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CAPÍTULO 1. LUKÁCS E MAKARENKO: VIDA E OBRA

1.3 MAKARENKO: DA LUTA PELA EMANCIPAÇÃO HUMANA À

1.3.20 A Morte Viaja ao Seu Lado ou Será a Vida que Lhe Atravessa

Dos registros sobre o ano de 1939, Luedemann (2002, p.264-265) destaca que, em 1º de abril, durante viagem a Moscou, morre Makarenko, vitimado por um ataque cardíaco fulminante. Essa autora, guiada pela finalidade de explicitar a predominância das relações sociais degeneradas sob o stalinismo, apresenta questões que, naquela ocasião, acompanhavam Makarenko: “O que fazer quando a morte viaja ao seu lado? Como se proteger dos perigos desses dias de chumbo em que o coração parece saltar pela boca?”. Com um sutil auxílio estético, a autora evoca a fala de

Zakharov – nome fictício que Makarenko atribuiu a si mesmo em “Bandeiras nas Torres” –, para denunciar que seu “inimigo vestia-se de camarada, falava a mesma linguagem, era invisível”. Para ilustrar por qual processo o novo na pedagogia soviética se contrapôs ao velho, Luedemann (2002, 227-228) reproduz o seguinte excerto de “Bandeiras nas Torres”:

[...] O novo nascia numa ganga espessa de antigo: as velhas desgraças, a fome, a inveja, os corações azedos, a balbúrdia e a confusão humanas, e outras coisas mais perigosas ainda: as velhas vontades, os velhos hábitos e as velhas concepções da felicidade. O velho revelava-se sob mil formas e não queria morrer em paz; inchava, atravessava-se na estrada, enrolava-se em roupagens e em palavras novas, insinuava-se por toda parte, pronunciava discursos e confeccionava leis sobre a educação. Até se lembrava de escrever artigos onde se armava em defensor da ‘pedagogia soviética’.

Foi um tempo em que este espírito do passado, usando as expressões mais novas, cobria de sarcasmos a obra de Zakharov, enquanto exigia dele prodígios e milagres. Empenhava-se em propor-lhe enigmas de uma burrice fabulosa, formulados em termos requintadamente científicos, e quando ele sucumbia sob um peso real, o passado apontava-o a dedo, gritando: – Fracassou!

Toma-se, da narrativa contida no excerto anterior, o movimento de elementos histórico-sociais da particularidade soviética sob direção stalinista, a fim de se explicitar como e, com que verossimilhança, Makarenko objetivou, por meio de

Zakharov, a reciprocidade entre sua força individual e a força humano-genérica condensada nos resultados das atividades desse personagem, em “Bandeiras nas Torres”.

Ressalta-se, ainda, o modo como o Estado fetichizado, com sua força burocrática, impedia a generalização de processos, que poderiam ter culminado na formação de educandos soviéticos tendidos à individualidade para-si.

A partir de Luedemann (2002, p.263), destaca-se como Makarenko e sua obra eram tomadas sob o stalinismo:

No lugar de um pedagogo, era reconhecido como herói da frente de trabalho; no lugar de suas teses para generalização da coletividade escolar, o reconhecimento de seus feitos heróicos no trabalho de reeducação de ex-marginais. O estalinismo evocava o herói para calar o homem; evocava o feito para negar a fertilidade da teoria.

Sim, tal como alertou Lenin, na reedição de “O Estado e a Revolução”, a respeito da tática de aniquilamento das contribuições dos revolucionários mortos, a estes, sob pretexto de render-lhes glória, convertiam de indivíduos concretos em ícones canonizados. Assim, esterilizavam “a substância dos seus ensinamentos embutindo-lhe o gume e degradando-a”, pelo lançamento de suas raízes para o alto, assim, destacavam o indivíduo e, a substância de suas objetivações, da história de desenvolvimento da humanidade, sentenciando-os ao aprisionamento numa espécie de partícula de tempo a-histórico.

Como explicar a importância de guardar a transmissão de conhecimento sobre o decurso da vida de concretos indivíduos, que viveram num tempo que continha, precisamente, como uma das proposições centrais a consolidação da nova sociedade, a luta pela superação do individualismo capitalista?

A partir da indagação anterior, configura-se uma unidade dialética favorável à discussão sobre a contraposição entre a individualidade fetichizada e a individualidade para-si. Conforme já anunciado, para maior aprofundamento sobre este tema, indica-se a produção tanto de Bock (1999) que trata da crítica às bases da concepção liberal de homem e Duarte (1993, 2004) que objetivou análise sobre a formação da individualidade para-si e sobre o fetichismo na formação da individualidade, desenvolvida sob o predomínio do processo de alienação.

