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Mudanças institucionais que deram partida ao catch-up (1978-90)

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Um dos aspectos mais interessantes da experiência chinesa de desenvolvimento desde o início das reformas, em 1978, é a combinação inteiramente original entre elementos de capitalismo e de comunismo, criando um híbrido que a diferencia das experiências de transição para economias de mercado tanto por parte de países comunistas, como a Rússia, como por parte de economias capitalistas em que o Estado ocupava um espaço maior no cenário econômico, como o Brasil.

Qian (2003) descreve o processo como gradual e “sem perdedores”, características consideradas centrais para o seu sucesso. O argumento do autor é que o viés pró-mercado foi sendo introduzido gradativamente na China, sem comprometer a renda e a posição que diferentes segmentos detinham no período anterior. O crescimento sustentado sem dúvida desempenhou papel muito relevante, ao permitir o “ganho para todos”. Mas há elementos de grande originalidade na experiência chinesa, relacionados ao que o autor chama de “instituições de transição”.

O autor parte do pressuposto de que o maior desafio com que se defrontam os países em desenvolvimento, ou em transição, não é saber onde chegar, mas sim encontrar um caminho factível para alcançar o que pretendem.

A partir de uma proposição de origem gerschenkroniana, Qian argumenta que os países atrasados podem se beneficiar das condições institucionais existentes ou ausentes no princípio do processo de catch-up para construir seu caminho. No caso da China, havia muito espaço para auferir ganhos de eficiência decorrentes das distorções que se acumularam na fase da economia planificada. Com isso, havia muita oportunidade para promover o crescimento, que foi condição necessária para o processo qualificado pelo autor como “sem perdedores”59.

Ao aproveitar as condições iniciais específicas da China, o país teve de defrontar-se com uma série de distorções que caracterizavam o sistema anterior. As instituições de

59 Apesar de concordar com a leitura feita por Qian e compreender seu argumento de que a reforma gradual foi feita “sem perdedores” – e, de fato, se não fosse assim provavelmente o Estado-Partido teria tido muita dificuldade para seguir o caminho de reformas nessa primeira fase, é necessário destacar que, no período subseqüente, em que o desempenho da economia foi ainda mais impressionante (a partir da década de 1990), o aumento das desigualdades fez com que passassem a existir perdedores nesse processo, ainda que o crescimento (mesmo que desigual entre regiões) tenha sido difundido por todo o país e o nível de renda per capita venha crescendo sistematicamente.

transição foram a forma particular desenvolvida para lidar com tais distorções. Constituíram arranjos institucionais que fogem aos padrões usuais e, para compreendê-las muitas vezes é necessário recorrer ao argumento do “second best” - remover uma distorção pode ser contra- produtivo na presença de outra distorção maior. Essa perspectiva vai totalmente ao encontro da idéia das racionalidades ocultas, de Hirschman.

Um dos exemplos de instituição de transição mencionado foi o mecanismo de liberalização chamado de “dual-track”. Iniciado na agricultura e depois estendido às demais atividades, a idéia era de que o produtor passaria a ter liberdade para vender no “mercado” toda produção que excedesse a cota pré-estabelecida pelo regime planificado. Desta forma, não se eliminava o sistema de cotas e o governo continuava exercendo sua função de redistribuição, mas, ao mesmo tempo, estava sendo gerado um “mercado” e incentivos. Os resultados em termos de eficiência foram muito expressivos, ao mesmo tempo em que foi possível preservar as rendas e interesses existentes.

Outro exemplo foi a criação das Township-Village Enterprises (TVEs). Como não existiam instituições/regras para proteger a propriedade privada e, ao mesmo tempo, havia ainda forte hostilidade à idéia da propriedade privada, os governos locais criaram essas empresas como um substituto histórico, que permitia garantir a oferta de bens públicos à população local, obter receita (também não existia um sistema tributário efetivo) e, ao mesmo tempo, estimular a produtividade.

Um terceiro exemplo foi a descentralização econômica, atribuindo maior autonomia para os governos locais. As novas regras determinavam que os governos locais repassassem uma receita fixa para o governo central referente ao que provinha da alfândega e dos impostos diretos ou lucros das empresas estatais (State Owned Enterprises - SOEs) do governo central. As receitas provenientes de outras fontes, sobretudo locais, eram divididas com o governo central de acordo com regras pré-estabelecidas que, em geral, permitiam um elevado grau de retenção local. Desta forma, o governo central tinha assegurada sua receita e, ao mesmo tempo, proporcionava forte incentivo para que os governos locais desenvolvessem sua própria base tributária.

