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CAPÍTULO 1. LUKÁCS E MAKARENKO: VIDA E OBRA

1.2 LUKÁCS: DAS OBJETIVAÇÕES DO CAMPO LITERÁRIO À LUTA

1.2.4 Rumo à Mudança no Destino

Neste item, destaca-se a mediação da obra de Dostoievski, como elemento fundamental efetivação do movimento de mudança nas perspectivas de Lukács, sobretudo, no que diz respeito à consolidação da sua concepção histórica. Nota-se nos registros sobre esse tempo que a preponderância dos fundamentos kierkegaardianos, como mediadora da leitura que o filósofo húngaro fazia de Hegel, começa a declinar.

Para Netto (1983, p. 23),

[...] pouco a pouco, o mundo mental de Lukács – onde a obra de Dostoievski passa a ocupar um lugar destacado – sofrerá uma viragem sensível, com suas preocupações se encaminhando no rumo da história.

Dois estímulos mobilizam essa viragem: a eclosão da guerra e os estudos sobre Hegel67. Deles resulta imediatamente um

pensamento cheio de contradições e ambigüidades [...] a leitura de Hegel (ainda que viciada por preconceitos kierkegaardianos) instaura para ele uma perspectiva de futuro. Surge-lhe uma alternativa da esperança, que vê prefigurada nas obras de Dostoievski. O messianismo de Lukács começa a se dirigir, gradualmente, para as realidades terrenas. Mas este é um processo lento, que só vai se definir à medida que a guerra avança e aparecem suas conseqüências. [Conteúdo entre parêntesis do autor].

O período da guerra, como circunstância social desumanizadora, movimentou a contradição entre a violência e a proposta ocidental de uma democracia radicada no sistema capitalista e exigiu do filósofo húngaro um novo posicionamento mediante a vida. Entretanto, é importante destacar-se que, particularmente, para Lukács, a principal contradição se acirra entre a proposta de democracia capitalista, – que não passava de uma forma dissimulada de violência, constituída como um tipo de mediação que oferece obstáculos objetivos ao

67 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão (1770-1831), seu esforço incidiu em unificar todo

desenvolvimento das máximas capacidades humanas – e a da luta pela emancipação de toda humanidade. A síntese dessa contradição é apresentada como conteúdo latente do seguinte registro de Lukács (1971-1980, 1999, p. 157):

Isto era a guerra. Ela revelou o falso, o inumano naquela estática que, na época, ameaçava se solidificar como sistema em mim: pois a anti-humanidade como força motriz central da nossa vida, para mim inconsciente nas minhas primeiras construções iniciais da filosofia, alcançou nelas uma figura de tal forma dominante, imperando sobre tudo, que era impossível escapar do confronto espiritual. Todas as forças sociais que eu odiava desde a minha primeira juventude e me esforçava para destruir espiritualmente uniram-se para produzir a primeira guerra universal e, ao mesmo tempo, universalmente desprovida de idéias e hostil a elas. E não como um determinado momento da vida, mas como determinações universais da vida em sua totalidade extensiva e intensiva. [...] rejeitava tudo isso com veemência, mas sem radicalismo não tinha nada em comum com tendências pacifistas [...] Não a violência em geral, a violência da reação, de Guilherme II68 e similares a violência

como obstáculo ao devenir homem deveria, se necessário com violência, ser destruída. E era preciso, ao mesmo tempo, ver que a forma ocidental de uma democracia capitalista não poderia ser aquela força contrária que interessava aqui.

Note-se que Lukács se encontra num outro beco sem saída. Mas, desta vez, não se tratava de um beco sem saída do exclusivo ponto de vista teórico, a Primeira Guerra Mundial se configurou como uma grave e concreta circunstância histórico- social de sofrimento. Nela, inexistiu a possibilidade de diferentes modos de se efetivar a vida, porque universal, toda vida humana foi “absorvida por ela, quer se afirmasse ou negasse essa absorção”. Nessa particular circunstância, Lukács teve sua perspectiva de revolução modificada, daquela que poderia ser qualificada como “tolstoiana-dostoievskiana”, para uma perspectiva utópica de caráter moral. O centro de interesse do filósofo húngaro deslocava-se do campo da estética para o da ética.

Toma-se, então, a relação de Lukács com o Partido Comunista, que é destacada como mantida sob o espírito da Revolução Russa, como uma “fascinação contraditória, com recaídas”. Concomitantemente, Lukács registra a consolidação de

68 Guilherme II (Friedrich Wilhelm Viktor Albrecht von Hohenzollen) (1859-1941), Terceiro e último

uma nova relação pessoal e a qualifica como inédita experiência de amor (Gertrud69). O filósofo, objetivando posicionamento analítico sobre esse novo conteúdo da vida cotidiana, propõe-se indagações como a seguinte: se, o pensamento e o sentimento que se realizam são, de fato, efetivos, se, eles se constituem como expressão da

efetiva individualidade. Então, ela – a individualidade – é “subjetivamente: autêntica, objetivamente: genérica.”.

