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CAPÍTULO 1. LUKÁCS E MAKARENKO: VIDA E OBRA

1.2 LUKÁCS: DAS OBJETIVAÇÕES DO CAMPO LITERÁRIO À LUTA

1.2.6 As Primeiras Rupturas

Sob a temática que guia o conjunto de vivências registrado como composição de suas primeiras rupturas, Lukács ressalta a concretização de dilemas

74 Acréscimo entre colchetes e, em itálico, meu – RAA (Raquel Antonio Alfredo). 75Acréscimo entre colchetes e, em itálico, meu – RAA (Raquel Antonio Alfredo).

surgidos da pressão contra a base de seus princípios éticos e afirma as “Teses de Blum” como “consumação” da tendência de luta, pela liberação das necessidades do mundo cotidiano, dirigida a um conseqüente agir autêntico, que seria objetivado pela mudança em seu comportamento político: contra o modernismo, contra a manipulação stalinista. Enfim, contra a burocratização que, para Lukács, se torna fonte de fetichização, fonte da perda da autenticidade no modo de agir.

Lukács lança crítica às perspectivas advindas da burocratização, pois, estas conteriam objetivadas em si, um conjunto de elementos essenciais à derivação de

modos de agir espontâneos, quer estes fossem considerados em seus elementos objetivos ou, subjetivos. O filósofo húngaro alerta que a força burocrática pode ser instituída como fonte de modos de agir fetichizados, isto é, de modos de agir fundamentados em relações, nas quais não há plena consciência a respeito das conexões e, das conseqüências das decisões individuais, para com a concreta circunstância histórico-social, – a particularidade.

Para maior precisão na comunicação das conseqüências da falta de autenticidade na derivação do modo de agir na particularidade, destaca-se o posicionamento de Lukács (1971-1980, 1999, p. 142) acerca da figura de Mihály Farkas:

[...] não considero como minha tarefa de historiador levar em consideração, ao traçar seu retrato, sua qualidade de bom pai de família. É uma coisa totalmente diferente quando numa pessoa há uma dialética de coisas boas e más, como aconteceu, sem dúvida com Trotsky e outros. Então, é preciso expor essa dialética, não porém, para equilibrar o positivo e o negativo, mas porque sem essa dialética não se conseguiria descobrir as causas da ação da pessoa em questão. Veja, quando jovens ficamos muito entusiasmados quando Endre Ady definiu István Tisza76 como uma variante masculina de Elizabeth Báthory77.

Ele não mencionou nenhuma boa qualidade de István Tisza, embora este fosse um homem inteligente e, pessoalmente, honesto e convicto. E Ady estava certo quando o qualificou como uma variante masculina de Elizabeth Báthory.

76 Itzván Tisza (1861-1918) foi primeiro ministro austro-húngaro e responsável pela entrada de seu

país na Primeira Grande Guerra. Além disso, Tisza silenciou violentamente a greve dos ferroviários em 1904 e comandou o esmagamento de um encontro socialista em Bihar.

77 Elizabeth Báthory (?-1614), segundo lenda, para embelezar a pele, banhava-se no sangue de

Importa, aqui, destacar o registro que Frederico (1997, p.28) faz acerca da distinta coerência entre a vida de Lukács e sua produção de idéias. Frederico toma a máxima do poeta Endre Ady de que, “ser mártir até que é fácil; difícil, muito difícil é permanecer entre luzes e sombras pelo bem de uma idéia” para, então, afirmar que o filósofo húngaro se constituiu como um “raro exemplar de grande intelectual e homem de partido”.

A partir da citação anterior de Lukács e da afirmação de Frederico, eleva-se um conteúdo destacado por Lukács, desde os apontamentos sobre sua infância, a saber, o modo de agir protocolar fetichizado e a tática de guerrilha. Trata-se do tipo de ações das quais não se infere, imediatamente, o sentido coerente e, nas quais, não se identifica, também, de modo imediato, o nexo entre o conteúdo da ação e a finalidade plausível. Entretanto, às quais, por particulares questões circunstanciais, se pode submeter com plena consciência do movimento de submissão. Segundo as palavras do próprio Lukács (1971-1980, 1999, p. 149): “Primeiro resistência – mas submissão consciente: não me diz respeito; quando quero que os adultos me deixem em paz: submissão com a impressão: tudo isso não faz sentido.”.

