• Nenhum resultado encontrado

Na nossa incerteza podemos apenas manter as duas ortodoxias contrárias, mutuamente aberrantes, e considerar os fenómenos de organização simultanea-

mente como núcleos e como desvios. De novo surge o problema do observa-

dor, do seu ponto de vista, da sua lógica, do seu desejo, do seu receio, dos

Mais tarde examinaremos esta hipótese (t. II).

82 EDGAR MOR/N limites do seu entendimento, incprto mesmo acerca da sua própria incerteza, visto não saber se é a sua incerteza que ele projecta no universo, ou se é a incer- teza do universo que chega até à sua consciência...

Assim o mundo novo que se abre é incerto, misterioso'^. É mais shakespea- riano que newtoniano. Nele representa-se a epopéia, a tragédia, a farsa, e nós não sabemos qual é o cenário principal, se existe um cenário principal, se existe sequer um cenéirio...

VI — Em direcção à galáxia Complexidade Uma gênese teórica

O conceito de ordem, na fisica clássica, era ptolemeico. Tal como no siste- ma de Ptolemeu, onde sóis e planetas giravam em torno da Terra, tudo girava em torno da ordem. Ora nós somos obrigados a efectuar ao mesmo tempo uma dupla revolução, copernicana e einsteiniana, no conceito de ordem. A revolu- ção copernicana provincializou e satelitizou a ordem no universo. A revolução einsteiniana relacionou e relativizou ordem e desordem.

Estas revoluções do conceito de ordem são revoluções no universo. O uni- verso não só perdeu a sua ordem soberana, mas também já não tem centro. Einstein retirara-lhe todo o cent[o de referência privilegiado. Hubble retira- -Ihe todo o centro astral ou galáctico. E aqui está a grande revolução meta- copernicana e metanewtoniana, que caminhava subterráneamente de Carnot e Boltzmann a Planck, Bohr, Einstein e Hubble. Já não existe um centro do mundo, quer seja a Terra, o Sol, a galáxia ou um grupo de galáxias. Já não existe um eixo não equívoco do tempo, mas um duplo processo antagónico saí- do do mesmo e único processo. O universo é, portanto, simultaneamente poli- cêntrico, acentrado, descentrado, disseminado, diasporizante...

Isto tem agora uma importância capital para toda a teoria da physis. Nesta teoria, já não pode existir um conceito-chave soberano do qual decorram e de- rivem e no qual subsistam todos os outros. Mas a teoria não pode tolerar uma disseminação dos conceitos em desordem. Nem tudo se pode reduzir à desor- dem. Mas tudo comporta a sua imersào na desordem.

O que vimos, neste primeiro capítulo, foi que o fundo no qual o pensamen- to toma forma é indistinto e impensável; foi que os conceitos-primeiros já não estão isolados nem são substanciais e auto-suficientes. Foram ligados e relativi- zados entre si. Vimos até efectuar-se a aproximação, a inclinação dum para o outro, e, finalmente, a junção entre noções principais, e que, precisamente por princípio, eram não só disjuntas, mas também disjuntivas, isto é: ordem/de- sordem/organização, e: caos/cosmo/p/zj's/s. Vimos surgir, de modo complexo, o problema da sua associação e da sua articulação, que não poderia ser uma

" Introduzi, nesta segunda edição, os dois neoconceitos caosmo t pluriverso, que simultanea- mente cristalizam e terminam a idéia de complexidade na physis e no cosmo. (Olsson, 1977, in biblio- grafia d'0 Método 2, e T. Schneider, 1976, «Universo e Pluriverso», Ark Ali, II, 2, pp. 57-61.)

justaposição ou um agrupamento. Vimos até que se tinha constituido como que um circuito conceptual em anel entre:

desordem ordem organização i

interacções

Vimos, finalmente, que a ideia de catástrofe não poderia ser considerada como um puro começo, não só porque mergulha num «antes» insondável, mas também porque precisa, para ter sentido, das noções correspondentes aos pro- cessos que gerou; assim, a ideia de catástrofe genésica toma sentido através do «anel tetralógico» e das idéias de caos//7/i>'í«/cosmo.

Temos, portanto, de interrogar, explicitar e desenvolver a intersolida- riedade complexa destas noções, isto é, a base de complexidade insimplificável e irredutível de toda a teoria relativa ao nosso universo físico, isto é, por conse- guinte, biológico e antropossociológico.

O que vimos surgir aqui foi uma espécie de nebulosa espiralóide genésica de «concepção do mundo», no sentido em que este termo significa simultanea- mente os princípios de organização da inteligibilidade (paradigma, épistemé) e a própria organização da teoria. E toda a aventura deste trabalho, durante es- tes três volumes, será prosseguir e desenvolver esta gênese em generatividade e produtividade — isto é: método.

Na nebulosa em espiral vimos aparecer ofuscadas, aturdidas, saídas dos in- fernos e dos guetos da teoria, noções-chave que o reino da ordem escorraçara da ciência; estas noções serão necessárias à nossa interrogação e serão interro- gadas por esta interrogação. É o caso das idéias de acontecimento, de jogo, de gastos, de singularidade...