Lukács (1971-1980, 1999, p. 71) afirma que, apesar de conhecer Gertrud há mais tempo, só desenvolveu uma relação “mais estreita” com ela, após 1918, quando realizou uma conferência sobre ética. A partir desse evento, o filósofo afirma haver se consolidado entre ele e Gertrud, um tipo de “comunhão espiritual e moral que, dali em diante, teve […] um papel-guia, um papel dominante. Na verdade, jamais havia encontrado uma mulher com a qual pudesse ter uma relação tão íntima.”. Isto posto, chama-se à atenção o fato da relação com Gertrud ter sido qualificada como mais

estreita, como íntima, a partir da explicitação da consonância surgida após um diálogo, cuja mediação é explicitada como sendo radicada numa conferência que, certamente, guardava em si múltiplas objetivações humano-genéricas.

Sobre as mudanças de seu pensamento e do seu modo de vida, no período entre 1917 e 1919, Lukács registra que a grande oposição concretizada como fundo geral nesse processo de desenvolvimento constituía-se pelo movimento de “princípios éticos gerais versus exigências práticas da ação concreta”. A síntese deste embate é manifesta sobre o quanto a “singularidade da escolha em situação de crise pode se tornar base de uma decadência cínica.”. Para Lukács (1971-1980, 1999, p. 159):

[...] justamente porque decisão imediatamente graves conseqüências sociais, ponderação, diferenciação da resolução individual, dos modos individual-prático-teóricos que seguem maiores, mais matizados do que na decisão anterior a essa crise. Os momentos sociais naturalmente: claros, fortes. Mas transposição em modificação da vida individual através de tais determinações.

Mas mesmo estas: ação recíproca imediata com individualidade.

Destaque-se, do excerto anterior, a afirmação da efetividade social da escolha individual, aqui, chamada por Lukács de “resolução individual”. Esta resolução se realiza, ao mesmo tempo, como acúmulo histórico-social mais ou menos matizado, pelos “modos individual-prático-teóricos”, como também, se realiza como força de “modificação da vida individual” em relação aos momentos sociais, tornados “claros, fortes”. O filósofo húngaro ratifica esse posicionamento, tomando auxílio de Lenin70 para afirmar que o surgimento social de um novo homem se consolida como um tipo de síntese fática, objetivada como resultante de esforços que, mesmo isolados, confrontam-se de modo “honestamente revolucionário com a nova efetividade”. Destaque-se o nexo entre o nascimento do novo homem e o

confronto consciente com a efetiva realidade social. Infere-se, portanto que, para que o indivíduo entre em confronto com a realidade social de modo honestamente

revolucionário é necessário que ele se aproprie, sempre mais conscientemente, das múltiplas determinações da particularidade, na qual se desenvolve sua própria vida.

Adiante do exposto, Lukács (1971-1980, 1999, p. 160), tratando do desenvolvimento de sua posição política rumo ao comunismo destaca, do conjunto daquelas que chamou “determinações humano-pessoais”, a importância de sua relação com Gertrud e, evocando uma das duas ações, com as quais definiu o objetivo que guiaria a produção de sua autobiografia – a que e, como reagir –, afirma:

[...] não que sem ela eu não teria trilhado o caminho para o comunismo. Isto era, como antes, dado pelo meu desenvolvimento, mas justamente aqui nuanças pessoais do respectivo “como” muito complicadas e de importantíssimas conseqüências teriam, sem ela, com certeza se desenvolvido de modo muito diferente. [...] Tratava-se antes de os meus esforços espirituais e práticos me confrontarem fecundamente (não apenas correto objetiva e praticamente, mas, ao mesmo tempo, favorável ao meu desenvolvimento humano) com os acontecimentos atuais do mundo. Aqui a nova situação se

70 Vladimir Ilitch Ulianov Lenin (1870-1924), ativista e dirigente político socialista, teórico e

principal líder da Revolução Russa de 1917, foi o primeiro dirigente da União Soviética e fundador da III Internacional. Graduou-se em Direito, uniu-se a intelectuais marxistas. De sua contribuição à Economia Política, destacam-se os escritos sobre o imperialismo e seu estudo sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Lenin analisou a economia agrária russa, a mercantilização das atividades agrícolas e a penetração do capitalismo na agricultura, como também, desdobrou as atividades industriais e o movimento do desenvolvimento do capitalismo na indústria russa, desde a modalidade artesanal até a instauração da mecanização industrial.

tornou uma novidade qualitativa: a escolha entre dois sistemas de mundo. Ninguém – com exceção de Lenin (num sentido determinado) – reconheceu que ambos os processos – do ponto de vista histórico-mundial – são idênticos, ou seja, que o nascimento social do novo homem é uma síntese fática de todos os esforços isolados confrontando-se de modo honestamente revolucionário com a nova efetividade. [Conteúdo entre parêntesis do autor e grifo em itálico meu].