A instituição das contas bancárias anônimas, em que o depositante não precisava registrar nem seu nome verdadeiro, nem sua identidade, representou outra importante instituição de transição para Qian. Neste caso, foram utilizadas instituições que já existiam na China antes de 1978, porém com outra finalidade: assegurar os incentivos e os direitos de propriedade privada, na ausência de instituições com essa finalidade. O governo teve de abrir mão de informações sobre as riquezas individuais e, em conseqüência, da possibilidade de

aumentar a receita tributária por meio de uma tributação progressiva. No entanto, face à inexistência de instituições/regras de defesa da propriedade privada e de um sistema tributário efetivo, o anonimato e a redução da taxa de imposição permitiram que os depósitos bancários aumentassem muito. A receita do governo permaneceu elevada em decorrência das taxas de crescimento elevadas e o governo central continuou controlando o fluxo de capital e os juros domésticos. Ou seja, o sistema permitiu atingir dois objetivos simultaneamente: o aumento da eficiência e a compatibilização de interesses.

Finalmente, a reforma de empresas estatais de grande porte foi iniciada, com o objetivo de introduzir um novo padrão de incentivos na economia chinesa.

A própria evolução interna do país permitiu que as quatro primeiras “instituições de transição” fossem superadas por novos arranjos institucionais. O sistema “dual track” foi gradualmente eliminado desde o início da década de 1990, embora os indivíduos que necessitavam tenham sido compensados durante algum tempo com um sistema de cupons e de subsídios.

As TVEs foram sendo privatizadas e hoje apresentam uma participação muito mais reduzida no universo das empresas na China. Aos poucos, outros padrões foram sendo autorizados pelo governo, conduzindo à formação de um leque diversificado de empresas com estruturas de propriedade do capital muito distintas do que é conhecido no restante do mundo, combinando a participação de diferentes atores em proporções variadas, segundo regras originais e carregando heranças históricas. Muitas das empresas chinesas que se destacaram no cenário nacional e, em seguida, avançaram com sucesso em direção a outros mercados foram originalmente TVEs.

O sistema federalista foi objeto de reformas fiscais e tributárias no ano de 1994, que caminharam em direção a regras mais claras e maior transparência, embora ainda persistam muitas questões a serem tratadas nesse âmbito. Finalmente, no ano de 2000 foi instituída a obrigatoriedade da identificação dos depósitos bancários.

O único caso em que a evolução tem sido mais lenta é o da reforma das grandes empresas estatais, que hoje encontra-se sob responsabilidade de um órgão específico do governo – a State Owned Assets Supervision and Administration Comission (SASAC), ligada ao Conselho de Estado. Nesse caso específico, a complexidade envolvida na transição é muito maior, seja pelos impactos sociais e políticos da privatização dessas empresas, seja por seu caráter estratégico, que indica a oportunidade de preservar a propriedade estatal e de promover o desenvolvimento dessas empresas, inclusive sua internacionalização. Nesse caso, trata-se de uma trajetória totalmente distinta do padrão de privatizações que esteve presente na

maior parte dos países ocidentais e mesmo em algumas economias asiáticas no final do século XX.

Existe um termo chinês para denotar o caráter gradual e permanente da reforma dessas empresas - Gaizhi, que significa “transformando o sistema”. O Gaizhi não é um evento que ocorre de uma vez, mas um processo contínuo de reformas e reestruturações. Os programas de Gaizhi na China têm conduzido a resultados muito superiores àqueles verificados em outras experiências internacionais de privatização. As empresas privadas têm sido capazes de absorver grande parte da mão-de-obra dispensada, aliviando os custos sociais da reestruturação e contribuindo para a estabilidade social e o bem estar dos trabalhadores, considerados, junto com os impactos fiscais, aspectos prioritários na reforma das estatais (Garnaut et al., 2005).

Qian utiliza uma comparação entre a medicina chinesa e a ocidental, essa última calcada em cirurgias e fortes antibióticos, para retratar a especificidade do processo de transição chinesa, identificando a filosofia da medicina ocidental com a orientação gradual para a atuação dos policy makers e reguladores chineses.

A co-existência de elementos dos sistemas comunista e capitalista na China, que muitas vezes aparece sob a forma da convivência entre passado e presente, embora as duas dicotomias não devam ser confundidas, é ainda facilmente perceptível no país, formando um híbrido distinto de tudo que se conhecia até então.

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