Universo nascente

O antigo universo não tinha singularidade na sua obediência às leis gerais, não tinha eventualidade nos seus movimentos repetitivos de relógio, não tinha jogo no seu determinismo inflexível... O universo que nasce aqui é singular precisamente no seu próprio carácter geral; o paradigma da ciência clássica, «só existe ciência do geral», obrigava-nos a esvaziar a singularidade em todas as coisas, a começar pelo universo. Ora neste momento, o que nos parece ab- surdo, não é a junção entre a ideia do singular e a do geral, é, pelo contrário, a alternativa que exclui uma pela outra. É, como vimos, a singularidade do uni- verso que funda a generalidade dos princípios e leis que se aplicam à sua natu- reza (physis) e à sua globalidade (cosmo). O que significa que, doravante, podemos esperar encontrar, em todas as coisas, em todos os seres, em toda a vida, ao mesmo tempo a sua individualidade concreta (singularidade), a sua ge- neratividade e a sua generatricidade (generalidade).

Este universo nascente nasce como acontecimento, e gera-se em cascatas de acontecimentos. O acontecimento, triplamente excomungado pela ciência

84 EDGAR MORIN clássica (por ser simultaneamente lingular, aleatório e concreto), torna a entrar pela porta cósmica, visto que o mundo nasce como acontecimento. Não é o nascimento que è acontecimento, é o acontecimento que é nascimento, no sen- tido em que, concebido no seu sentido mais forte, è acidente e ruptura, isto é, catástrofe... A partir daqui, podemos conceber que o devir cósmico seja casca- tas de acontecimentos, acidentes, rupturas, morfogéneses. E este carácter repercute-se em todas as coisas organizadas, astro, átomo, ser vivo, que tem, na sua origem e no seu fim, algo de eventual. Mais ainda, dos subsolos da mi- cro física até às enormes abobadas do cosmo, todo o elemento pode apa-ecer- -nos, doravante, também como acontecimento. Donde a necessidade do princí- pio de complexidade que, em vez de excluir o acontecimento, o inclui (Morin, 1972) e nos leva a olhar os acontecimentos da nossa escala terrestre, viva e humana, aos quais uma ciência antieventual nos tornara cegos.

Este universo nascente é jogo. A idéia de jogo fora já lançada filosófica- mente no mundo (de Heraclito'* a Finck, 1960, e Axelos, 1969). Fez a sua en- trada na ciência com Von Neumann (Von Neumann e Morgenstern, 1947), pri- meiro num sector restrito e de modo restrito, e depois alargando-se (extensão da teoria dos jogos à evolução biológica), e conheceu recentemente a sua pri- meira elaboração intrínsecamente fundada na physis (Sallantin, 1973). Não vou entrar no jogo do jogo. Quero simplesmente indicar que não podemos es- capar à idéia de jogo na physis, no sentido em que esta idéia une em si, por um lado, a idéia dum processo aleatório com ganhos e perdas, obedecendo a impo- sições e regras e elaborando configurações, por outro lado, a idéia duma frou- xidão nas articulações dos fenómenos organizados, dum fraco aperto através do qual se infiltra e opera a desordem dos encontros, interferências, contami- nações, etc.

Este universo de jogo é, ao mesmo tempo, um universo de fogo. O fogo tornou-se genésico (a catástrofe térmica) e gerador de ordem e de organização (as estrelas, máquinas de fogo a arder), o que faz que o calor reine soberana- mente no universo, tanto mais que acompanha todo o trabalho e toda a trans- formação, sendo, portanto, inseparável da minima actividade, organizacional ou não. O universo de fogo, substituindo o antigo universo de gelo, faz soprar o vento da loucura na racionalidade clássica, que ligava em si as idéias de sim- plicidade, funcionalidade e economia. O calor comporta sempre agitação e dis- persão, isto é, perda, gasto, dilapidação, hemorragia.

O gasto era ignorado lá onde reinava a ordem soberana. Esta significava, pelo contrário, economia. A economia cósmica, física e política fundava-se nu- ma lei geral do mínimo esforço, do mínimo desvio dum ponto a outro, do mí- nimo custo duma transformação a outra. A própria verdade duma teoria julga- -se sempre segundo o seu carácter económico em relação às suas avais, mais gastadoras em conceitos, postulados e teoremas.

Ora um universo criado e que cria pelo calor, transformado e transforman- do com calor, faz-nos rejeitar, como abstracção idealista, toda a concepção que oculta o gasto, não só como custo, preço, despesa, quota-parte, mas tam- bém como dissipação, perda, défice. A partir daí, mesmo na hipótese feliz dum universo teilhardiano que desenvolve de modo ascensional a sua própria rique-

za, há urna hemorragia, um desperdício, um estrago, que temos de tomar em

Outline

Documentos relacionados