Como comentário final sobre o período em que tomou o rumo de mudança do seu destino, mais especificamente, sobre o efeito da escolha pela concepção comunista, qualificada como a “maior viragem”, o “maior resultado evolutivo” de sua vida, o filósofo destaca que as exigências sociais impostas, por meio das reformas democráticas, formaram um tipo de base da realização do chamado “Campo extenso: principalmente com movimento pedagógico de reforma”. Neste campo, a ação seria guiada pela “premissa óbvia das reformas”: “varrer todos os resquícios do feudalismo”. Lukács (1971-1980, 1999, p. 161) também afirma que, deste modo, as “grandes massas” não só participaram, mas, igualmente, “determinaram as concretas formas de transição” e, nesse processo, puderam agir sob a finalidade de assegurar “a) grande participação das massas, b) união com o passado revolucionário, socialismo proveniente dele: não estranho, não “importado”, c) seu caráter histórico, d) antiburocrático: em nome do desenvolvimento, nenhuma arte 'oficial'”.

Feitas estas considerações, pode-se dizer que o campo da pedagogia é defendido, pelo filósofo húngaro, como campo fundamental de luta pela emancipação humana. Aqui, julga-se exposto, um dos elementos que, mui certamente, se constituiu como fundamental da escolha do “Poema Pedagógico” de Makarenko, por Lukács, como um objeto favorável à análise sobre o processo pelo qual se pretendia realizar a construção socialista e fazer surgir o novo homem.

Mas, que novo homem?

Nesta pesquisa, afirma-se que o novo homem socialista corresponde ao homem que seria, ao mesmo tempo, constituinte e, constituído, socialmente, como

síntese fática, isto é, como síntese histórico-social de todas as relações sociais, consolidadas numa circunstância histórico-social, já transformada pela ação de indivíduos guiados pelos princípios socialistas. Em outras palavras, o novo homem

seria produzido e, simultaneamente, produtor daquela, denominada por Lukács (1971-1980, 1999, p. 160), como “síntese fática de todos os esforços isolados confrontando-se de modo honestamente revolucionário com a nova efetividade”.

Ainda, com auxílio do excerto anteriormente destacado de Lukács (1971- 1980, 1999, p. 161), salienta-se a posição antiburocrática do filósofo, como fundamento de seu compromisso contra a “arte oficial”, instituída a partir do estabelecimento do stalinismo, pois, esta “arte” resultaria na degeneração dos fundamentos do realismo clássico e, por conseguinte, na formulação do realismo socialista.

Data, também, dessa época de vida de Lukács, da qual se pode dizer que foi dirigida por mudanças significativas, a produção de um estudo sobre a relação entre a democracia burguesa e a democracia socialista. Nesse estudo, Lukács apresenta o desdobramento do conteúdo ético do debate desse tempo. Lukács (1971-1980, 1999, p. 140) indica, então, a relação do trabalho de Makarenko com seu posicionamento crítico-pessoal:

Se partíssemos agora simplesmente do fato de que todos tiveram mais ou menos dificuldades – não entremos agora em detalhes –, isto significaria, no fim das contas, igualar Mihály Farkas71 e Andras Hegedüs72, o que não seria justo. E uma

importante exigência do presente é que digamos a um tipo como Mihály Farkas um não cheio de ódio e a um tipo como Andras Hegedüs um sim. Estou falando de tipos humanos e não pessoas. Entre esses dois existem muitíssimos matizes, que deveriam ser representados realisticamente pela arte, mas é preciso ver toda essa gama. Se nos esquecemos disso, adotamos de fato a perspectiva de que houve problemas de todo tipo, mas agora os superamos; portanto, tratemos de os esquecer. Mas não devemos esquecê-los. Esse problema já apareceu de forma esplêndida na nossa literatura – estou me referindo ao grande romance pedagógico de Makarenko.

Da citação anterior, importa destacar, do ponto de vista teórico- metodológico, a menção de tipo humano, contraposto à pessoa. E, aqui,

71 Mihály Farkas (1904-1965), comunista húngaro, conhecido especialmente por sua brutalidade na

era Rákosi.

