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CAPÍTULO 1. LUKÁCS E MAKARENKO: VIDA E OBRA

1.2 LUKÁCS: DAS OBJETIVAÇÕES DO CAMPO LITERÁRIO À LUTA

1.2.8 Tentativas de Realização na Pátria

Sob a finalidade de sintetizar o tempo de realização em sua pátria, Lukács desdobra breves registros e, o faz, destacando, de início, que o retorno à Hungria, em seu sentido imediato, não se consolidou como retomada de relações com velhos amigos ou camaradas. Além disso, o filósofo registra que a relação com Gertrud se estabelecia, naquele momento, como um tipo de “superficial colaboração solidária”, todavia, o filósofo destaca que Gertrud influenciava suas relações pedagógicas. Sobre essas circunstâncias, concedendo centralidade às relações que desenvolveu no campo pedagógico, Lukács (1971-1980, 1999, p. 168) destaca esse momento como

[...] Muito importante: contatos e conversas. Os primeiros alunos. Um encontrar-se nas relações pedagógicas (influência de G. [Gertrud]).

[...] Para muitos intelectuais meu marxismo (subjetivamente) autêntico, não simplesmente aprendido ou aceito. Por isso, possibilidade de diálogos fecundos. Bom relacionamento com os mais importantes: Déry86 e Illyés87. [Conteúdo entre

parêntesis, do autor. Acréscimo entre colchetes e, em itálico, meu].

No diálogo desenvolvido com Eörsi sobre esse tempo, Lukács (1971-1980, 1999, p. 130) evoca uma específica vivência, para destacar conteúdo à discussão sobre o processo de fetichização na visão da particularidade, o filósofo indica a apresentação de uma expressão, usada na ocasião de seu acolhimento numa conferência, como um conteúdo que guarda em si, uma visão preconceituosa sobre quem seria o indivíduo marxista e sobre as possibilidades de desenvolvimento da ciência a partir da perspectiva marxiana:

Participei da Conferência de Genebra devido a um convite pessoal, que não tinha nenhuma importância para o partido. Esta conferência foi bastante instrutiva para mim, no sentido de que, na ocasião, o american way of life ainda estava muito difundido no ocidente, de modo que eu – apesar de ser conhecido, anteriormente, como pessoa e também como intelectual – fui acolhido um pouco à maneira... talvez o senhor se lembre de Montesquieu88, das Cartas Persas: “Monsieur est Persan? Comment peut-on être Persan? 89,”, isto é, como é que pode ser marxista alguém que fala vários idiomas, é instruído e culto? Também tive um pequeno choque com Jaspers90.

Discutiu-se essencialmente se o marxismo podia ser mantido e propagado como visão científica de mundo. [grifos em itálico do autor].

E, ainda sobre esse tempo em sua pátria, Lukács destaca que tem participações isoladas no campo político-social, isto é, sua atuação se dá “de acordo

86 Tibor Déry (1894-1979) referência mais significativa da prosa húngara fez parte da preparação da

revolução de 1956 e condenado à prisão em 1957. Contudo, foi anistiado em 1970.

87 Gyula Illés (1902-1983) foi lírico, dramaturgo e, romancista húngaro, participou do círculo da

revista Nyugat e, em meados dos anos 30, uniu-se aos populistas, escreveu Povos da Pusta.

88 Charles de Montesquieu (1689-1755) – (Charles-Louis Secondatt), político, filósofo francês,

consagrou-se pela Teoria da Separação do Poderes, legitimada por muitas constituições internacionais, autor das famosas “Cartas Persas”.

89 Cartas Persas: “Monsieur est Persan? Comment peut-on être Persan? Tradução: “O Senhor é

persa? Como pode ser persa?”

com o Partido Comunista”. Note-se, no excerto anterior, primeiramente, a explicitação de um modo de vida - o american way of life – e a comunicação feita, a partir de um tipo de espanto, mediante a constatação de que Lukács – conhecido e respeitado intelectual – defendesse a concepção marxista de mundo. Infere-se que a intenção do filósofo, no excerto anterior, era a de deixar explícita a visão preconceituosa que mediava a particularidade, pois, o alto domínio intelectual, isto é, a apropriação de elementos humano-genéricos caracterizava, predominantemente, a formação de defensores da manutenção da sociedade de classes e, não, a formação daqueles que questionavam tal sociedade.

