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Assim prossegue o jogo do mundo Como veremos, ele permite desenvolvi mentos locais, insulares, de ordem e de organização, inseparáveis dos desenvol-

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Df O ANEL TETRALÓGICO

Podemos assim extrair da cosmogénese o anel tetralógico: desordem

organização -ordem

O anel tetralógico significa que as interacções são inconcebíveis sem desor- dem, isto é, sem desigualdades, turbulências, agitações, etc, que os encontros provocam.

Significa que a ordem e a organização são intoncebiveis-sem interacções. Nenhum corpo, nenhum objecto, pode ser concebido fora das interacções que o constituíram e das interacções nas quais participa necessariamente. A partí- cula, logo que se torna solitária, confunde-se como objecto, parece interagir consigo própria', e, de qualquer modo, só pode definir-se em interacção com o seu observador.

Significa que os conceitos de orílem e de organização só se desenvolvem em . função um do outro. A ordem só desabrocha quando a organização cria o seu próprio determinismo e o faz reinar no seu meio (e a ordem gravitacional dos grandes astros pode então aparecer ao olhar maravilhado da humanidade new- toniana como a ordem soberana do universo). A organização precisa de princí- pios de ordem que intervenham através das interacções que a constituem.

O anel tetralógico significa também, como iremos ver cada vez mais clara- mente, que quanto mais a ordem e a organização se desenvolvem, mais se tor- nam complexas, mais toleram, utilizam e necessitam até da desordem. Ou seja, por outras palavras, estes termos ordem/organização/desordem, e é claro inte- racções, desenvolvem-se mutuamente.

O anel tetralógico significa, portanto, que não podemos isolar ou hiposta- siar nenhum destes termos. Cada um adquire sentido na sua relação com os ou- tros. Temos de concebê-los em conjunto, ou seja, como termos simultanea-

mente complementares, concorrentes e antagónicos.

Enfim, esta relação tetralógica, que julguei poder extrair da cosmogénese, deve situar-se no coração problemático áaphysis. Aphysis emerge, desenrola- -se, constitui-se e organiza-se através dos jogos da cosmogénese que »ão preci- samente estes jogos tetralógicos'". Assim, podemos entrever que esta physis é

' A noção de self-fleld e de renormalização dos físicos.

'" Nota manuscrita de Victorri: «... pouco importa no fundo fazer arrancar a história com a bo- la de fogo hipotética ou partir das galáxias já constituídas; o que importa é mostrar o carácter replica-

dor do tetrálogo: as primeiras imposições associadas às primeiras desordens criam as primeiras organi- zações pelas primeiras interacções, o que cria, por sua vez, novas desordens e novas imposições que, por sua vez, etc. Este processo de replicação do tetrálogo exige, para funcionar, tal como o processo de replicação dos seres vivos, a morte assim como a vida...»

bem mais vasta e rica do que a antiga matéria: ela dispõe doravante dum prin-

cípio imánente de transformações e de organização: o anel tetralógico que nós vimos actuar.

Ill — O novo mundo: «caosmo, caos, cosmo, physis»

O regresso do caos

O mito grego dissociara cronologicamente o caos original, espécie de uni- verso monstruoso onde Urano, o Furioso, copula com a mãe. Gaia, e destrói os filhos, do cosmo, universo organizado onde reina a regra e a ordem. Esque- cendo Heraclito, o pensamento grego clássico opunha logicamente Ubris, a desmedida arrebatada, à Diké, a lei e o equilíbrio.

Nós somos herdeiros deste pensamento dissociativo. Aliás esquecemos a

Ubris e o Caos. A ciência clássica não sabia que fazer com um caos original num universo eterna e substancialmente ordenado. Chegara até, no princípio do século XX, a dissolver a idéia de cosmo, isto é, dum universo constitutivo duma totalidade singular, em proveito duma matéria/energia física, indestrutí- vel e incriada, que se estende até ao infinito. Nesta física, como já disse, a idéia grega duma physis rica dum princípio imánente de organização desaparecera e o conceito de organização estava ausente.

Ora a astronomia pós-hubbliana regenerou explicitamente a idéia de cosmo mostrando que o universo era singular e original. Quero demonstrar aqui que ela reabilitou implicitamente a idéia de caos.

