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na Era da Reforma: Quatro Pontos de Vista

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ola Scriptura,fornece a chave mais importante para se compreender a varie­ a expressão latina para “a Escritura somente”, dade de abordagens à doutrina da Trindade que se desenvol­ veu durante o período da Reforma. Sendo o grito de guerra para o assalto popular à autoridade da igreja medieval, praticamente todos os matizes de dissidentes religiosos utilizavam sola Scriptura - mas nem todos com o mesmo sentido. variedade de pontos de vista da Reforma a respeito da Trindade espelha de modo claro o espectro de atitudes em relação a sola Scriptura e o uso da expressão.

Os quatro grupos que examinaremos com algum detalhe neste capítulo representam um contínuo de pontos de vista sobre a Trindade, do extremo tradicional ao revolucionário.

1. Uma vez que a Igreja Católica Romana rejeitou a autoridade unicamente das Escrituras, ela manteve o dogma tradicional da Trindade, conforme desenvolvido por Atanásio, Agostinho, Aquino e outros.

2. Os principais reformadores - Lutero, Calvino e seus segui­ dores - mudaram da tradição e da filosofia para as Escrituras suas provas principais em favor da Trindade, mas mantiveram as fór­ mulas trinitarianas dos primeiros credos cristãos.

3. Os restauracionistas anabatistas efetuaram uma ruptura mais radical com a tradição, procurando restaurar plenamente a doutrina e até mesmo o padrão organizacional da igreja do Novo Testamento. Conseqüentemente, embora retivessem a crença na Trindade, sua explanação sobre ela era mais simples e mais pró­ xima da linguagem das Escrituras.

4. Os racionalistas antitrinitarianos também afirmavam a au­ toridade das Escrituras somente, mas em relação à Trindade che­ garam a conclusões radicalmente diferentes. Ao mesmo tempo que repudiavam os fundamentos filosóficos da teologia medieval (Servetus, pág. 67), sua própria reverência pela razão humana tornou-se outra forma de comprometimento da autoridade da Escritura somente.

Parece claro que o conceito de sola Scriptura não significava a total rejeição de todas as demais formas de autoridade. Represen­ tava, antes, a subordinação de todas as autoridades humanas — como a tradição, os papas, os concílios e os imperadores — à su­ prema autoridade das Escrituras. Entretanto, mesmo Lutero, que inicialmente popularizou o slogan, nem sempre o seguiu comple­ tamente. Assim, parece que os reformadores comprometeram o sola Scriptura — quase fatalmente - desde o princípio, pois mes­ mo seus campeões não conseguiram perceber a extensão em que pressuposições contrárias às Escrituras haviam moldado sua visão do mundo. Vivendo numa sociedade religiosa difusa, poucos consideravam que pressuposições fundamentais baseadas na filo­ sofia grega haviam predeterminado em grande medida o modo como interpretavam as Escrituras. Vários exemplos emergirão à medida que examinarmos mais detidamente as quatro principais abordagens à doutrina da Trindade na era da Reforma.

O Dogma Católico Romano da Trindade

O ponto de vista católico romano foi o ponto de partida de todos os reformadores. Conforme esboçado nos capítulos ante­ riores, a Igreja Católica Romana chegara, durante a Idade Média,

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à conclusão de que a Trindade era o mais “central” e “fundamen­ tal dos ensinamentos” (Pelikan, vol. 3, pág. 279). A formulação filosófica da Trindade era central e fundamental porque, mais que qualquer outra doutrina, dependia diretamente das pressuposi­ ções filosóficas gregas. Portanto, sua definição como dogma (algo que precisava ser aceito por todos os fiéis) colocou o selo da legi­ timidade sobre as pressuposições de Aristóteles e Platão utilizadas para interpretar as Escrituras. Isso era fundamental porque os teólogos da igreja empregaram as mesmas pressuposições para de­ fender outros ensinamentos, como a imortalidade natural da alma, que por sua vez era um pré-requisito necessário à crença no tormento eterno, purgatório, limbo e a mediação dos santos, para mencionar uns poucos exemplos. Assim, a aceitação do dogma da Trindade validou toda a estrutura dogmática da igreja medieval (veja Pelikan, pág. 279).