A título de complementação, pela expressão de Lukács, pode-se destacar a evocação do conteúdo das “Cartas Persas”, como objetivação que teria condição de guardar o conteúdo que exemplificaria um tipo de concepção fetichizada sobre elementos de uma particularidade ou, no referido caso, sobre elementos distintivos de um grupo de pessoas.

Com relação aos problemas literários, a postura de Lukács foi a de tolerar. Assim e, somente assim, lhe seria possível desenvolver, por uma espécie de détour, “até mesmo discussões” no campo político-social. Porém, nesta atividade, o filósofo guiava-se “com o cuidado necessário”. Em síntese, o filósofo húngaro indica que, não obstante percebesse a consolidação de tendências antidemocráticas, apostava, dava crédito à “solidariedade da política cultural” que, taticamente, lhe era permitida.

Oportunamente, de Netto (1983), depreende-se a discussão sobre o conteúdo das “Teses de Blum91”, estudadas e debatidas no ano de 1929, por seus colegas comunistas húngaros, mas que, em face de terem sido identificadas como a favor da social-democracia, tornaram-se objeto de arbitrário julgamento. Todavia, o que se pode ter entendido como alinhamento político com a social-democracia, muito provavelmente, tenha sido resultado da não compreensão da luta do filósofo pela socialização da cultura democrático-burguesa92, a qual compõe, predominantemente, a herança humano-genérica acumulada nas objetivações para-si. Sobre o quadro dessa época, Netto (1983, p.47) afirma que:

91 Blum era o pseudônimo de Lukács no Partido Comunista ilegal.

92 Netto (1983, p. 48-49) destaca que foi Lowy quem notou a disposição de Lukács em conciliar a

Na sua análise, Lukács sustenta que o contexto húngaro tornava necessária a luta dos comunistas não pelo restabelecimento de uma república de conselhos (como a Comuna de 1919), mas por uma ditadura democrática, “cujo conteúdo imediato e concreto não ultrapasse a sociedade burguesa”. A alternativa ao facismo de Horthy93, pela qual deveriam batalhar os comunistas, não

seria a ditadura do proletariado, mas um regime onde as liberdades políticas fossem efetivas: construindo uma ampla frente política policlassista, os comunistas deviam lutar pela “completa realização da democracia burguesa”, uma vez que ela “oferece ao proletariado o campo de batalha mais propício”. Durante o ano de 1929, as Teses de Blum foram discutidas pelos comunistas húngaros. Mas a sua sorte foi decidida em Moscou, onde estavam o Comitê Executivo da Internacional Comunista e Béla Kun: uma carta aberta daquele organismo selou o destino da proposta de Lukács – “Na realidade, o camarada Blum se coloca no terreno da social-democracia...

[...] Em dezembro de 1929, [Lukács] faz uma rápida autocrítica, reconhecendo o caráter “oportunista de direita das Teses de

Blum. Muito tempo depois, ele explicou esse episódio: “Eu estava firmemente convencido, na época, da correção dos meus pontos de vista; mas sabia... que, naquele momento, uma exclusão do Partido significava a impossibilidade de participar ativamente na luta contra o facismo que se aproximava. Como ‘bilhete de entrada’ na luta anti-facista é que redigi esta autocrítica. A partir de dezembro de 1929, ele se desvincula de qualquer atividade dirigente, passando a atuar apenas como um intelectual do partido”.

Note-se, no parágrafo final do excerto anterior, a reiteração do modo de agir protocolar como meio para superar uma situação contraditória. Pode-se dizer que a

autocrítica protocolar de Lukács constitui-se como mais um exemplo de detour tomado rumo à consecução de uma finalidade prioritária.

Destaca-se, de Netto (1983), que Lukács sentencia-se como não- vocacionado à ação política. Todavia, o autor chama, à atenção, a concepção histórico-política do filósofo e salienta que tal concepção estaria, fundamentalmente, presente nas Teses de Blum, no que diz respeito à defesa de amplas ações de uma classe trabalhadora não-sectária, de um extenso processo revolucionário, que direcionará o trabalho intelectual de Lukács. Afirma-se, então, que a ação política do filósofo húngaro não se consolidava como um tipo, que poderia ser identificado como pertencente a um conjunto de reações vitais primárias, que fosse referente ao

93 Miklós Horthy (1868-1957) político e contra-almirante que pôs as tropas contra-revolucionárias, em

círculo econômico dos objetos, quer dizer, restrita à imediata particularidade –, mas, sim, como um tipo mais complexo de ação, uma ação ricamente mediada pela genericidade.

