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A Trindade no Primeiro e Segundo Séculos

O

s mais antigos escritos cristãos disponíveis - os livros que agora conhecemos como o Novo Testamento — clara­ mente apresentam o Pai, o Filho e o Espírito Santo. De acordo com Mateus 28:19, as igrejas locais deveriam admitir os novos conversos à jovem religião cristã batizando-os “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. Cada um dos três Seres era indisputavelmente central à crença e ao culto dos cristãos primiti­ vos. O que os documentos do Novo Testamento não tornavam imediatamente óbvio era a relação existente entre os membros da Divindade. Muitas das discussões e desentendimentos entre os cristãos dos quatro primeiros séculos consistiram de tentativas para estabelecer a maneira como deveríamos ver o relacionamen­ to entre Pai, Filho e Espírito. Os dois próximos capítulos traçarão algumas das mais antigas visões cristãs acerca de Deus, e explica­ rão de que modo a fórmula trinitariana veio a se tornar a preferi­ da para a compreensão crista da Divindade.

Podemos ver a história do desenvolvimento da doutrina de Deus na igreja como a história das pessoas tentando entender as Escrituras e o que elas revelam a respeito de Deus. Os cristãos pri­ mitivos sentiram a necessidade de construir sua abordagem das

Escrituras em duas áreas básicas.\J^rimeirp, tiveram de ide n t ifi car quais escritos eram autorizados; em segundo lugar, precisaram descobrir como interpretar tais escritos. Baseados nessa com­ preensão, lutaram então para sintetizar as diversas formas através das quais a Bíblia fala de Deus. O que tornou a tarefa particular­ mente penosa foi o fato de que até então uma descrição sistemática ainda não havia sido colocada em palavras humanas. Nem a lin­ guagem nem a filosofia encerravam à época as categorias que eles necessitavam para expressar o que as Escrituras revelavam acerca da Divindade.

A doutrina cristã sobre Deus surgiu a partir do primitivo pen­ samento judaico. O mundo judeu do primeiro século - do qual o cristianismo se desenvolveu - era fortemente monoteísta. Os ju ­ deus se destacavam de outros grupos religiosos em grande medida por sua forte crença em um - e apenas um - Deus. As palavras da Shema, em Deuteronômio 6:4, ecoavam diariamente na maioria dos lares judaicos: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o úni­ co Senhor.” Embora não seja absolutamente certo que a repetição diária desta prece retroceda até ao primeiro século da era cristã, não é por acidente que ela se tornou uma das orações judaicas mais universalmente praticadas, pois a Shema representa podero­ samente a compreensão monoteísta central à fé judaica. O judaís­ mo abarcava vários grupos de pensamento, incluindo os fariseus, saduceus, essênios e outros grupos espalhados pelo mundo do Mar Mediterrâneo, mas de modo geral essas diferentes correntes mantinham em comum a crença monoteísta. O cristianismo, que também aceitava as Escrituras hebraicas como autorizadas, com­ partilhava com o judaísmo a forte convicção monoteísta.

Em contraste, o mundo religioso greco-romano fervilhava com muitos deuses. À medida que o Império Romano se expandia, crescia o número de pessoas e de deuses que se agregavam à mis­ tura religiosa. A média das cidadeí do Império Romano apresen­ tava uma grande diversidade étnica e nacional em sua população, bem como um amplo espectro de divindades e templos pagãos.

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Contudo, na mente de alguns filósofos começou a emergir uma forte reaçao contra tal pletora de deuses.

Entre os filósofos greco-romanos, cresceu uma forte corren­ te monoteísta que reconhecia em termos finais um Deus que transcendia não apenas o mundo físico visível, como também qualquer deus pagão que se imaginava interagir com o mundo. No pensamento filosófico grego, a noção de um Deus único, acima de todos os outros deuses, retrocede pelo menos ao quar­ to .século antes de Cristo. Nessa época, Platão escreveu em sua obra Timeu a respeito de um Deus transcendente que criara o mundo por meio de um agente identificado como “demiurgo”. Aristóteles chamou esse “Deus acima de todos os demais” de “Inamovível Movedor”.