Neste ponto, precisamos apresentar alguns dos principais ele­ mentos da filosofia grega, que tão poderosamente influenciou o desenvolvimento da teologia cristã. O mais importante conceito para a presente discussão envolve a noção de dualismo radical. A filosofia grega percebia o Universo inteiro como dividido em duas categorias de existência: alma (ou espírito), definida como ineren­ temente imortal e boa; e coisas materiais, que eram transitórias e essencialmente más. Tal dualismo era “radical” no sentido de que envolvia não meramente o conflito entre o bem e o mal, mas con­ trastava drasticamente estados de existência. Isso se tornará mais claro quando considerarmos três aspectos do dualismo radical sub­ jacentes à doutrina da Trindade: (1) alma e corpo; (2) Deus e homem; e (3) tempo e atemporalidade (ausência de tempo). O que apresento aqui é uma extrema simplificação, mas a baseei parcialmente no tra­ balho erudito de Fernando Canale (“Doctrine of God”).

Para muitas pessoas, o aspecto mais familiar do dualismo grego é o conceito de que o ser humano consiste de uma alma imortal, que é naturalmente boa, e de um corpo mortal, que é basicamen­ te mau e precisa finalmente morrer a fim de liberar a alma.

Um segundo aspecto do dualismo grego é uma forma particular de definir Deus em relação à humanidade. A filosofia grega não era ateísta — longe disso. A mitologia grega imaginava um panteão de deuses masculinos e femininos muito humanos, de Zeus a Afrodite. A filosofia grega de Aristóteles e Platão, entretanto, en­

sinava uma divindade suprema, totalmente diferente dos humanos. Os filósofos gregos entendiam a Deus como a perfeição absoluta. Identificavam o Criador como o “inamovível movedor”, porque Aristóteles acreditava que se Deus tão-somente pensasse a respeito de coisas materiais, defeituosas e mortais, isso arruinaria Sua ab­ soluta perfeição. Ele era “impassível”, ou seja, livre de todas as paixões (sentimentos e emoções) - exatamente o oposto do Deus retratado em Isaías 53:4-6 e Hebreus 4:15. Um historiador sinte­ tiza desta forma a situação:

“O Deus de Agostinho, embora trinitariano, foi tornado cativo da filosofia teológica grega da divina simplicidade, imutabilidade e impassibilidade, sendo mais semelhante a um imperador cósmi­ co do que a um amoroso e compassivo Pai. Anselmo negou que Deus pudesse experimentar qualquer forma de compaixão. ... Aqueles que corretamente criticam o deísmo por ele subverter os ensinamentos bíblicos ao exaltar acima deles o Iluminismo filo­ sófico e a religião natural deveriam considerar a extensão em que a doutrina cristã clássica de Deus foi indevidamente influenciada pelas categorias filosóficas gregas da perfeição metafísica” (Olson, Story o f Christian Theology, pág. 530).

Para tal Deus, ingressar na história e interagir com os seres humanos no espaço e no tempo era, por definição, impossível. A única exceção a essa radical separação entre Deus e a huma­

nidade era a alma humana, compreendida como uma chama da alma divina e inerentemente imortal. Em virtude de seu apri­ sionamento pelo corpo mortal, a alma propiciava o único ponto de contato através do qual o Deus do lado de fora da História podia influenciar os seres humanos, presos na armadilha do tempo e do espaço.