Makarenko é, também, destacado como “herói” por Lukács (1951, 1971, p.425; 427), mas, para o filósofo húngaro,

[...] Makarenko torna-se um herói socialista; sua obra, uma autobiografia socialista. Pois, a superação das contradições antagônicas da sociedade de classes – não da contraditoriedade como fundamento da vida, mas do seu caráter antagônico – mostra-se também na relação da personalidade exemplar, que ultrapassa os contemporâneos, para com seus semelhantes. O antagonismo das contradições criou, lá, uma oposição mais ou menos insuperável: vive-se exemplarmente, em sociedade de classes, quase que sem exceção, somente quando seu ato se impõe contra as correntes do tempo, sem ser abalados por elas. [...].

O escrito autobiográfico de Makarenko é [...] uma testemunha do desenvolvimento da personalidade num ambiente já socialista, em conexão com o amplo aperfeiçoamento do socialismo, como parte de seu paulatino desdobramento. O eficaz auxílio à defesa da decisiva relação entre a individualidade e a genericidade, nesta ocasião, é obtido de Heller (1977). Isso, porquanto se afirma que a concreta vida de um indivíduo interessa à arte, à história, à filosofia, à psicologia, à pedagogia, enfim, à ciência de modo geral, na proporção em que, da matéria de vida desse indivíduo, se possa elevar a síntese entre individualidade e genericidade. Mesmo porque, para a referida autora, a concreta vida, seja ela qual for, é vivida por “todo homem”, independente de seu lugar na história da sociedade de classes. Não há ser humano que viva uma vida esvaziada, de modo absoluto, da genericidade. Nem tão somente, há aquele que a viva, de modo “totalmente genérico”. Por tudo isso, se justifica a tomada de registros biográficos de indivíduos, tais como a crítica lukacsiana denominou de representativos ou, à moda de Hegel, histórico-universais. Indivíduos que tenham contribuído, por meio de suas objetivações humano- genéricas, ao desenvolvimento e emancipação da humanidade. Acontece que, tal como defende Lukács (1951, 1971, p.425),

Somente a história estabelece, na maioria das vezes post

festum157, a diferença, também aqui decisiva, entre a personalidade real e, para a humanidade significativa e os caprichos subjetivos dos tipos esquisitos individualistas,

157 Post festum: expressão latina cujo significado se traduz por “depois da festa”, no caso, “depois dos

eventualmente interessantes e espirituosos. Daí, deriva – aqui, também injustamente – a decadente ideologia burguesa, o tipo de herói da grande individualidade “solitária”, a pretensamente não-superável oposição entre a verdadeira personalidade e a massa. Nós repetimos: também aqui injustamente. Pois, uma grandeza histórica duradoura baseia-se, também na sociedade de classes, no fato de que a essência da realidade objetiva é o objeto real dos pensamentos individuais e atos, baseia-se no fato de que [os pensamentos e atos] transformam aqueles momentos em conceitos ou em atos os quais, ainda desconhecidos, na luta dialética entre o velho e o novo, mas que se tornaram objetivamente atuais. Hegel, por sua vez, diz dos “indivíduos” “historicamente-universais”: “A sua justificativa não está na situação existente, mas numa outra fonte da qual ela dispõe. É o espírito escondido que bate às [portas] do presente, o qual ainda subterrâneo não medrou para uma existência atual e quer despontar, para o qual o mundo presente é apenas uma casca que contém em-si um caroço diferente daquele ao qual a casca pertencia.” [acréscimos entre colchetes e, em itálico, meus].

Oportunamente, toma-se à análise, o referido processo de “conversão” de indivíduos concretos em heróis, em “ícones canonizados”, explicitando-se que tal processo, sob o estalinismo, culminava num tipo de aprisionamento, cerceamento das possibilidades humano-genéricas, que foram por esses concretos indivíduos, apropriadas, objetivadas em atividades emancipatórias e, acumuladas, como propriedade latente nos resultados dessas atividades. E, ainda, na fetichização da individualidade desses concretos revolucionários que, então, seguiria difundida, esvaziada do processo sócio-histórico de sua formação.

Em síntese, afirma-se que, desprovida de nexos conscientes com a história, a individualidade do ser humano concreto é constituída como fetiche, como “algo” criado pelo ser humano, todavia, na particularidade, algo transformado numa forma de existência autônoma, que pode, até mesmo, exercer um tipo de poder estranho sobre o indivíduo humano. Assim, à individualidade nega-se a concreticidade de suas raízes, bem como, nega-se a substância histórico-social de sua formação, que é, também, constituída no decurso da história da humanidade que, já bem compreendido, está acumulada nos resultados das atividades humanas.