Mais tarde, os filósofos estóicos conheceram o ser transcen­ dente como “Um”. Os estóicos tentaram manter a tradicional re­ verência pela literatura antiga sobre os deuses, como os poemas de Hesíodo, Homero e Píndaro, mas ao mesmo tempo escolhe­ ram crer no Deus supremo. Assim o fizeram ao interpretarem as descrições de seus deuses - efetuadas em termos humanos, onde os deuses manifestavam comportamentos errôneos e imorais - como sendo uma alegoria.

Por volta do segundo e terceiro séculos da era cristã, aspectos de todas essas filosofias, ao lado de várias outras, haviam se com­ binado numa eclética visão de mundo helenística, que envolvia uma forma de monoteísmo, ou em alguns casos um politeísmo y hierárquico, liderado por um deus supremo. Uma das importan­

tes características deste deus maior da filosofia helenista era a sua completa transcendência. Eles criam que ele se encontrava total­ mente além do escopo do mundo que vemos e tocamos. Em contraste com a rudeza da galeria de deuses pagãos em suas in­ terações com os seres humanos e o mundo físico - seus ciúmes, assassinatos, incestos, glutonaria e adultérios - os filósofos deci­ diram conceber este Deus supremo como situando-se acima da esfera humana. Platão, por exemplo, pensava que o “mundo

real” não era o físico, mas o mundo do além, o dos “ideais” (ou do puro pensamento), fora do alcance dos sentidos humanos.

Os pensadores judaico-cristãos conseguiram usar a crença greco- romana em um deus completamente transcendente como ponto de contato com os amigos e conhecidos pagãos. Uma das formas pelas quais o monoteísmo judaico se adaptou à visão helenística sobre a divindade foi pela introdução de agentes semelhantes ao demiurgo de Platão na história da Criação, protegendo assim a Deus de um envolvimento direto com a substância material. Por exemplo, numa das paráfrases aramaicas do Gênesis, conhecida como Targum Neo- fiti,1 encontramos notável número de inserções, nas quais um agen­ te de Deus efetua as coisas físicas que o Gênesis atribui diretamente a Deus. Observe esta citação de Gênesis 1 do Targum Neofiti: “No princípio, com sabedoria o Memra do Senhor criou e aperfeiçoou os céus e a terra. ... E o Memra do Senhor disse: ‘Haja luz’.”2 O Mem­ ra atua aqui como agente de Deus, de modo que o próprio Deus, que é transcendente, não precisa ser retratado como contaminando- Se a Si mesmo com as coisas materiais da Criação. O Memra tam­ bém fala em lugar de Deus, uma vez que Deus propriamente dito não pode ser visto como possuindo características humanas, como boca ou voz.

Um preeminente judeu a sugerir que os agentes efetuaram a obra de Deus foi- Filo de Alexandria. Filo era um intelectual ju - \ deu que vivia na grande cidade egípcia de Alexandria à época de Jesus e Paulo. Sendo um judeu rico e erudito, conhecedor do idioma grego, Filo viu-se imerso em ambos os mundos culturais: o judaico e o greco-romano. Como resultado, muitas vezes ten­ tou harmonizar as preocupações filosóficas monoteístas de ambas as culturas. Escreveu abundantemente em várias áreas de inter- , pretação da Torá, e fez uso de rica mistura de interpretações ale­ góricas e literais em tratados a respeito da vida de Abraão, José e Moisés. Também foi muito cuidadoso em destacar que qualquer descrição física do Deus na Torá era figurada. Dessa forma, pro­ tegeu o Deus transcendente de assumir atributos físicos. Além

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disso, retratou as interações de Deus com o mundo físico e per­ ceptível aos sentidos como sendo efetuadas através de vários agentes, como Justiça, Sofia (Sabedoria) e, particularmente, o Lo- gos (Palavra).

