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Natureza e conteúdo do dever de revelação

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 193-199)

CAPÍTULO 4. PRINCIPAIS QUESTÕES LIGADAS À IMPARCIALIDADE DO ÁRBITRO

4.3. Imparcialidade e dever de revelação

4.3.1. Natureza e conteúdo do dever de revelação

O presente estudo defende que a imparcialidade do árbitro deriva do próprio modelo processual democrático593. É um dever que nasce em razão do processo e para o processo, assumido a partir do momento em que o profissional é alçado à função de julgador e mantido até o encerramento do procedimento. Há casos em que eventos posteriores ao fim do processo arbitral denotaram a aparência de parcialidade do árbitro; no entanto, embora tenham ocorrido após o término do procedimento, tais eventos demonstraram que o ataque à imparcialidade ocorreu no curso do processo arbitral: é o caso do árbitro que (não revelou que) seria contratado pelo requerido no dia seguinte à prolação da sentença arbitral594. Igualmente, eventos anteriores ao início do processo arbitral podem protrair efeitos sobre a aparência: é o caso do árbitro que pertencia, até o dia anterior à sua nomeação, ao escritório de advocacia de uma das partes. O evento concreto (contrato do árbitro com o escritório) está findo, mas ainda assim preenche os critérios relativos às premissas de estrutura e de conteúdo que dão pela aparência de parcialidade do árbitro595.

593 Vide capítulo 2.2.1 do presente estudo.

594 Caso Raoul Duval v. Merkuria Sucden, referido por P

EDRO SOUSA UVA. A comparative reflection on challenge of arbitral awards through the lens of the arbitrator's duty of impartiality and independence, in American reviewof international arbitration, v. 20, p. 500. Em sentido análogo, vide o já referido caso KPMG AB v. ProfilGruppen AB, referido nas pp. 34-35 do presente estudo.

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A seu turno, o dever de revelação não deriva do modelo processual, servindo-o apenas na medida em que possibilita o afastamento de árbitro envolvido em eventos que ensejem a aparência de parcialidade. Também diferentemente do dever de imparcialidade, que tem natureza processual, o dever de revelação é orientado pela sua natureza contratual596, ou seja, está ligado ao contrato de arbitragem estabelecido entre partes e árbitro (com ou sem a participação de uma instituição arbitral), e não ao processo em si597. A anterioridade do dever de revelação é tamanha frente à instauração do processo que pode recair em profissionais com quem o contrato de arbitragem não chegue sequer a ser firmado. A qualificação de pré-contratual parece mais exata: o dever existe por conta de um contrato a ser celebrado (o contrato de arbitragem), mas é eficaz antes da sua celebração, assim permanecendo durante todo o curso da relação contratual.

Mais importante que a diferente natureza é a diferença de conteúdo entre o dever de imparcialidade e o dever de revelação. O primeiro consiste no dever de o árbitro não se fechar à influência potencialmente exercida pelos argumentos das partes, verificável mediante a apreciação de eventos que ensejam a aparência de vedação psíquica do árbitro à luz de premissas de estrutura e de conteúdo avaliadas por um observador desinteressado. O segundo consiste no dever de o árbitro revelar circunstâncias que, aos olhos das partes, que são observadores interessados (ou mesmo desconfiados quanto ao árbitro nomeado pelo seu adversário), poderiam ensejar dúvidas justificadas a respeito da parcialidade.

596 O fato de a LA impor o dever de informação não altera sua natureza contratual, sendo desnecessário para a finalidade do presente estudo o exame da existência ou não de distinção entre os deveres acessórios (que somente existem em função de uma relação obrigacional) e os deveres gerais de conduta (que antecedem e conformam a relação obrigacional), bem como suas respectivas naturezas. Tratando-se de ingerência estatal na autonomia privada, basta apontar que a função do dever de informação volta-se ao cumprimento da obrigação principal do contrato de arbitragem, separando-o da relação jurídica processual. Sobre os deveres acessórios no direito brasileiro, vide a seminal obra de Clóvis do Couto e Silva, escrita em 1964 e reeditada nos anos 2000 (CLÓVIS DO COUTO E SILVA. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, pp. 91-97) e, mais atualmente, em observação aos deveres pré-contratuais, entre eles o de informação, vide JUDITH MARTINS-COSTA. Um aspecto da obrigação de indenizar: notas para uma sistematização dos deveres pré-negociais de proteção no direito civil brasileiro, in Revista dos Tribunais, v. 867, Separata, 2011, pp. 37-49.