Reitere-se, ainda, Duarte (2004, p.11), quando afirma que:

No caso do fetichismo da individualidade, o que ocorre é que em vez de a individualidade ser considerada como fruto de um

processo educativo e auto-educativo deliberado, intencional

[passa ser] considerada algo que comanda a vida das pessoas e, em conseqüência, comanda as relações entre as pessoas e a sociedade. [acréscimo entre colchetes e, em itálico, meu]. Afirma-se que, ao evocar o herói para fazer calar o homem, a direção stalinista rompia com o elemento teórico-metodológico fundamental do materialismo histórico dialético: aquele que propugna pelo ser humano e, toda história do desenvolvimento da humanidade, como própria raiz da atividade humana; quer esta seja objetivada na atual particularidade, quer tenha sido, pelas gerações precedentes, objetivadas nos produtos resultantes de suas atividades, que permanecem disponíveis, para apropriação, no lastro da cultura. Em outras palavras, ao evocar o feito com o propósito de negar sua fertilidade teórica, promovia-se, na particularidade, um tipo de reificação das possibilidades de desenvolvimento contidas no processo histórico-social. Deste modo, estas capacidades, objetivadas pela atividade real de um concreto indivíduo, eram como que “esvaziadas” de seu

meio de ação, de todo acúmulo histórico-social de seu desenvolvimento, quer dizer, de sua propriedade ontológica. E, assim, transmitidas às gerações vindouras como elementos in memorian, como reificações absolutas e, de tal forma, impotentes à promoção de novos movimentos de indivíduos que, a partir do processo de apropriação da propriedade ontológica de tais elementos, poderiam fazer delas, os próprios órgãos de sua individualidade e, deste modo, movimentar suas capacidades. Por todo o exposto no parágrafo anterior, de nada adiantaria a Makarenko, receber o título de “herói Vermelho do Trabalho” ou, a “Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho”, se era, precisamente, deste modo que, “em vida os criadores da vida socialista” a viam ser, sistematicamente, assassinada. Destaca-se que, para Lukács (1951, 1971, p.464), o “coletivo que cresce e se fortalece na constante mudança dos indivíduos, a massa dos colonistas da Colonia Gorki, é o verdadeiro 'herói'” desse tempo.

Antes que se encerre este capítulo, impõe-se o seguinte desdobramento: trata-se de se comunicar a ampliação do conteúdo condensado no título dado a este subitem, que encampou os desdobramentos da matéria de vida de Makarenko, quer seja: a afirmação de que o pedagogo partiu do concreto campo da luta pela emancipação humana para o campo das objetivações literárias. Pois, sim, sustenta-se

que esse foi o caminho de vida de Makarenko. E, como complemento, afirma-se que, por este mesmo caminho – o da elevação da propriedade ontológica da experiência realizada na Colonia Gorki, na forma de um conteúdo abreviado dessa mesma experiência – a matéria de vida do pedagogo ucraniano retorna à realidade, como síntese individual e, também, genérica, dado que tenha sido objetivada como significativa acumulação literária e, também, teórico-metodológica. Bem por isso, retorna, com patente eficácia, da literatura à vida, à luta objetiva pela emancipação humana. Para Lukács (1951, 1971, p. 432), Makarenko

[...] é ele um verdadeiro e ativo filho de seu tempo, que quer conquistar a realidade com o trabalho de suas mãos e de sua cabeça e, exatamente ao ligar, estreitamente, o agir próprio e a realidade objetiva, toma consciência de que esta ligação só se tornou possível por causa do Grande Outubro, por causa da entrada no “Reino da Liberdade”. Em seu segundo romance, “Bandeiras nas Torres”, Makarenko descreve uma festa na Colônia posterior, mais desenvolvida. Ele liga, aí, as seguintes observações características: “O que há de mais belo num tal dia é o triunfo da lógica. Isso mostra que não podia ser diferente, que toda previsão estava calculada com precisão e fundada no saber, no senso para valores reais. Isso não era nenhum otimismo, mas certeza real que, por modéstia, chamávamos de otimismo”.

Mediante a expectativa posta de ter, da matéria de vida de Lukács e de Makarenko, explicitado a elevação do “como (humanamente como) resultou da vida

[de cada um deles] esta direção de pensamento, este modo de pensar (este comportamento) para com a vida158”; o como lhes teria sido possível chegar a si, isto é, por qual meio de ação lhes teria sido possibilitada a auto-realização, como ser humano individual e, genérico, considera-se o exposto, neste capítulo, como parte constitutiva da base necessária à realização da exposição do segundo e, último capítulo, desta pesquisa.

CAPÍTULO 2. A ANÁLISE DA PEDAGOGIA DE MAKARENKO