• Nenhum resultado encontrado

O nosso nó aportou e apertou na escolha que fizemos dentre as várias possibilidades e abordagens no campo qualitativo. Optamos por baixar âncora na Metodologia de Análise de Redes do Cotidiano13 (MARES), visto que a mesma enfatiza as redes do cotidiano, explicando como elas interferem nos processos de representação e instituição das realidades sociais e culturais, mas também nos utilizaremos de procedimentos da pesquisa bibliográfica, que mais tarde serão detalhados.

Com a MARES, Martins (2009, p. 61) visa

[...] sistematizar os fundamentos de uma abordagem fenomenológica e hermenêutica do cotidiano que nos ajude a descobrir a superfície da vida comum de maneira a expor os planos de organização das subjetividades. Para tal desconstrução, incorporamos os três níveis de organização identitárias e moral do sujeito sistematizados por A. Honneth, a saber: os da confiança, do respeito e da estima. A MARES trata-se de um método fenomenológico, interacionista e construcionista a ser utilizado para analisar redes sociais do cotidiano, em geral, e redes de usuários14 dos serviços públicos, em particular, com o objetivo de mapear as redes existentes, as redes em

13 O termo ”cotidiano” expressa algo muito mais complexo que tem a ver com as manifestações simultâneas, caóticas, e diferenciadas de desejos, sonhos e práticas colaborativas, coletivas e individuais, que conspiram a favor da organização da vida social em diversos planos: da vida afetiva, da vida social e da vida cultural (MARTINS, 2009, p. 67).

14 O usuário deve ser visto como um ator comunitário que reelabora sua fala técnica em função de alguns critérios, tornando-se atores sociais que podem se empoderar no processo de organização imaginária e institucional do ser usuário, posicionando-se como sujeitos ativos da ação e desconstruindo a associação negativa entre pobreza e pauperismo em geral (social, cultural, econômico e mental) (MARTINS, 2009, p. 58). O autor considera que o cidadão não é visto arbitrariamente e sim como um usuário, personagem que luta e que participa do processo efetivo de redistribuição dos bens de cidadania (MARTINS, 2008).

Usuários são variações da cidadania, surgidas do confronto por visibilidades das redes sociais nos espaços localizados entre o Estado, a sociedade civil e o mundo da vida. O usuário é quem usa e se apropria dos recursos das políticas distributivas do sistema formal e estatal. Neste sentido, pode ser passivo quando se apresenta como mera unidade estatística “público-alvo” ou ativo quando se articula em redes de usuários criando novas formas participativas na esfera pública local, municipal, intermunicipal, estadual, regional e cosmopolita (MARTINS, 2009, p. 79).

formação ou as redes potenciais, identificando os problemas que inibem a expansão da rede e os meios de superação dos problemas (TORRES, AMARANTE, 2000, 2007).

As redes sociais15 constituem um tema da maior atualidade sociológica para se compreender a complexidade da vida social, sobretudo nos tempos presentes em que a sociedade civil mundial exige respostas políticas locais, rápidas e eficazes, para assegurar a ampliação dos direitos de gozo da cidadania. Por um lado, a discussão sobre redes sociais responde diretamente aos anseios dos setores da sociedade civil, desejosos de promover políticas de inserção e de participação social. Mas, por outro, deve-se registrar que o interesse pelo assunto atinge também aqueles intelectuais e técnicos interessados em promover ações de descentralização em áreas estratégicas como aquelas da saúde e da educação, visando criar condições institucionais favoráveis para a emancipação de experiências de esfera pública e democrática. Neste sentido, as redes sociais aparecem como recurso decisivo para permitir o avanço de programas territorializados, que exigem envolvimento e participação ativa das populações locais, objetivando a promoção da cidadania e a democratização da vida local (MARTINS, 2008).

Para Martins (2009), a MARES é uma metodologia que busca resgatar a complexidade simbólica das práticas sociais entrelaçadas em sistemas interativos sobrepostos que articulam as regiões da moral, da afetividade, da associação espontânea, do direito e da corresponsabilidade na esfera pública. Essa metodologia diferenciada encerra uma reação normativa e sociológica contra as estratégias utilitaristas e reducionistas, as quais reduzem a análise das práticas a alguns modelos analíticos validados em indicadores superficiais como densidade e tamanho, mas que não contemplam a complexidade dos sistemas de relacionamentos e de trocas nos campos do mundo da vida.

Segundo Martins (2008, 2009), existem alguns desafios para aplicar a noção de rede nos espaços públicos de usuários, a saber: superar a compreensão funcionalista de rede que impede apreender os aspectos intersubjetivos das práticas sociais; entender o caráter relacional das redes; qualificar a rede de usuários (como aquele que usa e se apropria dos recursos das políticas distributivistas do Estado) como diferente da rede de cidadão; entender que a rede de usuários é diferente daquela rede social por se constituir nos espaços intermediários entre Estado, sociedade civil e mundo da vida.

