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3 SER DOCENTE: quando um só não dá conta de me fazer acreditar que

3.2 AXEL HONNETH E A TEORIA DO RECONHECIMENTO: uma lente

3.2.1 Conhecendo a teoria do reconhecimento de Axel Honneth

3.2.1.3 Solidariedade: terceira esfera do reconhecimento

Segundo Ponchirolli e Santos Filho (2011), há uma estrutura emocional e uma racional que são as bases dos dois padrões anteriores do reconhecimento intersubjetivo. O amor se baseia no afeto recíproco natural entre pessoas próximas, o direito concretiza-se no reconhecimento geral de que todos os indivíduos são pessoas com direitos. O primeiro está intrínseco ao ser humano, o segundo é intrínseco à sociedade moderna democratizada.

Tanto Hegel como Mead, na visão de Honneth, distinguiram do amor e da relação jurídica uma terceira forma de reconhecimento recíproco, que descreveram de maneira diversa, mas com algumas concordâncias, sobretudo no que se refere à definição de sua função, pois os sujeitos humanos precisam, além da experiência da dedicação afetiva e do

reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente às suas propriedades e capacidades concretas (ALBORNOZ, 2011).

Ainda a partir das contribuições de Hegel e de Mead, Honneth conclui que um padrão de reconhecimento dessa espécie, cuja substância seja a estima mútua — logo, que vá além dos afetos e também da rede jurídica dos direitos —, só se torna compreensível quando houver, por trás dele, um horizonte de valores partilhado entre si pelos sujeitos envolvidos. Já na apresentação do reconhecimento jurídico, o autor indicava a distinção entre o reconhecimento com base em leis e direitos e a rede da estima social, baseada em qualidades e realizações individuais, que vão ser expostas e reconhecidas no plano das relações intersubjetivas ou sociais, ou melhor, propriedades gerais do ser humano. No caso da valoração social, são postas em relevo as propriedades que tornam o indivíduo diferente dos demais, ou seja, as propriedades de sua singularidade. Portanto, Honneth parte do princípio de que a terceira forma de reconhecimento, a saber, a comunidade de valores ou solidariedade, deve ser considerada um tipo normativo ao qual correspondem as diversas formas práticas de

autorrelação valorativa.

O conceito de solidariedade social desenvolvido por Honneth, a partir da terceira etapa do reconhecimento, tem como base a ideia de que os pilares da sociedade moderna são as relações simétricas existente entre os membros da sociedade. Por relações simétricas deve-se entender, segundo Honneth, a possibilidade de qualquer sujeito ter chances de ter suas qualidades e especialidades reconhecidas como necessárias e valiosas para reprodução da sociedade. (MATTOS, 2006, p. 93) Honneth não aceita aquilo que Hegel e Mead consideram condição deste padrão de reconhecimento, pois ambos os autores estão convencidos da existência de um horizonte valorativo e intersubjetivo compartilhado por todos os membros da sociedade como condição da existência da forma de relacionamento que Honneth chama de solidariedade. Honneth procura mostrar, ao contrário, que com a transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna surge um tipo de individualização que não pode ser negado. A terceira esfera do reconhecimento deveria ser vista, então, como um meio social a partir do qual as propriedades diferenciais dos seres humanos venham à tona de forma genérica, vinculativa e intersubjetiva (HONNETH, 2003, p. 197). Honneth identifica um segundo nível desta terceira esfera do reconhecimento (solidariedade). No nível de integração social encontram-se valores e objetivos que funcionam como um sistema de referência para a avaliação moral das propriedades pessoais dos seres humanos e cuja totalidade constitui a autocompreensão cultural de uma sociedade. A avaliação social de valores estaria permanentemente

determinada pelo sistema moral dado por esta autocompreensão social. Esta esfera de reconhecimento está vinculada de tal forma em uma vida em comunidade que a capacidade e o desempenho dos integrantes da comunidade somente poderiam ser avaliados intersubjetivamente.

O terceiro elemento do reconhecimento é determinado não pelas ligações afetivas naturais nem pelos imperativos da sociedade civilizada, mas por um reconhecimento do grupo com características pessoais que estão presentes ao mesmo tempo nos valores que o grupo estima e que pertencem ao sujeito (HONNETH, 2003). Nos escritos de Hegel do período de Jena, havia-se encontrado o conceito de “eticidade” para designar uma semelhante relação de reconhecimento próprio da estima mútua; em Mead, por sua vez, pode-se encontrar, para a mesma forma de reconhecimento, não um conceito puramente formal, mas apenas o modelo da divisão cooperativa do trabalho, já institucionalmente concretizado (HONNETH, 2003, p. 198).

Enquanto o direito moderno representa um meio de reconhecimento que expressa propriedades universais de sujeitos humanos, a forma de reconhecimento por estima requer um meio social que avalie as diferenças de capacidades e qualidades entre sujeitos humanos, fundamentando os vínculos intersubjetivos. Essa tarefa de mediação é operada, no nível social, por um quadro de orientações simbolicamente articulado, embora sempre aberto, poroso, no qual se formulam valores e objetivos éticos, cujo todo constitui a autocompreensão cultural de uma sociedade (ALBORNOZ, 2011).

Tal quadro de orientações serve de sistema referencial para a avaliação de propriedades da personalidade, cujo “valor” social se mede pelo grau em que parecem estar em condições de contribuir à realização dos objetivos sociais.

