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CAPÍTULO 1. LUKÁCS E MAKARENKO: VIDA E OBRA

1.3 MAKARENKO: DA LUTA PELA EMANCIPAÇÃO HUMANA À

1.3.18 O Teatro Gorkiano Ilumina e Aquece o Inverno Camponês

Luedemann (2002, p.169-170) registra que a experiência teatral na Colonia Gorki se deu durante os invernos de 1923 a 1925, segundo o registro da autora, foram apresentadas, em cada temporada, 40 peças teatrais e, para que se concretizasse tal projeto, toda a coletividade gorkiana foi mobilizada. Assim, os camponeses tinham acesso a um novo espetáculo a cada semana. Em consequência de ter sido assim, desenvolveram “gosto pelas atividades artísticas e pelo debate sobre as questões gerais da vida política no novo regime e das dificuldades na vida cotidiana”. Ainda nesse registro, Luedemann (2002, p.169-170) ressalta que o desenvolvimento da experiência teatral,

[...] que englobava toda coletividade, derreteu o gelo que isolava as famílias em suas casas e aprofundava o sentimento de solidão e revolucionou a vida cultural das aldeias. Como muitos vinham de longe e não poderiam voltar no mesmo dia [...] os gorkianos organizaram uma espécie de acampamento [...] Eles traziam mantas, roupas para dormir, além de bolos, pastéis e toucinhos, que eram divididos com os educandos, numa verdadeira festa de final de espetáculo.

O impacto revolucionário da experiência estética, por meio da arte dramática, promoveu a objetivação de um novo salto qualitativo na consciência dos educadores e, do próprio pedagogo. Makarenko (1934-1986, p.50) registra no “Poema Pedagógico” que a realização do teatro não se tratava de ser algum tipo de

“distração” ou “divertimento”. Antes, constituiu-se numa “obrigação, um imposto social inevitável, de cujo pagamento” os colonistas não podiam se liberar.

A concreta disponibilização de elementos humano-genéricos, à apropriação, no caso, os concernentes à arte dramática, “cobrava” da consciência dos colonistas a formação de uma nova exigência à conduta: a socialização do conteúdo do qual eles haviam se apropriado. Assim, segundo Luedemann (2002, p.171-172), os camponeses, separados que eram da cultura mais elevada, puderam ser

[...] tomados por um forte desejo de conhecer novos personagens, de viver novos conflitos e vibrar, rir e chorar com seus desfechos. [...] Como se tratava de um trabalho considerado por todo coletivo como de importância social, os educandos se esforçavam para vencer a timidez e contribuir para realização do projeto cultural. O teatro tinha sido considerado na assembléia dos colonos como um assunto tão importante como a colheita nos seis campos ou a reforma da colônia.

Do excerto anterior, deriva-se, com destaque, o amplo benefício da experiência estética da arte dramática e, particularmente, ressalta-se que, no registro sobre o exercício dramático, pela apropriação da “vida” do personagem a ser representado, se dava, no processo de formação dos educandos, um tipo de superação de impasses contraditórios que, na imersão do tipo quase absoluto da vida privada, isto é, na vida cotidiana em-si, talvez não se realizasse. Pois, ainda que, no caso da referida experiência socializadora, haja um registro sobre a superação da timidez, havia uma particular dificuldade, que insistia em não declinar: muito reprimidas, as meninas tinham vergonha da exposição no palco, isto é, de levar ao fim a representação de cenas com beijos e abraços. Resultado: Lievtchenko e Nastia, que se desvencilhavam melhor desse obstáculo, tinham que encenar a maior parte das peças. Essa situação foi amenizada com o ingresso de duas novas e, extrovertidas, educandas: Oksana e Rakhil, as quais se constituíram como “sangue novo na encenação das peças mais românticas: beijavam com tanta naturalidade e entusiasmo que faziam o público suspirar.”. Assim, este mesmo público foi tomado “por um forte desejo de conhecer novos personagens, de viver novos conflitos e vibrar, rir e chorar com seus desfechos”. Neste caso, afirma-se que, de fato, a arte retornou à

vida e, isto se deu, com amplas conseqüências, junto aos colonistas e aos camponeses das redondezas da Colonia.

Ainda sobre o desenvolvimento das atividades teatrais, há o relato sobre a “explosão” de um dos educandos de Makarenko que, cansado e, pressionado pela avidez dos camponeses por novas peças, questiona-se sobre quem, na verdade, seria ele: um sacerdote? Um general? Um guerrilheiro? Ou, seria ele de ferro, por isso, deveria suportar ensaios até a madrugada e, ainda, no sábado, martelar cenários? Impactado pela explosão de seu educando Makarenko reviu a distribuição de tarefas, tomando o cuidado para que uns poucos não fossem sobrecarregados.

Destaca-se, também como relevante, de Luedemann (2002, p.173-174), a significação dada à encenação, como vitória sobre dificuldades da vida cotidiana. Para a autora:

Esse novo teatro comemorava com um forte realismo as conquistas da vida coletiva. A luta contra a fome e a vitória sobre ela deveria ser comemorada em cada ato em que as pessoas se alimentassem. E Makarenko se maravilhava ao ver o público saboreando com os olhos os assados, as tortas... [...]