15 O entendimento do usuário pela teoria relacional de redes permite compreender como, na prática do dia a dia, as pessoas nunca estão sozinhas, mas acompanhadas por parentes, amigos, vizinhos e, mesmos desconhecidos (MARTINS, 2009, p. 79).

Almeida (2012), em seus estudos sobre a MARES, relata que esta se encontra ancorada no referencial teórico proveniente das Ciências Sociais, tendo como cerne o ideal antiutilitarista. A concepção antiutilitarista se organiza a partir da produção de Marcel Mauss16, antropólogo e sociólogo francês que nas primeiras décadas do século XX propôs a teoria da dádiva. Estudando os movimentos que levam aos agrupamentos humanos arcaicos, sugere uma tríade de relações de dar, receber e retribuir como princípio de relações humanas que constituem as sociedades. Releituras contemporâneas enxergam estes movimentos presentes nas sociedades complexas do século XXI, movimentos que contrariam a ordem hegemônica instituída pelo mercantilismo, pelas relações de troca marcadas por relações utilitaristas unidirecionadas de dar e receber.

As implicações disto, que para Caillé (1998) constituem o único paradigma sociológico aceitável, para a pesquisa social são várias e compõem, por si, o itinerário de pesquisa aqui proposto. Porém de antemão podemos firmar compromisso com alguns pressupostos ético-políticos como o da relação entre os sujeitos envolvidos na produção coletiva do conhecimento. Estamos falando de uma relação solidária entre o ato de pesquisar e a ação social cotidiana. Nesta perspectiva, consideramos todos os envolvidos no processo como sujeitos da pesquisa e também fazemos opção por um comprometimento com a construção da integralidade na educação e relações humanas mais solidárias. Como explicita Martins (2009, p. 62),

A MARES é uma metodologia de base qualitativa que busca resgatar a complexidade simbólica das práticas sociais articuladas em sistemas interativos sobrepostos que articulam as regiões da afetividade, da moral, do direito, da associação espontânea e da corresponsabilidade na esfera pública. Esta metodologia encerra uma reação sociológica e normativa contra as estratégias reducionistas e utilitaristas levadas adiante por teorias como as do network analysis, que reduzem a análise das práticas a alguns modelos analíticos legitimados em indicadores superficiais como os de tamanho e densidade, que não respondem, em absoluto, à complexidade dos sistemas de trocas e relacionamentos, sobretudo nas esferas do mundo da vida.

Este interesse em evidenciar o pensamento antiutilitarista requer um diálogo da sociologia com as mudanças paradigmáticas das disciplinas afins e, por outro lado, a elaboração de um pensamento complexo no contexto da sociologia o qual dê conta de responder os novos desafios postos pelas mudanças simbólicas e materiais dos bens

16 Foi concedida uma referência ao pesquisador denominando o movimento por ele estudado de M.A.U.S.S. – Mouvement Anti-Utilitarist e dans les Sciences Sociales (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais).

circulantes e pelos processos de organização espacial e temporal da sociedade moderna, é o que nos revela Martins (2008).

Por seu fundamento fenomenológico e hermenêutico-dialético, o método utilizado parte do pressuposto que todos os indivíduos envolvidos na pesquisa são sujeitos do processo complexo de produção de conhecimento implicado (ALMEIDA, 2012), cujo objetivo amplo é identificar as crenças e valores dos atores locais a respeito dos problemas que inibem a vida nas comunidades e os meios de superação desses mesmos problemas, ampliando consequentemente a reflexividade dos mediadores sociais (sejam pesquisadores ou planejadores governamentais) na organização de espaços públicos (MARTINS, 2009).

A MARES, se utilizada de forma devida, pode possibilitar o desenvolvimento da reflexividade cooperada por parte dos participantes dos grupos pesquisados, bem como se apresentar como um excelente auxílio pedagógico nos processos formativos críticos.

A reflexividade é condicionada pela autoconfiança que se move pelo amor; no nível socioinstitucional, a reflexividade é condicionada pelo autorrespeito que se move pelo direito; no nível socioético, a reflexividade é condicionada pela autoestima que se move pela solidariedade. (MARTINS, 2009, p. 58)

O autor propõe várias possibilidades de e na utilização da metodologia proposta, combinando técnicas variadas de coletas de dados: grupos focais, entrevistas e profundidade, aplicações de questionários, mapas de redes, dentre outros procedimentos (MARTINS, 2009, p. 80). Iremos detalhar as nossas escolhas no próximo ponto, justificando-as mediante a necessidade de cumprir os objetivos da pesquisa.