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1 TEORIZANDO SOBRE O PROCESSO DE EMPODERAMENTO DE

1.1 CONCEITUANDO EMPODERAMENTO

1.1.2 Na perspectiva feminista

A construção feita sobre o conceito de empoderamento apresentado está baseada nos debates e análises feitas pelas feministas do Terceiro Mundo. Segundo Batliwala (apud SARDENBERG, 2009), as origens do conceito de empoderamento estão em uma articulação das propostas feministas com as reflexões de Paulo Freire sobre os princípios da educação popular14 e, também, em uma linha inspirada nos trabalhos de Gramsci15. Para as feministas, o empoderamento implica na alteração radical dos processos e das estruturas que reproduzem a

13 Tradução nossa do original em espanhol.

14 Presentes em Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987) e nas pedagogias libertadoras, de um modo em geral.

15 Essa linha de pensamento se refere à necessidade de criar mecanismos participativos com o objetivo de construir democracias mais equitativas. (GRAMSCI, 1971).

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“posição”16 da mulher como submissa. Este conceito está diretamente relacionado à noção de interesses estratégicos de gênero e implica na mudança da posição das mulheres na sociedade. Para tal, o processo de empoderamento das mulheres deverá levar à igualdade entre homens e mulheres e a mudanças nas relações patriarcais, em especial, na família para que as mulheres empoderadas, de fato, mudem a dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, de modo que elas tenham autonomia de poder decidir sobre suas vidas, se sentirem e serem donas delas mesmas.

Na perspectiva feminista aqui adotada, o empoderamento de mulheres é, pois, entendido como o processo da conquista da autonomia, da autodeterminação, implicando, portanto, na libertação das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Neste sentido, o objetivo maior de ações voltadas para o empoderamento das mulheres é propiciar as condições para que elas possam questionar, desestabilizar e se organizar com vistas à erradicação da ordem patriarcal vigente (SARDENBERG, 2009).

Segundo aponta a feminista indiana Batliwala (1994), a característica mais conspícua do termo empoderamento está na palavra “poder“, vez que, para ela, “empoderamento” é o processo de questionar as ideologias e relações de poder patriarcais vigentes:

O termo empoderamento se refere a uma gama de atividades, da assertividade individual até à resistência, protesto e mobilização coletivas, que questionam as bases das relações de poder. No caso de indivíduos e grupos cujo acesso aos recursos e poder são determinados por classe, casta, etnicidade e gênero, o empoderamento começa quando eles não apenas reconhecem as forças sistêmicas que os oprimem, como também atuam no sentido de mudar as relações de poder existentes. Portanto, o empoderamento é um processo dirigido para a transformação da natureza e direção das forças sistêmicas que marginalizam as mulheres e outros setores excluídos em determinados contextos. (BATLIWALA, 1994, p. 130)17.

O empoderamento é um processo que precisa ser desencadeado por fatores ou forças externas, podendo ser uma pessoa, um grupo, um projeto ou uma instituição, de forma que, com este apoio, as mulheres possam reconhecer as estruturas que as oprimem e desenvolver uma consciência crítica. No caso das mulheres agricultoras familiares, o desafio maior é desnaturalizar e quebrar a dominação masculina. Nesta difícil caminhada, o primeiro

16 Segundo Ana Alice Costa, no texto “Gênero, poder e empoderamento das mulheres” (2004, p. 6),

posição, aqui, “é o status econômico, social e político das mulheres comparado com o dos homens, isto é, a forma como as mulheres têm acesso aos recursos e ao poder comparado aos homens”. 17. Tradução do original em inglês feita por Cecília M. B. Sardenberg no texto “Conceituando

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passo deve ser o despertar da consciência em relação à discriminação de gênero, à existência da desigualdade entre homens e mulheres. O importante é, ao reconhecer a existência desta desigualdade no seu cotidiano, ficar incomodada e indignada com esta situação e querer mudá-la na sua vida e na das outras mulheres.