Em seu tratado Sobre a Formação do Mundo, Filo retratou o Logos (o conhecido agente estóico de Deus) de forma dupla: como a idéia do universo físico e como o seu autor. Ou seja, Filo sugeriu que, no primeiro dia da Criação, Deus, a Mente Eterna, concebeu a idéia do mundo inteiro e criou o Logos à imagem des­ sa idéia. Poderíamos pensar neste conceito como um arquiteto planejando um edifício e então preparando um modelo para vi­ sualizar como o edifício se parecerá. Para Filo, o Logos foi o mo­ delo de todo o universo criado, embora não um modelo físico. O Logos, contudo, não foi apenas um modelo passivo, mas também participou ativamente, realizando aquilo que Deus planejara. Des­ sa forma, o Logos foi um agente criador, ou demiurgo, aquele que criou o mundo visualizado pela mente do Deus transcendente.

A preocupação filosófica greco-romana em ver o Deus supre­ mo como transcendendo as atividades mundanas e as caracterís­ ticas antropomórficas (isto é, semelhantes às de seres humanos) veio a ser compartilhada por intérpretes cristãos das Escrituras. Conforme veremos, este é um importante fator em várias tenta­ tivas primitivas e errôneas de descrever Cristo e a Divindade, e que se tornou parte integral dos pontos de vista arianos a respei­ to do Filho, no quarto século.

Por volta de 180 d.C., Teófilo, bispo de Antioquia da Síria, es­ creveu uma série de três breves livros para o letrado pagão Autóli- co, que se sentia atraído pela visão monoteísta de Deus, mas que, no entender de Teófilo, ainda não se encontrava preparado para ouvir toda a verdade acerca de Jesus Cristo. No capítulo 15 do se­ gundo livro, ele emprega o termo “trindade”, embora não com o mesmo sentido que o termo teria para cristãos de época posterior. O uso que Teófilo faz do termo não pretendia representar, de forma alguma, a Divindade composta de três pessoas. Em vez

disso, utilizou o termo para descrever Deus e dois de Seus agen­ tes, Sofia e Logos, que mantinham com Deus uma relação mui­ to parecida com aquela descrita por Filo de Alexandria. Teófilo chamou Logos e Sofia de “as duas mãos de Deus”. Além disso, re­ tratou o Logos como o agente de Deus que O representava quan­ do Ele tinha necessidade de aparecer e agir no mundo físico. Dis­ se Teófilo: “o Deus e Pai do Universo não Se acha confinado e nem presente em um dado lugar. ... Mas o Seu Logos, através do qual realizou todas as coisas, o qual é o Seu Poder e Sabedoria, as­ sumindo o papel de Pai e Senhor do Universo, achava-se presen­ te no Paraíso, no papel de Deus, e conversou com Adão. ... Des­ de que o Logos é Deus e deriva sua natureza de Deus, sempre que o Pai do Universo deseja assim proceder, envia o Logos a algum lugar, onde ele pode estar presente e ser ouvido e visto” (Teófilo de Antioquia, AdAutolcum 2.22).

Observe que Teófilo identificou o Logos, a Sabedoria e o Po­ der como um agente singular de Deus, e chamou a este agente de Filho de Deus. Teófilo não foi um precoce representante da teolo­ gia trinitariana, e sim alguém que abertamente apresentou Cristo como agente de Deus, um ser menor. Teófilo não menciona a Je­ sus Cristo em toda a sua obra, porém sempre se refere a Ele como sendo um agente de Deus. Este fato destaca a dificuldade que os cristãos do segundo século sentiam em compreender e comunicar sua forte convicção a respeito do Deus único e ao mesmo tempo adorar o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Os cristãos do segundo século exploraram várias formas de ve­ rem a Cristo, algumas das quais já aparecem nos escritos do Novo Testamento. O “docetismo” - termo grego baseado no verbo do- keo, que significa “parecer”, “como se fosse” - incluía ampla va­ riedade de crenças, as quais viam a Cristo como apenas parecen­ do ser humano. O conceito básico deste ponto de vista incluía a crença de que Jesus era um ser humano totalmente separado de Cristo, que era um ser divino. Essa distinção permitia que a di­ vindade fosse separada da humanidade, evitando-se assim a sua

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sujeição a aspectos humanos, como mortalidade, paixões e muta­ bilidade. A advertência de Paulo em I Coríntios 12:3 contra aqueles que diriam “Jesus é anátema”, em vez de dizerem “Jesus é Senhor”, é uma defesa contra a crença docética. Similarmente, a admoestação quanto a provar todos os espíritos, feita em I João 4:1-3, identifica o espírito do anticristo como negação de que Je­ sus Cristo veio em carne. I João 1:1-3 retrata a Jesus Cristo como eternamente com Deus o Pai e como um ser perceptível aos sen­ tidos humanos — ou seja, como Deus e como humano.