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Um terceiro aspecto do dualismo radical que se encontra sub­ jacente aos dois anteriores e assevera em grau adicional o isola­ mento fundamental entre Deus e a humanidade é o dualismo do tempo e da atemporalidade. Os filósofos conceberam a eternida­ de de Deus como “atemporal”, ou seja, um “eterno presente”, sem passado ou futuro - em forte contraste com a vida humana, expressa em termos de tempo passado, presente e futuro. Pode­ ríamos apresentar estes aspectos num diagrama assim:

1. Deus = Alma pura

2. Deus é impassível; não pode ingressar na História...

3. Deus existe na atemporalidade, “eterno agora”

Radical separação entre a atemporalidade de Deus e a história humana

1. Humanos = corpo material mau + chama de alm a imortal

2. ...exceto via alm a hum ana

3. Os humanos vivem no tempo e no espaço

Em cada um desses aspectos, as Escrituras apresentam um qua­ dro muito diferente daquele proposto pelo dualismo. Em primeiro lugar, em vez de uma alma naturalmente imortal e um corpo mau, as Escrituras asseveram que o corpo foi criação de Deus e era “muito bom” (Gên. 1:31). Além disso, a alma não é algo capaz de experi­ mentar existência consciente separada do corpo (Ecle. 9:5 e 6). Em vez disso, a terminologia escriturística para “alma vivente” refere-se à pessoa como um todo, inclusive o corpo (Gên. 2:7). Longe de ser inerentemente imortal, “a alma que pecar, essa morrerá” (Eze. 18:4 e 20). Dar suficiente detalhe a este respeito foge ao escopo deste tra­ balho, mas o forte contraste entre as Escrituras e a filosofia grega nessa área tem recebido crescente reconhecimento de conhecidos teólogos em anos recentes (Cullmann, Fudge, Pinnock, Stott).

Em segundo lugar, as Escrituras contradizem a teoria dualista de que Deus não pode intervir na história humana. O dualismo

defende que Deus, sendo pura alma, age fora do tempo e do es­ paço e que, adicionalmente, sendo “impassível” (sem compaixão ou sentimentos), não tem qualquer interesse nos assuntos huma­ nos. Ao contrário, as Escrituras retratam a Deus como entrando na história humana, no tempo e no espaço, conforme a Sua von­ tade. Em Gênesis, o Senhor Deus caminha e conversa com o casal no Éden (Gên. 3:8 e 9), confronta Caim (Gên. 4:6), intervém na Torre de Babel (Gên. 11:5) e negocia com Abraão a respeito de Sodoma (Gên. 18:16-33). No Êxodo, Deus aparece, fala e apre­ senta Seu próprio nome a Moisés, junto à sarça ardente (Êxo. 3:4-4:17); revela-Se de forma visível aos 70 anciãos de Israel (Êxo. 24:9-11); e permite a Moisés uma visão direta de Sua pes­ soa (Êxo. 33:19-23).

Mas a filosofia grega considera essas coisas como simplesmente impossíveis, impensáveis, de modo que as interpreta como figuras de linguagem. O que quer que as pessoas comuns entendessem dessas histórias bíblicas (e independente de como os escritores bí­ blicos houvessem considerado os seus próprios escritos), os filóso­ fos “sabiam” que era um absurdo a divindade ingressar na História, uma contradição em termos que obviamente não podia ser toma­ da como declaração da verdade última.

jüma terceira área em que as Escrituras desafiam uma premis­ sa grega fundamental diz respeito ao tempo e à atemporal idade (Gonzalez, Christian Thought Revisited, pág. 103). As Escrituras retratam a Deus como maior que o tempo e experimentando o tempo de modo diferente de nós (Sal. 90:4; II Pedro 3:8), mas isso não O exclui de viver no tempo. Pelo fato de que Ele “vivifi­ ca os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rom. 4:17), pode antever pessoas que presentemente se encon­ tram mortas como serão quando Ele as ressuscitar (Mat. 22:32). Assim, Ele conhece (antevê) o futuro, o que não podemos fazer. Mas isso não equivale ao conceito de atemporalidade, que vê a Deus como existindo num “eterno agora”. A eternidade na qual Deus vive (Isa. 57:15) e a vida eterna que Ele promete aos crentes

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fiéis (João 3:16) não constituem ausência de tempo, mas sim tempo interminável (Sal. 102:27; Isa. 66:22 e 23).

