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SÓ EU SEI OS DESERTOS QUE ATRAVESSEI Resiliência: os

1 INTRODUÇÃO

2.1 SÓ EU SEI OS DESERTOS QUE ATRAVESSEI Resiliência: os

Não vou me deter em trazer toda a cronologia e a história da resiliência, mas sim a tessitura desta rede de pescador que ora volta cheia de peixes, ora traz apenas os lixos do oceano. Brasil (2015) fez um estado da arte, mapeando a origem, surgimento, histórico mundial e nacional da resiliência em seu trabalho de dissertação do mestrado, não cabendo aqui mais uma repetição, assim como Rachman (2008), que desenvolveu uma revisão de literatura bem detalhada sobre resiliência nas áreas de Educação e de Psicologia da Educação de 2002 a 2007, que pode auxiliar o leitor na compreensão do fenômeno em questão.

O conceito de resiliência, ainda que permeado por discursos polissêmicos, vem ganhando espaço no cenário acadêmico nacional. Em países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Inglaterra e Austrália, a disseminação de propostas metodológicas com esse viés investigativo possui ampla diversidade (YUNES; MENDES; ALBUQUERQUE, 2005), variando intensamente de acordo com a área de estudo. Constatamos, no Brasil, que o tema da resiliência predominantemente situa-se na área da psicologia, embora possamos encontrar algumas propostas na área da educação (TAVARES, 2001; GARCIA, 2007; TIMM; MOSQUEIRA; STOBÄUS, 2008), serviço social (JANCZURA, 2005; MURTA; MARINHO, 2009) e enfermagem (SILVA et al., 2005; SÓRIA et al., 2006).

Etimologicamente a origem da palavra resiliência considera que ela advém do latim

resilio, resilire. Resilio, conforme dois dicionários latim-português (FARIA, 1967;

SARAIVA, 2000; TAVARES, 2001; PINHEIRO, 2004), seria derivada de re, indicando retrocesso, e salio, indicando saltar, pular, significando assim saltar para trás, voltar saltando.

De maneira geral, aceita-se que o termo resiliência deriva-se da física, indicando o retorno de um material a seu estado anterior depois de sofrer uma determinada pressão. Tavares (2001) faz uma analogia com a ideia de um material flexível capaz de autorregular-se e autorrecuperar-se, voltando à sua forma original após sofrer uma pressão externa ou uma modificação na estrutura. Mas como pensar isso no ser humano? Será que ele volta para o mesmo estado de quando sofreu a pressão?

Libório, Castro e Coelho (2006, p. 92) apontam que os estudos na área da resiliência atribuíram inicialmente ao termo a ideia de capacidade de resistir, “[...] sendo a força necessária para a saúde mental durante a vida”. Destacam que o termo foi utilizado por Bowlby ao finalizar seu primeiro livro sobre a teoria do apego, em 1969. Nessa época, já se atribuía ao termo o significado de um traço ou característica de personalidade que pode aparecer mesmo sob condições adversas. Assim sendo, os indivíduos que tinham experiências positivas com a mãe, o pai e outros adultos significativos poderiam ter uma formação de personalidade saudável, resistentes às situações adversas, ou seja, resilientes. Esse vínculo com a mãe é muito importante para os processos de reconhecimento, principalmente na esfera do amor.

Segundo Brandão, Mahfoud e Gianordolli-Nascimento (2011), os estudos da resiliência começam a surgir de forma mais intensa com as investigações de pesquisadores anglo-saxões, ingleses e americanos no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, a partir de eventualidades históricas e socioculturais que ocasionaram uma tendência de interesses e objetos de pesquisa de várias áreas da saúde mental.

Assis et al. (2006) adotam a noção de “potencial de resiliência”, que pode ser mais ou menos desenvolvido no decorrer da vida do indivíduo. Ou seja, para os autores, “todas as pessoas possuem um potencial para desenvolver resiliência em maior ou menor grau”.

A partir desta visão, os mesmos autores acima citados relatam sob sua ótica um problema originado dos estudos iniciais sobre resiliência, que a concebem como atribuição de sucesso pessoal frente ao meio social ‘desajustado’, uma ideia de superação, pois esta afirmação tem duas fontes de incerteza. Inicialmente podemos falar sobre a definição de critério de sucesso pessoal, já que muitos estudos se referem a pessoas “resilientes” como aquelas que não apresentam comportamentos antissociais ou problemas psiquiátricos, tornando assim a resiliência restrita à negação de comportamentos indesejáveis, enquanto outros estudos fazem conexão entre resiliência com término de estudos, obtenção de trabalho e manutenção de um relacionamento.

Sakotani (2016) assume assim uma condição sine qua non em que uma pessoa “resiliente” é aquela bem-sucedida em alguns aspectos da vida e o “não resiliente” seria aquele que não é bem-sucedido, sem considerar outras esferas da vida em que este mesmo indivíduo é capaz de superar as suas dificuldades.