Nos Evangelhos, as pessoas à volta de Jesus muitas vezes O viam apenas como ser humano, não como Deus, em grande me­ dida porque Ele tinha aparência humana e agia como humano. Pouco tempo depois de Sua ascensão, contudo, surgiu a tentação oposta, e alguns cristãos começaram a ver a Cristo como Deus, negando que Ele verdadeiramente houvesse Se tornado ser huma­ no. A separação entre Jesus e Cristo permitiu-lhes acomodar as coisas em ambos os sentidos: Jesus poderia ser humano, ao passo que Cristo era divino. Porém, os livros do Novo Testamento re­ petidamente tornam claro que Jesus é Cristo. O problema lógico suscitado por este fato gerou controvérsias ao longo de séculos. As discussões cristológicas do segundo ao quinto séculos aborda­ ram diretamente esta questão. No contexto de nosso estudo do trinitarianismo, o foco não deve ser a cristologia, exceto para mostrar o intenso desejo dos teólogos primitivos de proteger a Divindade de ser retratada sob formas que eles consideravam im­

próprias para Deus. ^

Para simplificar, podemos classificar as muitas compreensões docéticas da pessoa de Cristo, já amplamente espalhadas no se- gundo século, em dois grupos principais: os marcionitas e os griósticos. Marcion foi um proprietário de navios comerciais que nasceu e cresceu no Ponto, próximo ao Mar Negro.'Em meados do segundo século, )ele apareceu em Roma como crente em Cristo - não um crente representante da média, mas alguém intensa­ mente rigoroso. Aparentemente, ele havia vendido sua empresa

marítima e doado o resultado da venda à igreja em Roma, seguin­ do o exemplo da igreja primitiva retratado em Atos. Marcion conseguiu grande influência junto à igreja de Roma de duas ma­ neiras. Como patrono, assistiu a igreja com sua riqueza e influência, e ao mesmo tempo revelou-se fervoroso líder religioso.

As crenças de Marcion como cristão não eram melhores re­ presentantes da média do que era seu comportamento. Ele fazia distinção entre Cristo e o Deus do Antigo Testamento, retratan­ do este último como uma divindade justa mas incompetente, que atuara como Criador do mundo físico mau. Marcion sugeria que este Deus doador da lei, o Deus de crua justiça, que exigia “olho por olho e dente por dente”, era incapaz de oferecer amor ou graça ou salvação. Cristo, por outro lado, representava uma divindade muito mais elevada. Marcion retratava a Cristo como o Deus de amor e graça, capaz de perdoar e oferecer a salvação. Em resumo, Marcion acreditava que o Deus judeu era uma po­ bre divindade manquejante, ao passo que Cristo era um bom e salvífico Deus, completamente independente do Deus do Velho Testamento e a Ele superior.

Obviamente, Marcion não poderia crer numa separação entre Deus Pai e Deus Filho e ao mesmo tempo conservar a crença de que as Escrituras hebraicas eram uma revelação válida de Cristo. Dessa maneira, rejeitou o Antigo Testamento e considerou-o uma forma de Escritura inferior àquela que revelava o novo Deus. Marcion cria que as Escrituras hebraicas pertenciam ao Deus inferior, ao passo que as novas Escrituras, contendo muito do que hoje conhecemos como Novo Testamento, eram uma acurada representação de Cristo, o Deus da salvação e amor. Uma vez que os Evangelhos retratam a Cristo como intimamen­ te relacionado com o Pai, que é o Deus do Antigo Testamento, Marcion também teve de rejeitar muito do que está escrito nos Evangelhos. jDe fato, ele aceitou.como Escrituras apenas partes do Evangelho de Lucas e algumas cartas de Paulo, eliminando qualquer referência ao Pai. A lista de Marcion, embora pudesse

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ser inteiramente inaceitável a muitos cristãos, é o mais antigo câ­ non (ou lista de livros escriturísticos inspirados) que agora pos­ suímos das Escrituras cristãs. Como reação à lista de Marcion, outro líder cristão primitivo, (Irineu, argumentou em favor da aceitação de quatro evangelhos — Mateus, Marcos, Lucas e João — dentre os muitos que então circulavam.