Que é a idéia de caos? Esquecemo-nos de que se tratava duma idéia genési- ca. Só vemos nela destruição ou desorganização. Ora a idéia de caos começa por ser uma idéia energética; traz nos seus flancos ebulição, resplendor, turbu- lência. O caos é uma idéia anterior à distinção, à separação e à oposição; é por- tanto uma idéia de indistinção, de confusão entre potência destruidora e potên- cia criadora, entre ordem e desordem, entre desintegração e organização, entre

Ubris e Diké.

E o que nos aparece agora é que a cosmogénese se opera no e pelo caos. É

caos exactamente o que é inseparável no fenômeno de duas faces pelo qual o universo ao mesmo tempo se desintegra e se organiza, se dispersa e se poli- nucleia...

O que é caos, é a desintegração organizadora. É a unidade antagônica do estoiro, da dispersão e da fragmentação do cosmo e das suas nucleações, das suas organizações e das suas ordenações. A gênese das partículas, dos átomos e dos astros opera-se nas e pelas agitações, turbulências, remoinhos, separações, colisões e explosões. Os processos de ordem e de organização não abriram ca- minho como um rato através dos buracos do queijo cósmico, constituíram-se no e pelo caos, ou seja, o rodopio do anel tetralógico:

desordens > interacções ^ ^ ordem

* O ..

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Heraclito, num dos seus mais'densos aforismos, identificou o «caminho do baixo» (ou seja, a desintegração dispersiva) com o «caminho do alto» (ou seja, a evolução progressiva para a organização e a complexidade).

O cosmo constituiu-se num fogo genésico; tudo aquilo que se formou é uma metamorfose do fogo. Foi na nuvem ardente que surgiram as partículas e que se soldaram os núcleos. Foi no furor do fogo que se incendiaram as estre- las e que se forjaram os átomos. A idéia e a imagem do fogo heraclitiano eruc- tante, trovejante, destruidor e criador é precisamente a do caos original donde saiu o logos.

O que nos maravilha é precisamente esta transformação genésica do caos em logos: é que o fogo original, no seu delírio explosivo, possa construir, sem engenheiro e sem planos, através da sua desintegração e das suas metamorfo- ses, estes milhares de milhões de máquinas de fogo que são os sóis. É que flu- xos termodinâmicos desordenados e irreversíveis conduzam a regulações quase cibernéticas. É que turbulências aleatórias, que dividem a nuvem primitiva, se tornem, transformando e transformando-se em estrelas, os centros soberanos dum determinismo cósmico, que, unindo planetas a sóis, tomou a aparência duma ordem universal e inalterável.

É, numa palavra, que a ebuhção se situe precisamente na origem de toda a organização (organ: ferver com ardor).

O caos é realmente original, quer dizer que tudo o que é original participa desta indistinção, deste antagonismo, desta contradição, desta concórdia/dis- córdia onde não é possível dissociar «o que está em harmonia e o que está em desacordo». Deste caos surge a ordem e a organização, mas sempre com a co- -presença complementar/antagónica da desordem.

Mas não basta reconhecer o caos original. É preciso romper uma fronteira mental, epistémica. Estamos prontos a admitir que o universo se formou no caos, porque assim encontramos de novo todos os mitos arcaicos profundos da humanidade. Mas com a condição de que fique bem claro que os tempos do caos passaram e foram ultrapassados. O universo hoje é adulto. Doravante rei- na a ordem. A organização tornou-se a realidade física com os seus 10^' áto- mos e os seus biliões de biliões de sóis.

Ora temos de render-nos à nova evidência. A gênese não parou. Estamos ainda na nuvem que se dilata. Estamos ainda num universo onde se formam galáxias e sóis. Estamos ainda num universo que se desintegra e se organiza num único movimento. Estamos ainda no começo dum universo que morre a partir do momento em que nasceu.

É esta presença permanente e actual do caos que importa revelar, começando por considerar os pilares daquilo que é ordem e organização: átomos e sóis.

Sóis e átomos

Consideremos os dois centros, pilares ou fundamentos da ordem e da orga-

nização no universo, o átomo que reina no microcosmo e o Sol que reina no macrocosmo. Um e outro estendem a sua ordem a grandes distâncias; o átomo na sua esfera de atracção electrónica, o Sol na sua esfera de atracção plane- tária. São os dois núcleos duros daquilo a que chamamos «o real». Estão aliás

associados genésicamente: as estrelas constituíram-se a partir de átomos leves, e

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