72 Andras Hegedüs (1922), um dos líderes do movimento NEKOSZ. Acomodou-se à linha stalinista e

fez carreira no partido. Após a primeira queda de Imre Nagy (1955), Rákosi fez de Andras Hegedüs, que desempenhou um papel bastante infeliz na revolução de 1956, primeiro-ministro. Foi um dos dissidentes húngaros mais proeminentes.

oportunamente, lança-se o desdobramento sobre tal menção, explicitando a formação de duas categorias de análise: o tipo humano, que estaria relacionado com a síntese da individualidade que reproduziria o conteúdo genérico, quer dizer, o tipo como relativo à força resultante das mediações que condensam objetivações genéricas e, a

pessoa, que, por sua vez, se objetivaria, na concreta vida cotidiana, realizando por meio de suas atividades, em infinitas variações, “mais” ou “menos” elementos do

tipo. Deste modo, pode-se dizer que esse processo é movimentado em direção a ser objetivado como de desenvolvimento da individualidade tendida ou, não, à sua consolidação como individualidade para-si.

Salienta-se que é a partir de elementos essenciais do tipo, isto é, de elementos constantes no conjunto do acúmulo humano-genérico do qual a pessoa (particular) se apropria e, incorpora ao movimento do seu pensamento como meio de

ação, que resulta a efetivação deste ou, daquele tipo, a quem, do ponto de vista ético- filosófico, se deve dizer sim ou, não.

Como seria possível objetivar uma análise dialético-materialista, considerando categorias como o tipo e a pessoa?

Nesta pesquisa, corrobora-se com a defesa que Vigotski (1927, 1996, p.368) faz do princípio teórico-metodológico de que investigar um fenômeno, do ponto de vista da ciência geral, significa:

[...] conhecer o mundo inteiro em todas as suas conexões. Nesse sentido, podemos dizer que cada pessoa é em maior ou menor grau o modelo da sociedade, ou melhor da classe a que pertence, já que nela reflete a totalidade das relações sociais. [...] o conhecimento singular é a chave de toda psicologia social; de modo que devemos conquistar para a psicologia o direito de considerar o singular, ou seja, o indivíduo como um microcosmo, como um tipo, como um exemplo ou modelo da sociedade.

Netto (1983, p.70), afirmando que Lukács condensou uma “súmula histórica da categoria particularidade”, na “Introdução a uma Estética Marxista”, destaca que “Lukács vê, no particular, o campo de mediações entre o universal e o singular, o espaço específico da configuração artística, o âmbito no qual se pode erguer a

tipicidade.”. Neste estudo, defende-se que, na análise sobre o “Poema Pedagógico”, realizada, por Lukács, encontra-se, justamente, o desdobramento de um exemplo, no

qual, a particularidade russo-soviética é tomada como campo de mediações, no qual se consolida a relação entre o singular e o universal e, enfim, como um espaço específico da efetivação de uma objetivação literária e, de modo recíproco, da formação de um indivíduo singular.

No excerto seguinte, está contida a consideração da força poético-dinâmica que, na objetivação literária, foi acumulada como resultante de fatos observados e vivenciados, que pode nem mesmo ser original, mas que, por sua força de determinação, fazem a mediação de um processo de formação de novos homens, que são “produtos e produtores da vida” do coletivo Gorki. Lukács (1951, 1971, p.421) ao analisar o “Poema Pedagógico”, afirma que:

[...] está fora de consideração, em primeira linha, até que ponto os pensamentos pedagógicos de Makarenko, os quais no romance são formados, como os que tem origem e se desenvolvem paulatinamente dos fatos observados e vivenciados, são objetivamente originais, o que eles significam para o desenvolvimento da pedagogia como ciência. Esses pensamentos têm, no romance, muito mais uma função predominantemente poético-dinâmica: Eles clareiam o caminho que o coletivo de Makarenko perfaz; eles surgem desta vida, eles influenciam a formação dos novos homens: estes são – repetindo concretamente o que já está compreendido de modo geral – ao mesmo tempo produtores e produtos da vida desse coletivo.

Enfim, Lukács também destaca a impossibilidade de se considerar tão somente os elementos imediatos da particularidade para produção de juízos éticos. Infere-se que, sob juízo autêntico, ético, são resgatadas e analisadas criticamente, as mediações, historicamente, acumuladas e disponibilizadas à apropriação e à produção de novas objetivações em tal ou, qual coletivo. Coletivo, do qual podem ser pode elevadas tipicidades, as quais, por conseguinte, devem, sempre, ser consideradas “como produtos e produtoras” da particularidade posta em análise.