Por causa desses conflitos básicos com as Escrituras, os filósofos gregos consideravam as Escrituras, especialmente as Escrituras he­ braicas, como escritas para os de “mente simples”, e grandemente inferiores à filosofia (ibid., pág. 119). Conseqüentemente, avalia­ vam qualquer texto das Escrituras a partir da filosofia grega.(Tudo que concordasse com a filosofia era aceito como verdade; tudo que discordasse, eles consideravam figurativo ou história moralizadora para as massas iletradas. J

Observe o que ocorre com o ensinamento bíblico sobre Deus quando o vemos a partir das lentes da atemporalidade. Quando Deus diz, em Malaquias 3:6, “Eu, o Senhor, não mudo”, Ele quer dizer que Seu caráter é imutável, estável, portanto confiável. In­ teiramente digno de confiança, Ele cumpre Suas promessas. He­ breus 13:8 afirma a mesma coisa em relação a Deus Filho: Ele “ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre”. Mas a atempo­ ralidade diz que Ele não tem “ontem”, nem passado ou futuro, antes é estático, imóvel, num estado de “eterno presente”.

Quando Jesus disse: “Vim de Deus e aqui estou” (João 8:42), o significado claro de Seu pronunciamento aos que O ouviam foi uma reivindicação: “Meu testemunho a respeito do Pai é confiá­ vel porque Eu O conheço intimamente; foi Ele quem Me enviou ao mundo e Eu falo como o representante indicado por Ele” (pa­ ráfrase livre de João 8:14-17, 28, 29, 38 e 42).

Mas um filósofo grego observaria imediatamente que, se Jesus veio de fora do mundo, veio também de fora do tempo; portan­ to, Ele precisava haver preexistido na atemporalidade. Uma vez que a atemporalidade era entendida como um eterno presente, se Cristo “veio” do Pai que existe na atemporalidade, então Sua “vinda” do Pai é eterna. Não teve princípio (passado), nem fim (futuro), mas é eternamente “procedente”. Assim, o dualismo in­ terpreta essa simples declaração de Jesus a respeito de Sua vinda ao mundo como referindo-se à Sua origem última.

Podemos deduzir daí duas implicações. Em primeiro lugar, um resultado de ler a declaração de “procedência” filosoficamen­ te é que “o Pai é a única das três pessoas que não procedeu de qualquer outra” (Boaventura, citado em Pelikan, vol. 3, pág. 278). O conceito ortodoxo oriental difere em detalhes, mas igualmente sustenta que unicamente o Pai “é não-gerado, o Filho é gerado pelo Pai, e o Espírito Santo procede do Pai através do Filho” (ou, como dizem alguns, “do Pai somente” [ODCC\).

A segunda implicação é que, se a eternidade é um “eterno pre­ sente” atemporal, então qualquer coisa que já tenha acontecido a Deus está ainda acontecendo, e prosseguirá acontecendo para sempre. Isso deu origem à teoria da “eterna geração do Filho”. Al­ guns incluem o Espírito Santo nessa “eterna geração”, uma vez que dEle também se diz haver “procedido” do Pai [João 15:26] (ODCQ. Tal teoria não tem estado livre de críticas. João Calvi- no, por exemplo, exclamou que “é tolo imaginar um contínuo ato de geração quando é evidente que três pessoas têm existido em um Deus desde a eternidade” (Institutes I, xiii. 29). Pois ain­ da assim, a despeito de brilhantes, famosos e eruditos opositores (Gonzalez, History o f Christian Thought, vol. 3, págs. 91 e 92), a teoria da “eterna geração do Filho” permanece como parte do dogma da Trindade da Igreja Católica até hoje (Hogan e LeVoir, págs. 12-14). Porém, esse conceito e suas implicações estão basea­ dos tão-somente no conceito aristoteliano da atemporalidade.

