, antes mesmo do Homo sapiens, o hominídeo começou

por saber amansar e depois domesticar o fogo, regulando-o pelo aprovisiona-

mento em combustível para aquecer e grelhar. Depois surgiu o homem-

-ferreirò, no qual o par homem/fogo constitui uma máquina que transforma e

produz. Com a sociedade sedentária, o Homo sapiens domesticou verdadeira-

mente o fogo, fixando-o nos lares; mas utilizou também as suas violências insa-

nes para incendiar e destruir os outros lares. Foi só no século xix que conse-

guiu finalmente vestir-lhe uma camisa-de-forças —a máquina de fogo— e que

começou, doravante com uma formidável eficácia, a subjugar e a explorar a

sua força de trabalho.

158 EDGAR MORIN Assim, vemos libertarem-se (^as turbulências e dos encontros, os turbilhões de ar, de águas, de fogo, a maior parte das vezes ainda placentários, inacaba- dos, uranianos, fantasmáticos, a maior parte deles efémeros e incertos, todos eles lábeis e frágeis. Só podem estabilizar-se em torno ou a partir dum sólido com a função nuclear de «invariante». Mas uma vez existentes, embora te- nham muito pouco ser, são incontestavelmente não só sistemas, mas também motores nus, selvagens. Estamos tão habituados a considerar como motor o cárter e os cilindros, e não aquilo que age no interior, que esquecemos que o motor é aquilo que «turbina» no interior. E aquilo que está no interior come- çou por existir no estado selvagem, e continua a existir no estado selvagem...

As polimáquinas vivas

A idéia de máquina viva não é nova. A teoria dos animais-máquinas foi formulada por Descartes, e o materialismo dum La Mettrie generalizou-a ao homem. Mas esta idéia de máquina era mecânica e relojoeira. Hoje temos de conceber a máquina não como mecanismo, mas como praxis, produção epoie-

sis. Neste sentido, os seres vivos são entes autopoiéticos (Maturana, Varela, 1972), formulação onde a vida não se reduz à idéia de máquina mas comporta

a idéia de máquina, no seu sentido mais forte e mais rico: organização simulta- neamente produtora, reprodutora, auto-reprodutora.

Assim, podemos conceber o ser vivo, desde o unicelular até ao animal e ao homem, simultaneamente como motor térmico e máquina quimica, produzin- do todos os materiais, todos os complexos, todos os órgãos, todos os dispositi- vos, todas as actuações, todas as emergências desta qualidade múltipla chama- da vida.

A idéia de máquina cibernética deslizou no rasto da biologia molecular para tornar-se, de facto, a armadura da nova concepção da vida. A biologia mole- cular apossou-se do modelo organizacional da máquina cibernética para inscre- ver os processos químicos que ela revelava. É certo que manipulava as noções cibernéticas como instrumentos para considerar as moléculas, e não as molé- culas como instrumentos para considerar a organização. A idéia de máquina não passava aos seus olhos do forro do novo fato molecular da vida. De facto, tornara-se o seu padrão. A integração da cibernética na biologia constituía uma integração da biologia na cibernética. A partir dai, o ser vivo podia ser considerado, e foi, como a mais acabada das máquinas cibernéticas e até como o mais acabado dos autômatos (Von Neumann, 1966), ultrapassando em com- plexidade, perfeição e eficácia, até já na mais pequena das bactérias, a mais moderna das usinas automáticas (De Rosnay, 1966).

Mais ainda: temos de considerar a vida como complexo polimaquinal. Isto passa geralmente desapercebido porque se separa uma concepção organismica da vida duma concepção genético-reprodutiva. Ora se põe em primeiro plano o organismo e este oculta o ciclo das reproduções, ora, ao contrário, se faz um

travelling para trás e abrange-se o ciclo das reproduções, enquanto o organis- mo diminui e desaparece. Ora a vida é uma combinação complexa dum proces- so maquinai ciclico (o ciclo genético das reproduções), a partir do qual se pro- duzem seres-máquinas, os organismos individuais, eles próprios necessários à continuação do ciclo maquinai sem o qual não haveria indivíduos. A vida é

pois um processo polimaquinal que produz seres-máquinas, os quais mantêm este processo por auto-reprodução.

processo maquinai > seres-máquinas

ciclo reprodutivo indivíduos/organismos

t

Vemos assim que o ser vivo realiza e desenvolve plenamente a idéia de máquina (ultrapassando-a existencialmente e ultrapassando-a biológica- mente). A partir daí, o artefacto já não surge como o modelo da máquina viva, mas como uma variedade degradada e insuficiente de máquina.

A megannáquina social

As sociedades animais podem ser consideradas não só como multimáquinas (constituídas por individuos-máquinas), mas também como macromáquinas sel- vagens: as interacções espontâneas entre indivíduos ligam-se em retroacções re- guladoras, e, sobre esta base, a sociedade constitui um todo homeostático que organiza a sua^própria sobrevivência. Certas sociedades de insectos (termitas, formigas, abelhas) atingem um grau de organização maquinai inaudito e surgem-nos como formidáveis automata (Chauvin, 1974).

Mas é na evolução dos primatas que se operam, com o Homo sapiens, duas mutações-chave no desenvolvimento maquinal das sociedades. A primeira ca- racteriza as sociedades arcaicas. Surge a cultura. Memória generativa depositá- ria das regras de organização social, é fonte reprodutiva dos saberes, saber- -fazer, programas de comportamento, e a linguagem conceptual permite uma comunicação em princípio ilimitada entre indivíduos membros duma mesma sociedade.

Ora esta linguagem, e isto passou desapercebido por ser invisível e aparen- temente ¡material, é uma verdadeira máquina que só funciona evidentemente quando existe um locutor. Não foi por acaso que recorri ao par conceptual competência/actuação da lingüística chomskiana para caracterizar uma organi- zação práxica maquinai. Efectivamente, a máquina da linguagem produz pala- vras, enunciados, sentido, que por sua vez se engrenam nz. praxis antroposso- cial, provocando aí eventualmente acções e actuações. Esta máquina da lingua- gem une estas duas qualidades produtivas: a criação (poiesis) quase ilimitada de enunciados e a transmissão/reprodução quase ilimitada das mensagens. É uma máquina simultaneamente repetitiva e poiética. Assim, podemos dizer que

a grande revolução da hominização não foi unicamente a cultura, mas sim a constituição desta máquina-linguagem dotada duma organização altamente complexa (a «dupla articulação» fonética/semántica), e que, no interior da máquina antropossocial, total e múltiplamente engrenada em todos os seus processos de comunicação/organização, é necessária à sua existência e aos seus desenvolvimentos. Assim se constitui uma arquimáquina antropossocial que comporta algumas centenas de indivíduos; enxameia a partir daí pela Terra in- teira, cobri-la-á durante dezenas de milênios, e só morrerá aniquilada pelas so- ciedades históricas.

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EDGAR MOR/N

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