A outra fonte de incerteza é a noção de cultura que determina o que é adaptação bem- sucedida e o que é ambiente desajustado, tornando pessoas “resilientes” aquelas que seguem as normas sociais vigentes, que são protegidas pelo grupo social ou familiar, principalmente os indivíduos pertencentes às classes mais privilegiadas. Isso acaba por rotular e estigmatizar as pessoas de grupos mais vulneráveis como “não-resilientes” (SAKOTANI, 2016).

Pessoa (2015) relata que a temática da resiliência pode direcionar a atenção para os fatores que são favorecedores do desenvolvimento saudável, (sinonimamente entendido como desenvolvimento positivo), mesmo quando encontramos no entorno do indivíduo condições extremamente adversas. O autor parte do pressuposto que é relevante analisar os indicadores sociais que conduzem pessoas a encontrarem formas de lidar tão distintas com os infortúnios. Em alguns casos, as pessoas simplesmente sucumbem mediante situações problemáticas. Em outros, notamos o aparecimento de estratégias, objetivas e subjetivas, que diluem a intensidade do impacto das adversidades.

A complexificação da noção de resiliência tem sido visível, fazendo com que a mesma seja vinculada aos processos sociais dinâmicos e intrapsíquicos de risco e de proteção, levando-se em conta a interação entre eventos estressores e fatores de proteção internos e externos do indivíduo, dois polos: adversidade e proteção.

É precisa estar alerta, fazendo ressalvas em relação à associação que geralmente é feita entre superação das dificuldades e resiliência.

O dicionário Aurélio (versão on-line) traz como significado para superar: Ser superior a ou melhor do que, passar mais além do que, obter uma vitória relativamente a, e/ou suplantar. Nem de longe são definições cabíveis aos nossos estudos, pesquisa e investigação.

É sabido que superar as dificuldades não significa sair totalmente ileso da situação ou evento adverso da vida, pois essas adversidades deixam algumas marcas em cada um, mais ou menos duradouras, de acordo com a forma específica que o sujeito lidou ou respondeu às situações de risco a que foi exposto.

Para Castro e Libório (2010, p. 21), o “referencial de superação é muito particular e subjetivo, variando de pessoa para pessoa, de grupo para grupo, de sociedade para sociedade. Modelos de sucesso estabelecidos por um grupo podem não coincidir com o referencial de

resiliência de outro”, principalmente em relação às diversidades culturais, o que deve ser levado em consideração em todos os âmbitos da pesquisa.

Neste emaranhado todo, ainda não há consensos na definição do conceito de resiliência, o que nos leva a tratá-la como um constructo quando aplicada às ciências humanas, sendo utilizada como uma metáfora, em que seu efeito principal é de criar uma imagem, uma nova significação. No campo humano não é possível pensar na possibilidade de sofrer um grande trauma e retornar ao estado anterior, mas, sim, na capacidade de resistência e flexibilidade mediante os acontecimentos, ou seja, após o trauma, o indivíduo é capaz de se reestabelecer seguindo sua vida e adequando-se à sua nova realidade (CABRAL; CYRULNIK, 2015). Também está associada com o desenvolvimento positivo de crianças, adolescentes e pessoas quando se deparam com adversidade (LUTHAR; CICCHETTI; BECKER, 2000; DAIGNEAULT; HÉBERT; TOURIGNY, 2007).

No pensamento de Junqueira e Deslandes (2003) por não haver ainda um consenso quanto à definição de resiliência, o que se deve tomar como base é a ressignificação do problema, e não a abolição do mesmo, ou seja, o ser humano ‘adapta-se’ ao problema e encontra caminhos para dar continuidade à dinamicidade da vida. A literatura (PINHEIRO, 2004; ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006) aponta importantes características presentes em indivíduos bem adaptados, como projetos de vida, bom humor, autoeficácia, autocontrole, autoestima, pensamento crítico, criatividade e perseverança, ressaltamos que essas características não são suficientes e/ou condicionantes de seres ou habilidades resilientes, sendo necessário insistir na composição com outros fatores e o meio.

O estudo sobre resiliência deve ser processual, dinâmico e relativo, não se baseando em perspectivas individualizantes (resiliência como característica do indivíduo), não relacionais (desconsidera o contexto e as relações interpessoais), deterministas (se é invulnerável, é inato), estigmatizantes (classifica como resiliente e não resiliente). (LIBÓRIO; CASTRO; COELHO, 2006, p. 94)

Corroborando esse modo de pensar, a resiliência deve ser entendida com dinamicidade, levando em consideração aspectos comunitários e culturais (UNGAR, 2007; UNGAR et al., 2007; 2008), num processo situado ontologicamente e atrelado à história do indivíduo. Enfatizamos, desse modo, que compreendemos os processos de resiliência como uma construção social, mediados especialmente pela disponibilidade de recursos (BOTTRELL, 2009) que trazem sentidos pessoais que se desdobram em significações sociais.