597 A existência de um contrato de arbitragem – e o lançamento de seus efeitos sobre a relação contratual é tratada por PHILLIPE FOUCHARD. Les rapports entre l’arbitre et les parties et l’institution arbitrale, in Bulletin de la Cour Internationale d’Arbitrage de la CCI: 1995 Supplement Special – Le statut de l’arbitres. Paris: ICC Publishing, p. 16. No Brasil, a lição de que as partes podem modular os poderes jurisdicionais dos árbitros pelo “contrato de arbitragem” foi apresentada por IRINEU STRENGER. Arbitragem comercial internacional. São Paulo: LTR, 1996, pp. 67-68.

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É de se notar que a mudança de observador, tomada de modo isolado, amplia enormemente o rol de eventos reveláveis, visto que um observador interessado desconfiará de eventos que não importariam a um observador isento; no entanto, também se deve notar que somente integram o rol de eventos reveláveis aqueles que ensejarem dúvidas justificadas nesse observador. Assim, a ampliação resultante da mudança do observador é temperada com a exigência de justificativa para a dúvida que o evento ensejaria quanto à parcialidade do árbitro598.

Concretamente, esses fatores ampliam as causas de revelação frente às categorias de aparência de parcialidade599 ou, melhor dizendo, a verificação dessas mesmas categorias com critérios mais rígidos de avaliação, exatamente para se buscar a dúvida razoável ou

justificada do observador interessado. No entanto, contatos e relações triviais sem

significação pessoal ou econômica (e, portanto, não ensejadores de dúvidas razoáveis ou

justificadas) devem continuar a ser ignorados600. É o caso, por exemplo, da contribuição regular do árbitro presidente na revista científica de cujo conselho editorial o coárbitro fazia parte, fato esse que, segundo a Corte de Apelação de Paris, não ensejaria dúvida justificada quanto à imparcialidade dos julgadores nem criaria vínculo intelectual ou pecuniário entre eles601.

O dever de revelação não se circunscreve apenas aos eventos dos quais o árbitro tem conhecimento, mas também daqueles que ele, razoavelmente, poderia conhecer. Significa dizer que o dever de revelação compreende o dever de investigar. Para desimcumbir-se do dever de revelação, o árbitro deve perquirir a respeito de todas as potenciais causas de

598 Literalmente: “L’arbitre doit reveler toutes les circonstances de nature à provoquer dans l’esprit des parties un doute rasonnable sur sont independence, et notamment es informer de toute relation que ne présente pas un caractère notoire et qui pourrait raisonnablement avoir à leur yeux une incidence sur son jugement.” No caso, dois dos árbitros não revelaram que pertenciam ao comitê científico de uma revista científica e à direção editorial de outra.Trata-se do caso SA Sorbrior et autres v. SAS ITM Entreprises et autres (CA Paris, 01.07. 2011), in Revue de l’arbitrage, 2011, pp. 839-841.

599 Vide capítulo 3.4 do presente estudo. Em comentário às IBA Guidelines, Brower observa que “[t]o balance the ‘eyes of the parties’ test and prevent both strategic challenges and unnecessary disclosures (which then can stimulate undue concerns of bias in parties’ minds), the IBA Guidelines emphasize that disclosure based on subjective grounds should not lead to automatic disqualification”. CHARLES N.BROWER. The Ethics… op. cit., p. 12.

600 T

RAVIS JACOBS. Arbitrator or private investigator: should the arbitrator's duty to disclose include a duty to investigate?, in Journal of dispute resolution, 1997, n. 1, p. 137.