Para Netto (1983, p.48-49),

[...] o pensamento de Lukács, despido das conotações voluntaristas e messiânicas, esquerdistas evoluirá segundo o

realismo que aparece valorizado no ensaio sobre Moses Hess94

[...] Depois de 1929, no âmbito da cultura (estética e filosofia), Lukács vai dirigir este realismo num sentido muito claro, e tanto mais significativo quanto mais candente se faz a ameaça facista: vai dirigi-lo no sentido, como Löwy notou com argúcia, de conciliar a “cultura democrático-burguesa com o movimento comunista [...] [Contudo, vale ressaltar que] seu esforço para vincular a tradição democrático-burguesa ao movimento comunista, depois da superação das suas ilusões utópico- messiânicas, se funda na conseqüente interpretação da tese de Marx e Engels, segundo a qual o proletariado é o herdeiro da

filosofia clássica [...] Lukács retorna ao âmbito da elaboração cultural, convencido de que o proletariado só poderá construir uma nova cultura se for capaz de assimilar, crítica e criadoramente, a herança que encontra diante de si”. [grifos em itálico e conteúdo entre parêntesis, do autor. Acréscimos entre colchetes e, em itálico, meus].

Sobre a necessária apropriação do lastro histórico-cultural existente, como elemento e pressuposto necessário ao desenvolvimento crítico e criador da nova geração, em estreita consonância com as proposições de Lukács, em favor da promoção cultural como meio para revolucionar almas, Duarte (2006, p. 122) destaca a inexistência da possibilidade de se efetivar o processo de objetivação, sem que se tenha consolidado um processo de apropriação de objetivações acumuladas sócio-historicamente e enfatiza que é somente pela efetivação do processo de apropriação que o indivíduo realiza sua inserção na história. Para Duarte, “a apropriação das objetivações do gênero humano é uma necessidade do próprio processo de formação da individualidade.”.

Destaca-se, oportunamente, o quão decisiva foi, no ano de 1930, a viagem de Lukács à Moscou. Nessa ocasião, o filósofo húngaro alcançou condições mais favoráveis para aprofundar seus estudos e consolidar o eixo teórico que sustentou sua

94 Moses Hess (1812-1875), filósofo alemão, foi um dos precursores do que, tardiamente, seria

produção posterior. Ingresso no Instituto Marx-Engels-Lenin, Lukács pode examinar rigorosamente os “Manuscritos Econômico-Filosóficos” de Marx (1844) e, de Lênin (1929-1930), os Cadernos Filosóficos. Netto (1983, p.51-60) registra que são esses os materiais que sustentaram a

[...] reorientação iniciada anos antes. Nos esboços parisienses de Marx, [Lukács] encontra elementos para retificar algumas colocações equivocadas de 1923 (especialmente a sua teoria da reificação, que identificava alienação e objetivação). [E, dos] apontamentos lenineanos, retira uma compreensão materialista da metodologia de Marx e um entendimento flexível da teoria

do reflexo.

Esta primeira estada em Moscou, todavia, é importante sob outro aspecto: Lukács trava relações com Mikhail Lifschitz95,

crítico a quem o ligará sólida amizade. Lifschitz, pesquisador do mesmo instituto, estava analisando os textos em que Marx e Engels tratavam de questões estéticas. Lukács compartilhará de idêntica preocupação e, entre 1934 e 1940, desenvolverá uma ampla colaboração intelectual com este investigador russo. [...] Com seu amigo Lifschitz, Lukács partilhava da idéia segundo a qual, embora não houvesse em Marx um pensamento estético articulado, havia na sua obra os fundamentos para um sistema

estético. [...] Lukács se empenha em tornar realidade a possibilidade de um pensamento estético marxista sistemático. E nesta investigação sistemática, que se prolongará até o final de sua vida, o ponto cardeal da reflexão de Lukács eram exatamente as formas do realismo crítico (burguês).”. [grifos em itálico e conteúdo entre parêntesis, do autor. Acréscimos entre colchetes e, em itálico, meus].