A autocompreensão cultural de uma sociedade predetermina os critérios pelos quais se orienta a estima social das pessoas, já que suas capacidades e realizações são julgadas intersubjetivamente, à medida que cooperaram na implementação de valores culturalmente definidos. Nesse sentido, essa forma de reconhecimento recíproco está ligada à pressuposição de um contexto de vida social, cujos membros constituem uma comunidade de valores, mediante a orientação por “concepções de objetivos comuns”, e as formas que essa comunidade pode assumir são tão variáveis historicamente quanto as do reconhecimento jurídico. Quanto mais as concepções dos objetivos éticos se abrem a diversos valores e quanto

mais a ordenação hierárquica cede a uma concorrência horizontal, tanto mais a estima social assumirá um traço individualizante e criará relações simétricas10.

A estima social não demonstra, portanto, um nível ético superior no qual a vida, o bem-estar e a felicidade humana são os padrões essenciais do comportamento moral, mas uma mera associação entre aquilo que determinada sociedade considera importante e as características que um indivíduo veio a ter ou a adquirir. Logo, a estima social em Hegel e Mead não representa diretamente a ética social. A evolução dessa ética e a alteração dos valores socialmente superiores são fatores que podem tornar o reconhecimento no nível da solidariedade uma ferramenta importante na evolução do comportamento moral.

Honneth (2003, p. 200), contudo, propõe que, quando a “[...] estima social é determinada por concepções de objetivos éticos, que predominam numa sociedade, as formas que elas podem assumir são de uma grandeza não menos variável historicamente do que o reconhecimento jurídico”. Nessa proposta, a solidariedade tem uma abrangência muito maior e pode definir melhor o processo de reconhecimento da comunidade de valores. Nesse processo de reconhecimento, o indivíduo tem, ao mesmo tempo, sua individualização, com suas características próprias, e a igualização frente aos outros. Quando alcançado esse reconhecimento, surge a possibilidade de uma forma de autorrelação designada pela

autoestima. Negar esse nível de reconhecimento pela degradação e ofensa seria privar o

sujeito de sua honra e dignidade. Portanto, segundo Honneth (2003), as relações solidárias são aquelas em que há a tolerância e o interesse afetivo pelas particularidades do outro.

Segundo Honneth (2003), uma tensão especial da sociedade e do tempo impregna a forma moderna de organização da estima social, submetendo-a de modo duradouro a um conflito cultural. Trata-se de um conflito cultural de longa duração, pois, nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades associadas à sua forma de vida (HONNETH, 2003, p. 207). Assim, tem-se hoje que a afirmação na rede dinâmica da estima social não se faz apenas no registro da dinâmica intersubjetiva e do reconhecimento das capacidades e realizações individuais, mas na dinâmica dos grupos que representam formas de vida, como afirmação e conquista de estima social de grupos ou “movimentos sociais”. Quanto mais os movimentos sociais conseguem chamar a atenção da esfera pública para a importância das

10 Simetria para Honneth (2003) significa aqui que os atores sociais adquirem a possibilidade de vivenciarem o reconhecimento de suas capacidades em uma sociedade não-coletiva.

capacidades por eles representadas, de modo coletivo, tanto mais existe a possibilidade de elevar na sociedade o valor social do grupo que representam — dito de outro modo, elevar a reputação de seus membros. O autor não deixa de registrar que as relações de estima social estão associadas, embora de forma indireta, aos padrões de distribuição de renda, o que parece bem evidente; em consequência, os confrontos econômicos pertencem de modo constitutivo a essa forma de luta por reconhecimento. A esse respeito, sobre o elo entre as redes da situação econômica e da estima social, Honneth refere especialmente as contribuições de Georg Simmel (ALBORNOZ, 2011).

Partindo das ideias de Hegel e de Mead sobre as três redes de reconhecimento — afetiva, jurídica e social —, com a sociologia do reconhecimento, Honneth (2003) esclarece sobre a “solidariedade”, diz que se aplica especialmente às relações de grupo que se originam na experiência de circunstâncias difíceis, negativas. É o que se dá, por exemplo, em situações de resistência comum contra a repressão política, quando a concordância no objetivo prático, predominando sobre tudo, gera um horizonte intersubjetivo de valores, no qual cada um aprende a reconhecer, na mesma medida, o significado das capacidades e propriedades do outro.

Conforme relata Albornoz (2011), a espécie de autorrelação prática, em que a estima social é vivenciada segundo o modelo estatamental, com o desenvolvimento moderno da individuação, modifica-se a relação prática consigo próprio, em que a estima social encaminha os sujeitos. O indivíduo passa a referir a si próprio o respeito social que goza por suas realizações, aos olhos dos demais membros da sociedade; não se confunde mais com seu grupo, ou seja, não mais se identifica inteiramente com a estima social do grupo. Desse dinamismo decorrem expressões da autorrealização prática que, na linguagem comum, passam como “sentimento do próprio valor”, de “autoestima”, expressões paralelas com os conceitos antes atribuídos à rede afetiva e à rede jurídica de reconhecimento, respectivamente, de “autoconfiança” e de “autorrespeito”.

Figura 15 – Categoria de Reconhecimentos

Fonte: Nogueira; Pizzi (2016)

O quadro abaixo faz uma síntese panorâmica da Teoria do Reconhecimento e suas relações:

Quadro 3 – Estrutura das Relações Sociais de Reconhecimento

Modos de

reconhecimento Dedicação emotiva Respeito cognitivo Estima social

Dimensões da personalidade

Natureza carencial e

afetiva Imputabilidade moral

Capacidades e propriedades Formas de reconhecimento Relações primárias (amor, amizade) Relações jurídicas (direitos) Comunidade de valores (solidariedade)

Potencial evolutivo Generalização,

materialização

Individualização, igualização

Autorrelação prática Autoconfiança Autorrespeito Autoestima

Formas de desrespeito

Maus-tratos e violação

Privação de direitos e

exclusão Degradação e ofensa

Componentes ameaçados da personalidade

Integridade física Integridade Social “Honra, dignidade”

Fonte: Honneth (2003a, p. 211)