Os pontos de vista de Marcion provavelmente teriam encon­ trado pouco apelo junto a muitos dos cristãos se não fosse o sen­ timento anti-judaico já então observado. Fontes antigas tornam claro que tal sentimento já se espalhava amplamente por esse tempo. A Epístola de Barnabé, provavelmente escrita em Alexan­ dria por volta de 130 d.C., e o Diálogo Com Trifo, o Judeu, es­ crito por Justino, o Mártir, provavelmente em Roma por volta de 150 d.C., retratam o desejo de distanciar o cristianismo de qualquer judaísmo. Igualmente importante para o crescimento do marcionismo foi o fato de que os crentes não haviam até então ex­ plorado amplamente os parâmetros dos ensinamentos cristãos. Embora os escritos de Paulo e João estivessem circulando por essa época, advertindo a respeito dos vindouros lobos e anticris- tos que trariam falsas doutrinas, ninguém imaginava que estes pudessem ser representados por crentes cristãos do padrão mo­ ral e da generosidade de Marcion. Além de tudo, ele oferecera seus bens para o benefício da comunidade, exatamente como os zelosos crentes dos dias da igreja apostólica haviam feito. Ele vi­ via uma vida de elevada moral e ensinava uma ética rigorosa. Em síntese, não tinha qualquer aparência de lobo diante de seus companheiros, membros da igreja.

No fim, a maioria dos cristãos, mesmo na igreja de Roma, aceitou os quatro evangelhos como a autorizada e reveladora fon­ te de informação acerca de Cristo. Assim, os crentes rejeitaram os pontos de vista de Marcion sobre Cristo e seu limitado cânon es- criturístico. Devolveram o dinheiro do mercador como sendo inaceitável. O desafio por ele representado ajudou a estimular as decisões quanto aos escritos que a comunidade cristã deveria con­

siderar como Escritura inspirada. Os ensinos de Marcion tam­ bém estimularam muita reflexão sobre como formular um ponto de vista acerca de Jesus Cristo capaz de cobrir tudo o que os do­ cumentos inspirados revelavam a Seu respeito.

Outro grande desafio à compreensão cristã de Jesus Cristo proveio dos muitos diferentes grupos gnósticos de dentro e em torno do judaísmo e do cristianismo durante o segundo século. Para nossos propósitos, podemos definir o gnosticismo como uma filosofia religiosa que acreditava num Deus último vivendo no mais elevado dos céus, e cujas emanações eram deuses meno­ res vivendo em céus inferiores. Para os gnósticos, a escuridão es­ piritual enchia o mundo material, e apenas os que possuíssem conhecimento especial poderiam ascender aos céus após a morte do corpo físico. Em alguns sistemas de gnosticismo, esse conhe­ cimento advinha sob a forma de chaves secretas que continham o poder de derrotar os “archons” que guardavam cada nível dos céus. Muitos gnósticos usavam as Escrituras como um código que continha conhecimento secreto em suas palavras, mas não em seu significado literal.

Na primeira parte de sua obra Contra as Heresias, Irineu des­ creve alguns mitos sobre as emanações de Deus que os gnósticos acreditavam povoar os céus. Irineu derrotou os mitos usando as Escrituras, mas de um modo oposto ao que utilizara para derro­ tar Marcion com as mesmas Escrituras. Em resposta à rejeição de Marcion das Escrituras que dele discordavam, Irineu restaurou os quatro Evangelhos e as seções eliminadas das Epístolas de Paulo. Os gnósticos, em contraste, tendiam a aceitar como Escrituras um maior número de evangelhos e cartas do que hoje conhece­ mos. Como resultado, Irineu argumentou em favor de apenas quatro Evangelhos. Contudo, mesmo tomando como base ape­ nas os quatro Evangelhos e as cartas de Paulo, os gnósticos trata­