Ainda no que diz respeito ao modo de agir protocolar, mediante o encarceramento de líderes comunistas, a direção do Partido Comunista se rearticulou e, nesse histórico movimento, Lukács foi cooptado para o Comitê Central. O filósofo húngaro trabalhou na redação do Jornal Vermelho, fundou o Instituto de Pesquisas do Materialismo Histórico e teve função de comissário político da 5ª Divisão do recém-criado Exército Vermelho. O autor destaca que foi na condição de Vice- Ministro (“Vice-Comissário do Povo”) da Educação Pública que sua influência se fez mais decisiva. Netto (1983, p.32-33) destaca que:

[...] Embora não fosse o titular do ministério [...] coube-lhe, de fato, a responsabilidade das iniciativas mais importantes: uma profunda reforma educacional (que inclusive, introduziu nos currículos a educação sexual), a socialização das editoras e a abertura dos museus e teatros aos trabalhadores.

Para Lukács, a tarefa cultural que competia à Comuna era “o revolucionamento das almas”, com um programa sintético e genial: “A política é apenas um meio; o fim é a cultura”. Lukács implementou este programa com extrema coerência. [...] patrocinando a representação, por grupos de trabalhadores, de

obras de Lessing, Ibsen, Shaw78, e Moliére79. De fato, a política

cultural da Comuna, orientada por Lukács, foi democrática e

pluralista, como se verifica na Tomada de Posição do ministério: “O programa cultural dos comunistas apenas faz distinção entre a boa e a má literatura... Tudo o que tiver verdadeiro valor literário, venha de onde vier, encontrará apoio do Comissariado” E, conclusivamente, Lukács escreveu no

Jornal Vermelho: “O Comissariado não quer uma arte oficial nem, muito menos, a ditadura da arte do Partido”. [Conteúdo entre parêntesis e grifos do autor].

Toma-se a finalidade declarada à Comuna e – mais para salientar, do que para complementar a articulação realizada – destaca-se os termos objetivados, por Lukács, como eixo central da posição do ministério sob sua direção: nada menos do que “revolucionar almas”. E, para uma tarefa desta envergadura, Lukács afirma a política como meio de ação, cujo fim seria a cultura, a qual, por seu turno, constitui- se como promotora do desdobramento máximo das capacidades humanas. Mas, reitere-se, sempre, “máximo conforme as circunstâncias” histórico-sociais, ou seja, conforme as condições materiais de existência e as possibilidades de vir-a-ser, contidas nestas condições.

Sob a violência advinda do período de burocratização, período que condensa

em-si a crise do facismo, Lukács (1971-1980, 1999, p. 165) se via impedido de tomar a política para-si, como meio de ação à promoção da cultura em favor do

desdobramento máximo das capacidades humanas. Assim sendo, o filósofo destaca a contradição entre o sentimento de impotência na vivência da militância e o “impulso para maior desenvolvimento e maior eficácia da teoria”, contradição desdobrada como impasse entre “desistir da primeira [ação política] e desenvolver a segunda [a ação ideológica]80”. Conforme notação, Lukács se afirma (1971-1980, 1999, p. 148),

Não poeta. Só filósofo. Abstrações. Também memória dirigida a isso. Perigo: generalizar cedo demais o espontâneo. Mas poeta: recordação de sentimentos concretos, principalmente situações de sua manifestação. Já com isso: no lugar certo no

78 George Bernard Shaw (1856-1950), dramaturgo, romancista e jornalista irlandês. Desenvolveu-se

também como crítico literário, recusou o Nobel de Literatura em 1925, defendeu o Socialismo, produzindo panfletos e ensaios sobre assuntos políticos, econômicos e sociais.

