• Nenhum resultado encontrado

Na estrada longa da vida eu vou chorando as minhas dores:

3 SER DOCENTE: quando um só não dá conta de me fazer acreditar que

3.5 DOCENTES: O QUE ACONTECE COM ESSA PROFISSÃO?

3.5.1 Na estrada longa da vida eu vou chorando as minhas dores:

Desastres naturais, tragédias e morte de entes queridos são males que podem atingir todo ser humano em qualquer momento da vida. O tempo todo somos expostos às adversidades. Por mais que esses eventos possam ser perturbadores, debilitantes, e causar sofrimento, nem todas as pessoas reagem da mesma forma. Estudos demonstram que, enquanto alguns reagem a esses eventos de forma negativa, como desenvolvimento ou agravamento de transtornos mentais/psiquiátricos, outros, pelo contrário, reagem de forma adaptativa, mantendo uma trajetória de funcionamento saudável ao longo do tempo mesmo diante dessas adversidades (BONANNO, 2004).

Quando se instala uma crise, inúmeras demandas podem surgir, como aquelas ligadas à sobrevivência humana, à infraestrutura, à moradia, à comunicação e outras. Para Reyes (2006), os desastres costumam ocasionar enormes perdas materiais e humanas, as quais, na maioria das vezes, tendem a ser rapidamente esquecidas por quem não as viveu. Nesse universo de perdas, as pessoas afetadas podem ter perdido familiares, amigos, estrutura de apoio comunitário, trabalho e outros bens de valor para a sobrevivência. Na prática, isso nos leva a pensar que a maioria de nós já vivenciou ou vivenciará pelo menos uma situação adversa que venha a causar um trauma psicológico, porém é importante lembrar que eventos estressores por si só não levam à manifestação de traumas psicológicos.

O que define o trauma não é o evento em si, mas, antes, os recursos (ou a falta deles) de que o sujeito dispõe para responder ao evento. O trauma pode ser caracterizado por ações pequenas e ordinárias, que ocorrem de forma contínua e ao longo do tempo causam um desvio de percurso que impede a pessoa de viver plenamente, sendo chamado, então, de trauma de desenvolvimento. Por sua vez, o trauma causado por um evento único ou extraordinário é chamado de trauma de choque (LEVINE; FREDERICK, 1999; LEVINE; KLINE, 2007).

Segundo Peres (2014), é a lembrança específica de eventos em condições de extremo estresse que pode vir a disparar a formação de padrões defensivos de comportamentos inapropriados ao momento, causando desajustes à vida rotineira. São essas lembranças muitas

vezes que acompanham os sujeitos ao longo de suas vidas e durante seu processo de formação humana e que podem vir a criar impedimentos, barreiras, limitações, inseguranças, baixa autoestima dentre outros muitos comprometimentos bio-psico-sócio-afetivos nas relações do e no ser-no-mundo.

Para Neves, Hirata e Tavares (2015), o trauma, que desvia o sujeito de seu desenvolvimento “normal”, destitui as experiências presentes de seus valores reais, mantendo sempre atuais os espaços de silêncio no corpo. Muitas pessoas traumatizadas evitam falar sobre o trauma numa tentativa de não reviver / rememorar os sentimentos experienciados, alastrando assim os efeitos dos sintomas. Essa é uma estratégia de enfrentamento normalmente estabelecida pela maioria das pessoas traumatizadas, porém o falar sobre tem suas vantagens. Deve-se pensar o falar como sinônimo de uma possibilidade de enfrentamento e superação, adquirindo uma experiência / aprendizado sobre tal evento. Pessoas traumatizadas são incapazes de superar a ansiedade de sua experiência e permanecem sobrecarregadas pelos acontecimentos, derrotadas e aterrorizadas. As defesas protetoras usadas no trauma levam à alteração da consciência e à desconexão das sensações do corpo, impactando a memória, a coesão e a consciência de si (KRUEGER, 2002).

Um bom exemplo de que a expressão / o falar do trauma pode vir a contribuir com sua superação está no fragmento do depoimento do sobrevivente do Holocausto, Prêmio Nobel da Paz de 1986, Elie Wiesel (Apud PERES, 2014, p. 30):

[...] nós devemos falar. Ainda que não consigamos expressar nossos sentimentos e memórias da maneira mais adequada, devemos tentar. Precisamos contar nossa história tão bem quanto pudermos. Eu aprendi que o silêncio nunca ajuda a vítima, apenas o vitimizador [...]. Se eu ficar em silêncio, enveneno minha alma.

O trauma não é uma sentença perpétua, ele pode ser renegociado. Cyrulnik (2004) ressalta que o trauma não pode ser revertido depois de ocorrido, mas pode ser reelaborado e ressignificado, reduzindo o impacto provocado por estresses ou infortúnios ocorridos com crianças, adolescentes e suas famílias.

Um ferimento precoce ou um grave choque emocional deixam um traço cerebral e afetivo que permanece dissimulado sob a retomada do desenvolvimento. O tecido portará uma lacuna ou uma malha particular que irá alterar a continuação da tecedura. Poderá se tornar um tecido bonito e quente, mas será diferente. O distúrbio é reparável, às vezes até para melhor, mas não é reversível. (Cyrulnik, 2004, p. 113) Uma das formas mais potenciais que se conhece de traumatizar um sujeito é através da violência e suas diversas modalidades. A violência está presente em todos os lugares, nas

escolas, nas ruas, no ambiente doméstico, ou seja, é algo real que a sociedade vivencia e, devido ao seu aumento nos últimos anos, tem sido motivo de preocupação de pesquisadores. O aumento da violência na sociedade é que nos torna cada dia mais individualistas e autônomos.