A razão pela qual esse dogma permanece virtualmente inalte­ rado até o presente é que a igreja tornou a sua base lógica uma parte oficial da lei da igreja. O Concílio de Trento (1545-1563), que se iniciou no ano anterior à morte de Lutero e terminou no ano em que Calvino morreu, representou uma síntese da respos­ ta católico-romana à Reforma. Depois de extensos debates, o concílio votou que a igreja não pode basear a doutrina unicamen­ te nas Escrituras, como pretendiam os protestantes, mas em duas fontes de autoridade: as Escrituras e a tradição, dentre as quais a tradição é mais fundamental. Além disso, Trento redefiniu a tradição,

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não mais como herança da antiguidade, mas como a contínua inspiração da igreja. Se a contínua inspiração da igreja é uma fonte mais importante de autoridade do que as Escrituras, então os pronunciamentos oficiais da igreja constituem sua própria auto­ ridade suprema. É a posição diametralmente oposta à da sola Scriptura, e a razão pela qual não temos observado qualquer mu­ dança significativa no dogma católico da Trindade.

Os Reformadores Magistrais e a Trindade

As figuras principais que dominaram a Reforma protestante, no século 16 e até o presente, foram Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564). Lutero e Calvino colocaram as Escritu­ ras acima dos papas, dos concílios da igreja e da tradição. Contudo, nas áreas teológicas em que não perceberam problemas óbvios, as­ sumiram que a igreja havia se desenvolvido sob a orientação de Deus, e assim tenderam a interpretar as Escrituras sob formas que afirmaram pontos de vista tradicionais. Ao longo de todas as dis­ cussões e conflitos teológicos que tiveram com os católicos, prosse­ guiram assumindo que a visão da igreja sobre a Trindade constituía terreno comum a eles próprios (Pelikan, vol.4, págs. 157 e 158). Assim, Justo Gonzalez escreve que “Lutero é perfeitamente ortodo­ xo” e Calvino “inteiramente ortodoxo e tradicional” a respeito da Trindade (Gonzalez, History o f Christian Thought, vol. 3, págs. 41 e 126). Em poucos aspectos, contudo, eles tiveram o vislumbre da incoerência entre o testemunho bíblico acerca da Trindade e as es­ peculações dos filósofos. Tanto Lutero quanto Calvino desejavam uma doutrina da Trindade expressa unicamente em termos bíbli­ cos (Bainton, págs. 58-60; Pelikan, vol. 4, págs. 187, 188 e 322). Calvino criticou a teoria da “eterna geração” (Institutes I, xii. 29) e insistiu na autoridade unicamente da Escritura. Contudo, ele tam­ bém estava “disposto a interpretar as Escrituras à luz dos primeiros concílios ecumênicos”. Citou “com freqüência, e muitas vezes com aprovação”, os primeiros pais da igreja (Gonzalez, History o f the Christian Thought, vol. 3, pág. 126).