[Já] os atores [...] se empolgavam tanto com os banquetes que se esqueciam de continuar a encenação!

Por outro lado, as peças funcionavam também como um tipo de exorcismo da vida passada, dos dias de abandono nas ruas geladas. [Acréscimo entre colchetes e, em itálico, meu].

Retoma-se, oportunamente, Marx (1852, 2011, p.203), d’O 18 Brumário de

Luís Bonaparte, a fim de se afirmar que, nas circunstâncias particulares, de modo latente e, em ação recíproca, dormitam forças contraditórias. Desta afirmação, pode se derivar que, ao mesmo tempo em que o exercício da arte dramática favorecia o “exorcismo da vida passada”, vivida em meio às misérias materiais da imediaticidade russa; consolidava o acesso ao reverso dessas misérias, ao conjunto de atividades, por meio das quais, gerações precedentes acumularam, no lastro histórico-cultural da humanidade, suas forças humano-genéricas. Então, a “vida passada”, foi justamente pressuposta como necessária à evocação das forças humano-genéricas acumuladas nos textos teatrais, como auxílio à superação da cotidianeidade da vida presente e, ao soerguimento de uma vida de tipo novo. Reitera-se, assim, pelas precisas palavras de Marx (1852, 2011, p.203) que no momento em que os indivíduos se encontram

“empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado.”. Reitere-se que o referido auxílio dos espíritos do passado se constitui, tal como defendido por Leontiev (1967), como acumulação das atividades humanas, na qualidade de objeto, em seu resultado.

Diante do exposto e, ainda, sobre o calor revolucionário da experiência estética pela arte dramática, insiste-se na extensão do benefício da apropriação estética em favor da elevação da vida cotidiana. Isto, considerando, como justo exemplo, o ocorrido naquela particularidade, quando foi possível, via experiência estética, “conjurar” o auxílio dos “espíritos do passado” que dormitavam nos textos teatrais e promover, junto aos colonistas e aos camponeses, o questionamento de preconceitos, a criação de novos conceitos, a formação e a socialização de novas perspectivas de vidas, etc. Deste modo, afirma-se que, por momentos, os indivíduos, daquela particularidade, podiam suspender-se, deixar a rotina de labutas diárias, despojada de pensamentos elevados, para soerguerem-se pelo auxílio da atuação teatral daqueles que davam vida aos imortais personagens, conquistando, assim, a possibilidade de se apropriarem da riqueza humano-genérica contida nas experiências vividas por esses mesmos personagens.

O inverno aquecido pela experiência estética engendrou a primavera gorkiana. Luedemann (2002, p.175-190), explicitando a força da vida organizada naquela coletividade, destaca que a “vida gorkiana” surgia de modo cada vez mais complexo, necessidades menos primárias “floresciam”, “moços e moças [...] se comportavam como homens e mulheres.”. A autora também destaca a atenção de Makarenko com temas como paixão, amor e a complexidade em prol de uma educação que enfrentasse o desafio de respeitar os mais delicados sentimentos dos educandos; o desenvolvimento mais elevado da vida cobra, também dos gorkianos, a

superação contínua do estado da própria vida cotidiana, em meio a tudo isso: os gorkianos são dirigidos à rabfak (faculdade operária). O pedagogo ucraniano via consolidado mais um salto qualitativo na formação daqueles que ele denominou de “verdadeiros comandantes da vida socialista, não apenas da coletividade em que

viviam”, pois, alguns de seus educandos alcançavam a formação em nível superior. Para Makarenko, mais uma verdadeira vitória da coletividade.

Luedemann (2002, p. 207-217), antes de tomar o processo de criação do “Poema Pedagógico” para explanação, registra que, em 1928, Makarenko “foi julgado como um educador que utilizava um sistema educacional negativo para a formação de novos cidadãos socialistas”, frente a tal juízo, o pedagogo decidiu demitir-se. A autora também explicita toda transformação do tecido social soviético debaixo do “aparato burocrático e repressor stalinista” e ressalta que o nacionalismo, o culto à personalidade foram, pela pequena burguesia, dirigidos à formação de uma “nova subjetividade”.

No ano de 1931, portanto, antes de ser objetivado na forma do “Poema Pedagógico”, o trabalho realizado na Colônia Gorki foi popularizado, por meio de outro produto estético, um filme: “O Caminho para Vida”. Luedemann (2002, p.218) afirma que, sob esta forma, o coletivo consolidado sob direção de Makarenko ultrapassou as fronteiras da União Soviética, conquistando educadores interessados em conhecer melhor as propostas educacionais do ucraniano. Muitos queriam, também, conferir se o roteiro estava fundamentado na realidade ou, se se tratava de uma obra ficcional. Para a autora, o mundo vinha ao encontro de Makarenko “antes mesmo que pudesse imaginar a repercussão que sua experiência pudesse causar, inclusive nos países capitalistas.”. Sob encorajamento de Máximo Gorki, Makarenko assumiu a tarefa de objetivar a experiência que havia revolucionado crianças e jovens abandonados e, marginalizados, em futuros comandantes da

sociedade socialista.

