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5 TRAJETÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DAS MULHERES AGRICULTORAS

5.2 AS MULHERES AGRICULTORAS: HISTÓRIAS DE VIDA E

5.2.3 O trabalho como empregada doméstica

Das dez mulheres agricultoras entrevistadas, sete vivenciaram a experiência de trabalhar como empregada doméstica, algumas iniciando ainda quando criança e continuando quando jovens. Três delas – Maria dos Anjos, Maria do Sossego e Maria das Dores – realizaram este trabalho em Santa Brígida, em Salvador e em São Paulo, respectivamente. Em termos de relações de trabalho, cada uma delas prestou serviço para pessoas das suas famílias, da mesma classe social, pois foram trabalhar em casas de parentes – irmão, irmã e tio. Dentro da família, constata-se que o trabalho doméstico está quase exclusivamente vinculado ao sexo feminino, a crianças e adolescentes que são responsáveis pelo preparo de alimentos, pela limpeza da casa e pelo cuidado com as crianças menores. Todas trabalharam como doméstica para “ajudar” a família. Maria do Sossego, com apenas 9 anos de idade, foi cuidar dos sobrinhos em Salvador. Maria das Dores, aos 12 anos de idade, foi para São Paulo cuidar das

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primas menores. Maria dos Anjos, com 17 anos, trabalhou como doméstica na casa de seu irmão mais velho. A realização deste trabalho em âmbito privado se dava de modo gratuito ˗˗ recebendo “agrados”, roupas, cadernos, sandálias, alimentação etc. ˗˗ ou mal remunerado. Observa-se, pelos seus depoimentos que elas não recebiam salário e que Maria das Dores ,quando trabalhava na casa dos parentes em São Paulo, não estudava:

– Assim, com 12 anos, eu fui pra São Paulo cuidar de minhas primas lá, com

quinze, voltei. Aí, dos seis aos doze foi aqui ajudando mãe; fui pra lá, não fui ganhar nada em São Paulo, voltei, quando chegou aqui comecei namorar, casei. [...] eu só ganhava roupa. Eu morava na casa do meu tio. Só era roupa e comida, lá mesmo era só isso. [...] fiquei três anos sem estudar lá. (Maria das Dores, preta, 31 anos).

– [...] nove anos eu fui cuidar do meu sobrinho em Salvador. Eu tenho duas irmãs

que moram em Salvador, eu fui cuidar desses dois sobrinhos, e cuidava da casa e ainda estudava. [...] ganhava, ela, assim, me dava roupa, essas coisas, ela me dava tudo que

precisava e ainda me dava dinheiro [agrado] por fora. Eu não comprava o que eu imaginava,

na verdade nem tudo a pessoa faz o que a pessoa quer, ou come o que quer. (Maria do Sossego, parda, 38 anos).

Em termos de relações de trabalho, quatro delas prestaram serviços a terceiros, fora do grupo doméstico, para indivíduos de classes sociais diferentes da sua, em uma relação de patrões e empregadas domésticas e seus serviços eram pagos sob a forma de moeda, insumos e bens de uso. Uma delas é Maria José:

˗˗ Eu trabalhava direto. Às vezes, quando era moça, trabalhava de empregada

doméstica pra poder ganhar um dinheirinho pra poder comprar uma roupinha pra gente. Roupa boa ninguém usava, calçado bom ninguém usava.

Ela conta que começou a trabalhar na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, em casa de família, ainda adolescente, quando tinha 13 anos de idade, para ganhar dinheiro e contribuir com a renda da família. Afirma que nunca ganhou salário e que ganhava tão pouco que nem sabe quanto era:

– Menina! Oxê! Era um pouquinho e ainda dava um pouquinho pra mãe, pra

ajudar, que tinha quinze filhos, coitada. [...] depois que a gente começou trabalhar assim de empregada doméstica, a gente ganhava um dinheirinho, dava para comprar uma roupinha, um perfumezinho, ajudava minha mãe, coitadinha, era pior do que eu. (Maria José, parda, 50 anos).

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Já Maria dos Anjos se lembra do valor que recebia pelos seus serviços domésticos e que ganhou seu primeiro dinheiro aos 17 anos de idade, para ajudar na renda de sua família que era muito pobre:

– Nossa, eu trabalhava e nessa época era R$ 80,00 reais por mês, era pouco, mas

assim, o que você pensa primeiro é ajudar em casa no que puder, como a gente era muito necessitado. Hoje em dia todo mundo trabalha, tem o seu, mas era uma parte necessitada. Então, eu procurava ajudar aos irmãos que eu tinha, comprar alguma coisa. Em pouco tempo eles também começaram a trabalhar, aí foi quando foi melhorando a vida. (Maria dos Anjos, parda, 24 anos).