Segundo Viana (2004), podemos falar em dois tipos de violência: a visível e a invisível. A primeira é caracterizada como agressões físicas, e a segunda, como imposições culturais, ou seja, agressões verbais, exclusões dentre outros. A violência se apresenta com o convívio de indivíduos indiferentes que se veem melhores em tudo, uma tentativa de oprimir outrem.

Tomando a violência não visível e bastante comum, temo a violência simbólica, na qual o indivíduo não percebe, de fato, mas acontece; para Bourdieu (1988), é considerado um problema de ordem social, ocorrendo no cotidiano das pessoas, sem que essas tenham a consciência da situação na qual estão envolvidas. Podemos pensar numa espécie de cumplicidade, em que, inconscientemente e de comum acordo, se estabelece a prática dessa troca de violência, alguns mandam e outros obedecem, sem perceberem o que está acontecendo de fato.

Enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica). (BOURDIEU, 1988, p. 11)

Ao pensarmos nas práticas educacionais e na promoção de resiliência, essa é uma das violências mais intensas, que consideramos difícil de ser percebida pelo outro como tal, uma vez que acredita ser ele o problema, além de ser de laboriosa inserção.

A violência assumiu um patamar de grande preocupação e relevância social; está presente nas diversas formas culturais, o que gera conflitos de entendimento, visto que o que é violento para uns pode ser tido como extremamente natural para outros, demonstrando extrema agressividade. Candau (2012) afirma que, para a prática da não violência, o cidadão deveria ser respeitado na sua alteridade, observando que a pobreza e suas consequências, o desemprego, a desigualdade social e a corrupção não constituem os únicos fatores determinantes da violência e não explicam a perda dos referenciais éticos, que sustentam as interações entre grupos e indivíduos.

A violência pode ser caracterizada como imposição de algo realizado por um indivíduo/grupo social a outro indivíduo/grupo social contra a sua vontade. Dependendo do local e da maneira como ocorre a violência, ela pode ser classificada como criminal, policial, estatal, institucional; pode também ocorrer na forma física ou psicológica, doméstica, rural, urbana, escolar dentre outras classificações, podendo ser aparente ou não.

Assumimos como violência qualquer forma de desrespeito ao direito e vontade do outro, expressa muitas vezes por atos, atitudes, gestos, falas e comportamentos que as pessoas praticam sem consciência efetiva do seu significado e de suas consequências. No ambiente escolar, pode ser observada em atos como falta de respeito aos colegas e professores, agressões verbais (ameaças e xingamentos), abandono e negligência (SOUZA, 2008), negligência de informações, não inclusão aos grupos, atividades etc.

Estudos mostram que a vivência na escola, seja entre pares, seja por professores, pode contribuir para o aparecimento de sintomas psicológicos ou psiquiátricos nas vítimas (HOUBRE et al., 2006), podendo gerar angústias e sofrimentos. Encontram-se descritos na literatura sintomas de depressão (FEKKES et al., 2010), ansiedade (LUUKKONEN et al., 2010) e até mesmo de Transtorno de Estresse Pós-traumático (ALBUQUERQUE; WILLIAMS; D’AFFONSECA, 2013; ATEAH; COHEN, 2009; CROSBY; OEHLER; CAPACCIOLLI, 2010), sendo que as consequências da violência escolar podem acontecer a curto, médio e longo prazo.

Stelko-Pereira e Williams (2010) destacam que definir violência escolar não é uma tarefa fácil, devido aos diversos elementos que contribuem direta ou indiretamente para a concretização da mesma. Aspectos culturais, quando se trata da imposição de cultura, de elementos simbólicos ou concretos de um povo/sujeitos sobre outros; históricos e/ou individuais, segundo os autores, são possíveis desencadeadores de atitude de violência, ao observar a presença da violência em todo o processo histórico, no caso do Brasil, desde a colonização até os dias atuais. A escola é composta por pessoas que viveram e vivem essas imposições culturais e sociais, por isso a violência está presente.

Violência isolada se dá entre dois indivíduos, o agressor e o agredido, podendo ocorrer em qualquer espaço, a qualquer momento, só bastando haver “disponibilidade” para tal entre as partes. Vale salientar que nem sempre acontece de maneira explícita. Sendo assim,

[...] compreende-se que a violência escolar incorpora tanto a perspectiva mais explícita da violência, como agressão entre indivíduos, quanto a violência simbólica que ocorre por meio das regras, normas e hábitos culturais de uma sociedade desigual. (STELKO-PEREIRA; WILLIAMS, 2010, p. 45)

As pessoas são diferentes, cada um possui seu modo de pensar e agir, suas crenças e seus costumes, que influenciam na concepção de violência de cada sociedade, assim como a falta de respeito ao outro e às suas crenças implicam movimentos violentos. No espaço de formação, é muito comum percebermos posturas que geram adversidades, dor, sofrimento pela imposição, pela dificuldade de percepção do outro, pelas relações de poder que vão se estabelecendo ao longo do exercício profissional, assim como o falso lugar do saber como máxima para a manutenção de status.

Essa é uma realidade presente nos processos formativos, de forma a gerar divergências entre os sujeitos, conflitos e relações interpessoais desastrosas, diversos subgrupos incapazes de interagir um com o outro, aumento da individualização do fazer pedagógico, além do adoecimento, afastamento e muitas vezes a desistência da profissão.