Em certo sentido, é gravemente injusto de nossa parte acusar os reformadores de haverem falhado em conseguir numa única geração a realização de seu ideal de ver a igreja regida unicamente pelas Escrituras. Temos dolorosa consciência de quão lento é o progresso em nossas próprias vidas. Entretanto, olhando em re­ trospectiva, torna-se óbvio que, sendo eles um produto da Idade Média, baseavam-se em uma visão de mundo derivada da filo­ sofia grega. Não obstante, pelo poder de Deus, tenham obtido grandes conquistas no sentido de remodelar a igreja e a socieda­ de segundo os padrões bíblicos, sua educação filosófica e sua imersão na visão comum de mundo tornaram-lhes virtualmen­ te impossível reconhecer que, em boa medida, ainda estavam interpretando as Escrituras através das lentes da filosofia grega. Pelo fato de não haverem percebido com clareza o conflito fun­ damental entre a sola Scriptura e o dualismo grego, os movi­ mentos por eles iniciados em grande medida retornaram, na ge­ ração seguinte, às pressuposições medievais. O resultado foi o escolasticismo protestante, método teológico construído sobre os mesmos fundamentos filosóficos utilizados pelos escolásticos medievais, antes da Reforma. Os escolásticos protestantes, a despeito de sua pretensão de adotarem unicamente a autorida­ de da Escritura, sustentavam que os ensinos de AristótelesJ “eram também um dom provindo do Pai das luzes’ [Tiago 1:17]” (Pelikan, vol. 4, pág. 348; Gonzalez, History o f Christian Thought, 241). Dessa forma, a fusão medieval de Aristóteles com as Escrituras sobreviveu à Reforma e ganhou um fôlego es­ pecial de vida um século depois de Lutero.

O fato de os protestantes abraçarem a filosofia grega levou os católicos romanos a advertirem os protestantes de que, se eles pretendiam reter a crença na Trindade, tinham de “abandonar seu princípio fundamental” da sola Scriptura (Pelikan, vol. 5, pág. 194). Isso faz surgir uma das mais importantes questões do deba­ te pós-Reforma acerca da Trindade: se descartamos a autoridade da tradição, será que as evidências das Escrituras ainda nos com-

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pelem a compreender Deus sob uma forma trinitariana? Alguns católicos romanos responderam que não, mas de todo modo o fi­ zeram baseados na tradição. Lutero e Calvino disseram que sim, mas seus descendentes pareciam menos seguros a respeito. Um terceiro grupo daria um “sim” bíblico à questão, mas, no decorrer do processo, simplificaria os termos da doutrina.

Os Anabatistas e a Trindade

Os anabatistas avançaram mais que Lutero e Calvino na rejei­ ção da autoridade da tradição. Retiveram a crença na Trindade, mas em termos consideravelmente mais simples que os dos tradi­ cionalistas e escolásticos. Os historiadores eclesiásticos descrevem os anabatistas como restauracionistas (ou restitucionistas), pois seu propósito não era meramente reformar (isto é, melhorar) a igreja, mas efetivamente restaurá-la à forma que possuía no Novo Testamento — até onde isso fosse possível, quinze séculos mais tarde (Liechty, págs. 3-7). Especificamente, rejeitaram o batismo infantil, a base da igreja estatal, argumentando que a igreja do Novo Testamento não incluía todas as pessoas em um dado ter­ ritório político, mas apenas aquelas que tomassem uma decisão pessoal de seguir a Cristo. Portanto, a igreja deveria reservar o ba­ tismo apenas para pessoas suficientemente maduras para assumir um compromisso deliberado.

Sendo que todos os europeus da época já haviam sido batiza­ dos como bebês, a sociedade via o batismo de adultos como um segundo batismo. O nome “anabatista”, cunhado pelos opositores, significa “rebatizador”. A lei imperial romana punira o rebatismo com a morte, e as nações européias recuperaram a antiga lei para lidar com os anabatistas. A convicção anabatista de que a igreja do Novo Testamento era uma igreja “apenas de crentes” significa­ va afirmar que o batismo infantil não era um verdadeiro batismo, e que as pessoas batizadas como infantes na verdade não eram cristãs. Dessa forma, a sociedade da época percebeu os anabatistas como ameaçando simultaneamente a unidade da igreja e a segu­

rança do Estado. Por isso, seus oponentes muitas vezes os quei­ maram na estaca ou os afogaram num “terceiro batismo” (Snyder, págs. 112, 118 e 193).

Os anabatistas pouco escreveram sobre a Trindade, pois não se especializaram em teologia sistemática. Eles acreditavam que os marcos básicos do verdadeiro cristianismo eram encontrados