Maria José, no relato a seguir, faz um discurso ambíguo quando diz não ter sofrido discriminação nem violência quando trabalhava como empregada doméstica, mesmo passando por uma série de inseguranças: alimentar, habitacional e de renda. Em suas palavras:

– Graças a Deus, nas casas que eu trabalhei, a primeira vez que eu fui trabalhar com 13 anos, era uma casa de uma senhora e um senhor de idade. A segunda vez, eu fui trabalhar também na casa de umas senhoras, mas essas senhoras eram muito ruins. Era fome, eu quase que morri de fome, passei três dias... eu digo “eu vou embora na quarta”, quando foi no sábado... mas não davam comida a eu... era duas, eu passava uma fome tão grande... “eu vou embora”... antes d’eu ir tinha uma mulher, [...] que o nome dela era Magareth, ela era professora, aí antes d’eu ir embora, tinha uma menina que disse que tinha uma mulher que queria uma menina para trabalhar, essa era beleza comigo. Depois eu fui trabalhar em Maceió também, eu trabalhei na casa de outra mulher que trabalhava na Caixa Econômica. Ali era boa também, era melhor que minha mãe. Ela me dava de tudo, ela me pagava e me dava de um tudo, roupa, calçado, de tudo, ela me dava. (Maria José, parda, 50 anos).

No depoimento, fica evidente a vulnerabilidade de Maria José, seu sofrimento físico por passar fome, e psicológico, por sentir insegurança, dependência, medo, sobretudo do controle das patroas sobre ela, sobre sua vida. É evidente a presença do patriarcalismo materializado em toda forma de opressão a ela e às outras mulheres, independentemente da sua idade, geração e raça. Neste contexto do emprego doméstico, a subordinação feminina fica visível, embora com nuances menos ou mais incisivas, menos ou mais declaradas.

As práticas que se constituíram em torno do trabalho doméstico expressam a dominação e subordinação na relação patroa-empregada, sendo o espaço doméstico o cenário da intensa e viva dinâmica das relações sociais de gênero como relações de poder. Portanto, tanto trabalhando na casa dos parentes como na casa dos patrões, estabelecem-se relações de

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obrigação que representam formas de subordinação e opressão destas mulheres. Mesmo no caso do trabalho na casa de alguém da família suavizar com o discurso da obrigação de ser uma ajuda, um prazer em servir, ocorrem conflitos desta natureza (BRITTO DA MOTTA, 1992, p. 2).

Tradicionalmente, na Região Nordeste do Brasil, a migração para outras regiões e estados do país, de homens e de mulheres pobres e de pouca escolaridade, decorre da necessidade de se inserir no mercado de trabalho para obter renda, da perspectiva de exercer alguma atividade remunerada. Em grande parte, os homens nordestinos migram para o corte da cana-de-açúcar e para as grandes cidades, para exercer atividades na construção civil como pedreiros ou serventes, mas, também, atividades como as de garçon e cobrador de ônibus; as mulheres nordestinas migram para executar o serviço doméstico. Esta ocupação é a que contribui com maior peso na composição da população feminina considerada economicamente ativa (PEA). Nas falas das mulheres agricultoras que migraram para cidades vizinhas e/ou capitais para trabalhar em casa de família, estão presentes, de forma mais ou menos sutil, os conflitos. É o caso de Maria da Paz:

– [...] depois que eu estava na 7ª série acabei saindo para trabalhar fora,

trabalhar como doméstica, fui para Ribeira do Pombal. Depois, peguei a transferência para estudar lá. Quando eu levei a transferência, mudei pra Salvador. Aí, fiquei indo e voltando. Aí, depois de Salvador, passei um tempinho em Aracaju, voltei para Cícero Dantas, aí voltei pra cá. Aí, foi quando veio esses projetos aí, eu não quero trabalhar de doméstica mais não. Resolvi ficar aqui. Às vezes, eu penso em sair, mas não tem muito “regue” [reggae], não, pra sair pra fora. (Maria da Paz, parda, 32 anos).

Também é o caso de Maria de Lourdes que, quando jovem, para fugir da violência que sofria em casa, resolveu sair, como seus irmãos, para outros lugares:

– Depois a maioria viajou pra fora, eu morei uns tempos em Salvador, depois eu

vim embora, arrumei o pai do meu filho mais velho. Fui pra São Paulo, morei três anos, não deu certo, eu vim embora de vez. Trabalhava de doméstica, sofri também nas casas dos outros. Porque, naquele tempo, a gente não sabia fazer quase nada e para aprender sofremos até quando aprendemos. (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).

Essa mudança constante de lugar em função de questões pessoais dos patrões e de seus interesses, inviabilizando a continuidade dos estudos e também (na fala de Maria de Lourdes) o sofrimento para aprender a trabalhar como doméstica e se enquadrar dentro dos padrões estabelecidos de subordinação e obediência, característicos desta função, reforçam nelas o sentimento de baixa estima e de inferioridade. Percebe-se, também, como, no espaço

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privado ou doméstico, se exerce a dominação masculina, a relação de forças materiais e simbólicas entre os sexos. É principalmente neste lugar privado que vai sendo construída, aprendida e perpetuada a lógica da dominação que se expressa nos valores, nas opiniões, nas crenças e se reforçam na maneira de pensar, agir e falar, tanto pelo dominante quanto pelo dominado. Bourdieu (2007) chama de violência simbólica esta dominação e a forma como é imposta e vivenciada, invisível às suas próprias vítimas.