O indivíduo considerado resiliente passa por uma transformação, passagem da sombra à luz, reaprendendo a viver em sua nova vida após o trauma sofrido, pois é bem certo que o

mesmo não sai da experiência da mesma forma que entrou. Sendo assim, podemos dividir o processo de trauma em dois momentos: o primeiro gera a dor da ferida (a carência), e o segundo, a representação real que faz nascer o sofrimento. Para sarar a primeira ferida, é preciso que o corpo e a memória consigam realizar o processo de “cicatrização”, e, para o segundo, é preciso alterar a ideia sobre o que aconteceu, rever a representação do acontecimento na vida e construir um novo olhar (CYRULNIK, 2015). Importante ressaltar que o sujeito considerado resiliente, não é uma determinação, fixo, estático, pois as reações surgem de diversas formas a uma determinada situação a depender do contexto, do seu momento de vida bio-psico-socio-emocional.

A resiliência não é um catálogo de qualidades que um indivíduo possuiria. É um processo que, do nascimento à morte, nos liga sem cessar com o meio que nos rodeia. (CYRULNIK, 2001, p. 226)

Superar apenas, não nos traz modos de aprendizado, não nos leva a revisitar as dores, angústias e sofrimentos por ventura vivenciados, por vezes não vão ocasionar “curas” nem a construção de um olhar diferenciado.

Optamos por tentar construir uma perspectiva crítica a fim de sustentar nossos argumentos, pois quando o tema da resiliência é abordado sem problematizações profundas incorre no risco de superficializar o debate e elaborar modelos explicativos meramente descritivos. A condução de boa parte das pesquisas com esse viés aproxima o conceito ao modelo positivista de ciência e retoma questões aparentemente já superadas, como de associação com habilidades adaptativas das pessoas, superação na lógica do não aprendizado ou ainda dentro de uma perspectiva salvacionista, mágica e mítica de resolubilidade absoluta das adversidades.

Para Pessoa (2015), novos paradigmas para essa área de estudo exigem um comprometimento dos pesquisadores em termos da compreensão da totalidade da realidade social, que se tornarão viáveis na medida em que os recortes metodológicos e aportes teóricos forem capazes de desnudar a complexidade das relações humanas em sua essência. Portanto, o isolamento de variáveis ou dos fatores que são constituintes de mecanismos de vulnerabilidade social já não é capaz de contribuir para o avanço da produção do conhecimento nos estudos que investigam resiliência, na verdade eles são apenas uma parte necessária para a construção epistemológica da temática.

Talvez não consigamos fechar, ou melhor, seja pretensioso demais determinar uma conceituação fixa para a resiliência, visto que a mesma é fluida e desliza sobre as águas do contexto, que engloba vários aspectos, âmbitos e variáveis.

Percebemos nos estudos da resiliência que vem sendo dada ênfase aos aspectos positivos do universo psíquico, tais como felicidade, otimismo, altruísmo, esperança e alegria, tidos com salutogênicos, em face dos correspondentes de depressão, ansiedade, angústia e agressividade. Isso não deve nos levar a crer ou assumir a resiliência como algo estritamente positivo ou provocador do bem, do bom. É preciso lembrar que a promoção da resiliência mexe com traumas e feridas, o que causa dores, e não há garantias de que tudo sairá convencionalmente bem.

De acordo com Araújo (2006, p. 92), a resiliência tem suas raízes no desenvolvimento humano: “uma autoestima valorizada pode ser considerada a base para que o processo de resiliência se instale”. Explica que ela é adquirida e se desenvolve “na interpelação com os outros significativos” ao longo da vida do indivíduo. Afirma, ainda, que “resiliência é um potencial humano, presente nos seres humanos em todas as culturas e em todos os tempos, é parte de um processo evolutivo e pode ser promovida desde o nascimento” (p. 86).

Para nós, não faz sentindo compreender resiliência apenas como respostas adaptativas ou criativas frente às adversidades, mas sim de recursos extraídos do contexto que criam oportunidades de desenvolvimento e formam identidades fortalecidas, mesmo quando as respostas esperadas no contexto normativo não sejam as obtidas, ou seja, o resultado não é o padrão.

No nosso entendimento, resiliência não se assemelha a um final feliz, ciclos perfeitamente fechados, traumas, feridas devidamente sanadas, sem cicatrizes ou marcas. Incluímos nesse processo a possibilidade de não resolubilidade com uma saída. O que nos mobiliza não são os resultados, visto que trabalhamos com um fenômeno lábil, mutável, interseccionado no campo social do indivíduo; com isso o que nos chama atenção é o processo e tudo que dele faz parte, tudo que ele pode acessar e afetar.

Diante disto, vamos assumindo para este trabalho a condição da resiliência quanto um processo e não um traço de personalidade, inata e fixa. Nas próximas seções vamos continuar tecendo o caminho que nos levará a uma perspectiva de resiliência integral.

2.2 SABE LÁ O QUE É NÃO TER E TER QUE TER PRA DAR - Aspectos constituintes da