Note-se, ainda a partir do excerto anterior, um novo impacto consolidado a partir do estabelecimento da relação entre Lukács e Mikhail Lifschitz. Foi no âmbito dessa relação que o filósofo teve favorecida a apropriação de um conjunto de objetivações humano-genéricas, que contribuíram aos avanços e, também, à re- orientação, no pensamento de Lukács, das categorias fundamentais e necessárias à crítica e ao desenvolvimento de um sistema estético, derivado da produção de Marx e de Lenin.

Com o auxílio de Netto (1983), destaca-se a seguinte indagação de Lukács: Afinal, como o nazi-facismo haveria se consolidado numa nação como a Alemanha, tão rica em suas tradições culturais? Netto (1983, p.67) indica “A Destruição da

Razão” como obra conclusiva de Lukács sobre o caminho realizado, na filosofia, pela Alemanha, até chegar a Hitler. E, desdobrando o pensamento do filósofo húngaro, Netto destaca que, para Lukács, a Alemanha se constituiu como “país clássico do irracionalismo”. Assim, Lukács o pode afirmar, porque tomara à análise “toda elaboração cultural alemã, entre a afirmação tirânica da Prússia e a Segunda Guerra Mundial e, como resultado conseqüente de tal análise, o filósofo húngaro responsabilizou, entre muitos, Simmel96 e Weber, Mannheim97 e Heidegger98 pela preparação ideológica do clima a partir do qual se pode instaurar e medrar o obscurantismo fascista.”.

Note-se que Lukács não sucumbe à crítica restrita à imediaticidade da particularidade, ele a radicaliza em busca das múltiplas e contraditórias determinações, sobretudo, em busca das mediações teórico-filosóficas, ideologicamente, disponíveis à apropriação, naquela específica particularidade. Deste modo, mesmo que, “compulsoriamente recolhido à vida privada”, Lukács não declina da luta pela emancipação humana: em 1962, o filósofo húngaro rompe com as reservas de tal recolhimento e dá à publicação “um sintético balanço da autocracia stalinista”. E, porquanto Lukács não tenha se furtado à radicalidade na produção de suas análises, sua crítica foi expandida para além da consideração do período tido como produto “exclusivo” do “culto à personalidade” de Stalin. Culto objetivado num método político-burocrático que paralisaria a linha do desenvolvimento social. Faz-se mister que se destaque, nas próprias palavras de Netto (1983, p.72-73) que:

[...] Lukács busca as causas das deformações geradas na União Soviética no cerco capitalista à experiência revolucionária e nas particularidades do processo histórico russo.

O seu interesse dirige-se para o entendimento da problemática cultural da era stalinista. Lukács assinala que, sob Stalin, ao contrário da orientação lenineana as necessidades táticas imediatas subordinaram a elaboração teórica e paralisaram o pensamento marxista, submetendo-o a exigências rasteiramente

96 Georg Simmel (1858-1918), filósofo alemão, defendeu tese de doutoramento em filosofia sobre “A

natureza da matéria segundo a monadologia física de Kant, tornou-se professor em regime privado da Universidade de Berlim, nunca foi incorporado em regime formal e definitivo à academia berlinense.

97 Karl Mannheim (1893-1947), sociólogo húngaro, participou de grupo de estudos coordenado por G.

Lukács. Em 1935, devido ao avanço do nazismo, deixou a Alemanha para tornar-se professor da London School of Economics.

98Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, estudou com Edmund Husserl (fundador da

pragmáticas e oportunistas. Lukács considera o stalinismo como, sobretudo, um método: em política, um oportunismo taticista; na cultura, o administrativismo burocrático que engendra o dogmatismo.

Enfim, a opção por travar a luta e, concomitantemente, “se retirar sem se tornar vítima do período Rajk99” constituiu-se como imposição das circunstâncias, a partir das quais, protocolarmente, Lukács concluiu ter incorrido em “erro compreensível” e se autodenominou como sendo “apenas ideólogo”. Todavia, ideólogo “só pessoalmente, não como função”.