Michel Foucault (1984), em Microfísica do poder, chega à conclusão de que a instauração da sociedade moderna supôs uma transformação na consagração de novos instrumentos pelos quais se pode canalizar o poder. Segundo ele, o poder não existe. O poder “não é algo que se detém como uma coisa”, não é apropriado como um bem. O poder é entendido como “algo que circula”, se pratica e se exerce. Para ele, o que existe são práticas ou relações de poder. O poder deve se materializar por meio de diferentes formas, sendo necessário que passe a integrar parte do ser de cada indivíduo. Nesta perspectiva, a dominação só é possível quando o próprio ser dominado considera “natural” ser subjugado. Por outro lado, todo poder pressupõe resistência. No caso em estudo, as mulheres agricultoras dominadas acham que o espaço doméstico é responsabilidade só delas e muitas não conseguem perceber este espaço e suas práticas como relações de poder instaladas no cotidiano.

Foucault chama a atenção para a ação do feminismo, ao afirmar que os problemas domésticos, o poder nas relações cotidianas devem ser denunciados como questões de domínio público ao politizar a entrada das mulheres na esfera pública tanto quanto na esfera privada. De fato, “o poder não opera em um só lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira pela qual tratamos os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as mulheres [...] todas essas são relações políticas” (FOUCAULT, 1994b, p. 473). Para as mulheres agricultoras que há muito tempo estão excluídas dos espaços públicos como cidadãs e confinadas ao mundo doméstico, politizar o privado é um grande desafio, implica em olhar para o espaço doméstico não só como um lugar de reprodução, como mães que nutrem e cuidam dos filhos e filhas, mas percebê-lo como um espaço de poderes e saberes, de luta, de resistência e de reivindicações por direitos, enfim, um espaço de disputa de poder. Mas, será que só ressignificar este espaço doméstico não seria querer travar a real disputa pelo espaço público ainda restrito aos homens?

Para que essas mulheres possam resignificar o espaço doméstico, precisamos, primeiro, desconstruir nelas próprias as imagens construídas de si mesmas que lhes foram impostas pelo conjunto da sociedade e por elas assimiladas e reproduzidas e, então, buscar a libertação das formas de sujeição pelo contrato sexual e pela cultura. Romper no dia-a-dia e libertar-se deste modelo hegemônico de feminilidade pelo qual a mulher deve ser doce e

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passiva e, muitas vezes, assexuada é um grande desafio, pois é uma luta contra essas identidades prontas e impostas, apresentadas, ao longo da história, como naturais.

Nos espaços trabalhados nos projetos de desenvolvimento rural, as relações de poder estão diretamente ligadas às relações de gênero, do que resulta a diferença de inserção das mulheres nos espaços produtivos e organizativos, espaços de poder que têm uma forte implicação de gênero, requerendo uma transformação no acesso da mulher tanto aos bens econômicos quanto ao poder, transformação esta que depende de um processo de empoderamento da mulher. Joan Scott (1999) diz que experiência é aquilo que queremos explicar e não a origem de nossa explicação. Afirma, ainda, que esta abordagem questiona os processos pelos quais os sujeitos são criados, favorecendo novos caminhos e mudanças. A experiência de poder tende a resgatar a autoestima das mulheres como sujeitos, mudanças de mentalidade e atitude, de modo a dar visibilidade a sua importante contribuição nos processos familiares, comunitários, organizativos, ambientais, produtivos e de comercialização, que deem substância à sustentabilidade desejada para o desenvolvimento rural. Mas trata-se de um processo de mão dupla, pois, como bem atenta León (2001, p. 97), “o empoderamento como autoconfiança e autoestima deve integrar-se em um sentido de processo com a comunidade, a cooperação e a solidariedade”.

O empoderamento é uma categoria complexa que vem se transformando em categoria analítica e empírica em diversas disciplinas e envolve uma multiplicidade de métodos e indicadores os quais dificilmente podem ser universalizados, como se pode ver na experiência de empoderamento das mulheres agricultoras familiares, um processo que tem aspectos tanto coletivos como individuais.

Empoderamento é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência da sua habilidade e competência para produzir e criar e gerir. (COSTA, 2004, p. 7).

As participações em diversas atividades e as capacitações em várias temáticas organizativas e produtivas constituem ferramentas necessárias para o empoderamento destas mulheres agricultoras. O Projeto Gente de Valor implementa estas ações, mas, muitas vezes, longe de uma perspectiva feminista, ou seja, de uma perspectiva que privilegie a conquista pelas mulheres da autonomia sobre seus corpos, suas vidas e seus destinos.

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