79 Jean Baptiste Poquelin Molière (1622-1673), dramaturgo francês, por meio de suas peças, satirizou

os costumes de sua época.

decorrer do tempo. Principalmente infância. Mas, como lá, permanente tendência importante – agüentar.

A autocrítica que Lukács faz sobre o perigo de “generalizar cedo de mais o espontâneo” oferece motivo para evocar a análise de Vigotski (1927, 1996) sobre o processo de desenvolvimento dos conceitos “espontâneos”, “cotidianos” para os “científicos” (objetivações para-si). Evidentemente que o estudo de Vigotski trata de esfera qualitativamente diferente. Todavia, aqui, ousa-se generalizar o elemento teórico-metodológico fundamental, que permite explicar o movimento de desenvolvimento em um caso e, em outro, a saber, a superação histórico-dialética do conceito espontâneo pelo científico – da apropriação fundamentada em objetivações

em-si à apropriação radicada em objetivações para-si.

A seguir, serve-se desta oportunidade, para socializar a síntese de Leontiev sobre o processo da formação dos conceitos e da generalização, dos “Apêndices” de “Teoria e Método” Vigotski (1927, 1996, p.461), depreende-se que:

[...] no que diz respeito ao próprio problema da formação dos conceitos e da generalização [...] Seu principal feito [o de

Vigotski] foi a descoberta do nível dos complexos e sobretudo dos pseudoconceitos. E surge uma pergunta neste ponto: por que a psicologia tradicional anterior a Vigotski não levava em consideração os pseudoconceitos? Sem dúvida, era devido ao fato de considerá-los como conceitos e não ter meios de diferenciá-los. Para ela, o único traço dos conceitos era a generalização [...] Esse modo de formular o problema fazia com que tanto os pseudoconceitos quanto os verdadeiros conceitos fossem impossíveis de distinguir.

[...] O método histórico-genético da análise de Vigotski, profundamente psicológico, permitiu descobrir a falta de consistência psicológica da definição lógico-formal do conceito, que agrupava fenômenos psicológicos heterogêneos: o conceito e o pseudoconceito. [Acréscimo entre colchetes e, em itálico, meu].

Se, por um lado, para Vigotski (1927, 1996, p.462), seria conditio sine qua

non explicar material e analiticamente a relação do conceito com o objeto sem, entretanto, restringir-se à imediata particularidade do objeto. Por outro, “nem mesmo o nível superior de generalização da situação concreta é, como intuía Vigotski, o nível superior do próprio conceito. Para penetrar no nível superior do conceito seria necessário partir de outro princípio de generalização [...]”, assim, o psicólogo russo

explana o desenvolvimento de duas categorias de conceitos: os conceitos cotidianos e os conceitos científicos.

Os conceitos cotidianos são correspondentes ao nível mais alto que a generalização pode alcançar, a partir de concretas circunstâncias particulares. Tais conceitos cotidianos são “representações genéricas que vão do concreto ao abstrato”; já, os conceitos científicos, têm processo oposto de formação, são movimentados do abstrato para nova relação com o concreto, para um retorno da abstração à concreta particularidade, com o fito de explicar, de modo científico, tal ou qual elemento dessa particularidade.

Nesta pesquisa, defende-se que é possível servir-se de Vigotski para produzir explicações sobre a autocrítica que Lukács realiza, oferecendo fundamento teórico-metodológico para o entendimento daquele que seria “o perigo” a ser enfrentado na atividade abstrata (a crítica ou autocrítica): “Só filósofo. Abstrações. Também memória dirigida a isso. Perigo: generalizar cedo demais o espontâneo”. Isto é, o perigo inerente à atividade da análise crítica é o de tomar, para generalização, elementos particulares em-si, como se fossem genéricos, como objetivações para-si, ou seja, tomar elementos do cotidiano, mesmo que estes correspondam ao mais alto nível que, na particularidade, a generalização espontânea pode alcançar e, generalizá-los como científicos.

Oportunamente, reitera-se que a luta pelo desdobramento máximo das

capacidades humanas não é outra senão, a luta pela socialização de amplas possibilidades de apropriações de objetivações para-si, que culminem, sempre mais, na superação da generalização do espontâneo como se fosse científico. Destaca-se que a educação escolar deveria se consolidar como o principal e efetivo campo desta luta.