Ainda neste item, são destacadas, de Lukács (1951, 1971, p. 426-427), especiais considerações sobre o caráter autobiográfico do “Poema Pedagógico”.

[...] já no tema com a característica especial de que Makarenko, no romance, aparece como personalidade madura (amadurecida pelo socialismo), mas que por outro lado, aquilo que o torna realmente, historicamente significativo, importante, chega ao seu desenvolvimento aos poucos, diante de nós e, nisso, é retratado, descrito na forma de autobiografia. [...] A vida é contada na forma-Eu, mas o peso real da representação está no seguinte: quais circunstâncias ou pessoas encontraram este Eu, como eles o formaram [e, como] respectivamente são formados por ele, como aqueles pensamentos e sentimentos, vivências e

conhecimentos, cuja totalidade movida determina o Eu- narrante, crescem a partir dessa base do ser modificando-a, ao mesmo tempo. [...] Não surpreende que o predomínio do mundo circunstante social, em Makarenko, se apresente muito mais forte do que em Gorki. Desta forma, surge uma polêmica, qualitativamente elevada, contra o individualismo burguês, na qual se expressa exatamente que a autêntica personalidade pode surgir e se manter somente pela inserção nas grandes correntes progressistas do tempo. Com outras palavras: somente o Socialismo é aquela época do desenvolvimento da humanidade, no qual personalidades verdadeiras podem se desenvolver verdadeiramente. Quanto mais conscientemente desaparecem as particularidades subjetivistas, nuances e sutilezas, por meio das quais o indivíduo burguês entumesce a “personalidade”, tanto mais fortemente, quanto mais irresistível, aparece o traço da autêntica personalidade ligada ao povo.

Do excerto anterior, destaca-se o quê dá à autobiografia de Makarenko, um traço distintivo, o quê permite que ele seja considerado um indivíduo historicamente

significativo, uma individualidade histórico-universal é o fato da centralidade de sua narrativa autobiográfica não incidir na forma-EU, mas, sim, incidir nas reais relações do pedagogo, naquelas que ele estabelece com suas condições reais de existência, bem como, naquelas estabelecidas entre o pedagogo e as pessoas com quem ele compartilhava a vida na Colonia Gorki. Quer dizer, a autobiografia de Makarenko, constitui-se como um objeto de interesse geral, porque o quê se eleva, por meio de sua narrativa, é o conteúdo referente à propriedade primário-ontológica do seu processo de desenvolvimento como educador. Todavia, o filósofo húngaro salienta que o quê se expressa em sua autobiografia e a caracteriza contra o individualismo burguês, é o fato da sua “autêntica personalidade […] surgir e se manter pela inserção nas grandes correntes progressistas do tempo”, quer dizer como indivíduo ativo e, conscientemente, vinculado à realidade social.

Ainda sobre o caráter autobiográfico151 do “Poema Pedagógico” de Makarenko, destaca-se o nexo entre o desenvolvimento histórico-social do indivíduo e o seu mundo circunstante. E, com auxílio de Lukács (1951, 1971, p.461) salienta-se que:

151 No segundo capítulo desta pesquisa, também, serão discutidas, a partir do texto analítico de

Lukács (1951, 1971), outras questões relativas ao caráter autobiografico do “Poema Pedagógico” de Makarenko.

[...] Makarenko não expressa seu desenvolvimento a partir de “dentro”, nem analisando psicologicamente, mas, sim, através da configuração da vida e do crescimento da Colonia Gorki: as etapas de desenvolvimento dela determinam e, esboçam, os contornos de seu desdobramento como personalidade. A saber, antes demais nada, como pedagogo. E, aqui, já começa a diferença, enquanto nas autobiografias clássicas a personalidade total do autor forma o objeto central, Makarenko quer descrever somente o seu desenvolvimento como educador, como organizador e teórico da educação socialista. Embora, como resultado esteja, diante de nós, a personalidade de Makarenko inteligente e forte, sagaz e afetuosa, rígida, sem concessões e bem-humorada; isso foi conseguido, todavia, não diretamente, mas por um tal desvio e, por isso, essa diferença imprime o seu elo em toda a construção e estilo da obra.

Antes, ainda, de se retomar a produção de Luedemann (2002) e explanar o item específico sobre o parto tormentoso do “Poema Pedagógico”, do excerto anterior, destaca-se a afirmação de que Makarenko consolidou-se como um indivíduo, com capacidades tornadas significativas, num processo de ação recíproca, quer dizer, em concomitância ao processo de seu desenvolvimento como pedagogo, isto é, simultaneamente ao processo de educação dos seus educandos e, da organização da vida na Colonia Gorki. Além disso, também, durante o referido processo, Makarenko produzia teorizações sobre o seu trabalho e, se produzia como indivíduo, de um tal e, significativo, modo que se pode dizer que sua individualidade se consolidava como individualidade para-si.