No conjunto de produções contemporâneas sobre o processo educativo, como meio de luta pela emancipação humana, faz-se mister destacar “Do Senso Comum à Consciência Filosófica”, de Saviani (1996), como obra que condensa um desdobramento do embate entre o espontâneo e o genérico. Nesta produção, Saviani expõe o senso comum como um contraditório “amálgama” de elementos emancipatórios e elementos da ideologia hegemônica, ressaltando como elemento fundamental da relação hegemônica o seu caráter pedagógico e, indicando a

necessidade da consolidação da educação como campo de luta pela emancipação da humanidade.

Vale lembrar a finalidade educativa de “revolucionar a alma” do povo, por meio da socialização da riqueza sócio-cultural, que foi defendida por Lukács, quando ocupou o cargo de Ministro da Cultura. Como também, importa evocar de Frederico (1997) a defesa de que a arte e a ciência são consideradas, por Lukács, como formas

humanas em contraposição à religião e, por isso, em favor da emancipação do ser humano pelo próprio ser humano. Isto, posto que, pela apropriação da forma genérica se possa consolidar, ao indivíduo, um tipo de cobrança do caráter exemplar e

generalizante nela contido. E, ainda aqui, destaque-se da matéria de vida de Lukács o

modo de agir pelo qual o filósofo húngaro afirma como “tendência importante”, com relação à sua “vida cotidiana”, a de “aguentar”.

Frederico (1997, p.28-29) afirma que Lukács realizou sua vida sob as “luzes e sombras” de seu tempo:

[...] alguns momentos sob as luzes: foi duas vezes Ministro da Cultura; circulou no pós-guerra pela Europa discutindo em visível posição de superioridade com os grandes intelectuais da época (Genebra, 1946; Milão, 1947; Paris, 1949); em Budapeste formou um grupo de discípulos brilhantes que, num certo período, divulgou e complementou suas idéias (Agnes Heller, Ferenc Feher81, G. Markus82, etc.) [...].

Mas o grande intelectual de partido viveu principalmente entre as sombras: conheceu a cadeia e o exílio; teve um filho “desaparecido” em Moscou; sofreu diversas campanhas difamatórias dentro e fora do movimento comunista [...] e, principalmente, o que lhe parecia certamente pior: suas idéias nunca foram aceitas no interior do movimento comunista, no qual passou toda a sua existência polemizando. [Conteúdo entre parêntesis, do autor].

Um dos alunos de Lukács, István Mészaros, a posteriori, declarou que no início dos anos 50, o filósofo húngaro se encontrava em isolamento tão severo que seus alunos tinham medo de se aproximar dele. O extremo boicote culminou no

81 Ferenc Feher (1933), aluno de Lukács, de 1970 a 1973, colaborador científico na Academia

Húngara de Ciências. Em 1973 pediu demissão de seu posto para se solidarizar com colegas demitidos. Desde então, vive principalmente no Ocidente.

82 György Markus (1934) estudou em Moscou até 1957. Foi, a partir de 1959, colaborador no Instituto

Filosófico da Academia Húngara de Ciências. Em 1968 foi expulso do partido e, em 1973, dimitido da Academia. Vive, desde então, no Ocidente.

ordenamento da retirada de todos os seus livros da biblioteca. Nessas condições, um fato da vida cotidiana comunicava, precisamente, a objetivação daquela que se poderia chamar de sua mais antiga tendência: a de agüentar. A seguir, comunica-se, quiçá, a expressão do bom humor do filósofo, no enfrentamento das “sombras”.

Segundo Mészáros, Lukács caiu enfermo e necessitou de cuidados médicos. Então, um prestigiado professor de medicina o colocou ciente das condições de sua enfermidade, que era de um tipo raro, sem registro na literatura médica. E, por ser assim, o procedimento médico seria assistido por seus alunos, ao que Lukács, “com muita finura, comentou: ‘Finalmente me tornei matéria de ensino universitário’83”.