601

Caso Emivir, Loniewski, Gauthier v. ITM, referido por DOMINIQUE HASCHER. Independence and impartiality of arbitrators: 3 issues, in American University international law review, v. 27, 2011-2012 , p. 798.

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conflito de interesses (aos olhos das partes, seja lembrado), verificando não só sua lista de clientes e frente a quem seus serviços foram prestados602, seus contatos profissionais (em especial, os escritórios e advogados com os quais o árbitro ou seu escritório mantêm relação negocial ou parceria), acadêmicos e pessoais, seus investimentos (ampliando essa pesquisa para todos os familiares que com ele residam ou mantenham contato próximo), como também mesmo realizando pesquisas por palavras nos sistemas e nos documentos digitais do seu escritório, tudo a fim de eliminar qualquer possibilidade de ter se envolvido em evento ensejador de dúvidas justificadas aos olhos das partes a respeito da sua imparcialidade603. Quando o processo arbitral envolver grandes empresas, deve o árbitro solicitar às partes mais informações sobre seus sócios e sociedades coligadas, realizando novamente toda a averiguação frente a esses sujeitos.Mais: o dever de revelação inclui as relações do árbitro com os demais membros do painel604.

A orientação jurisprudencial é clara no sentido de reconhecer o dever de investigar605, também registrada nas IBA Guidelines, que atribuem ao árbitro o dever de “realizar diligências razoáveis no sentido de averiguar qualquer potencial conflito de interesses”, reconhecendo, ainda, que o “desconhecimento não serve de justificativa para a não divulgação de um potencial conflito se o árbitro não tiver realizado uma razoável tentativa de investigação” 606

.

Pela própria dinâmica das relações sociais, é reconhecido um limite temporal a partir do qual os eventos deixam de ensejar dúvidas justificadas sobre a imparcialidade do árbitro e, portanto, não precisam ser revelados. No entanto, não há consenso sobre quanto tempo

602 Às vezes, a dúvida sobre a imparcialidade não se dá em razão do cliente do árbitro, mas sim em razão da entidade frente a qual esse serviço é prestado, tal como a contraparte em processo ou em contrato.

603 Nesse sentido: “Since an arbitrator acts in a quasi-judicial capacity, his or her conflict check should include an investigation into categories such as: any relationship between the arbitrator and the parties; any past or present dealings between the arbitrator and the parties' attorneys; any financial, social, or professional affiliation / interest between the arbitrator and a party or attorney in the arbitration; and any relationship or interest between the arbitrator's family members and the parties or the parties' attorneys to the dispute”. KATHRYN A. WINDSOR. Defining arbitrator evident partiality: the catch-22 of commercial litigation disputes, in Seton Hall Circuit review, v. 6, n. 1, 2009, p. 215.

604

É o que recomendam, entre outras informações, que o árbitro revele, JULIAN D.M.LEW;LOUKAS A. MISTELIS;STEFAN MICHAEL KRÖLL. Comparative international commercial arbitration. The Hague: Kluwer Law International, 2003, p. 266.

605 Vide caso Schmitz v. Zilvetti, referido na p. 123 do presente estudo. Na jurisprudência francesa, vide o amplo estudo de MARC HENRY. Le devoir de revelation dans les rapports entre arbitras et conseils: de la suggestion aux électrochocs, in Les cahiers de l’arbitrage, 2011, n. 3, p. 788-795.

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esse limite representaria. Seriam dois anos, dez, vinte? Na ausência de determinação vinculante, o árbitro pode se nortear pelo limite de três anos recomendado em vários itens das Listas de Aplicação das IBA Guidelines607, embora não seja incomum que profissionais que figuram como árbitros, buscando ensejar mais confiança em sua nomeação (e assim incrementar seu capital simbólico) estendam esse prazo até cinco anos608.

Outro tema ligado ao conteúdo do dever de revelação é o tratamento que deve ser dispensado às informações de domínio público. Não se pode negar que o dever de revelação impõe ao árbitro informar tudo o que saiba (e proceder à pesquisa razoável daquilo que não saiba) ser capaz de ensejar dúvidas justificadas ou razoáveis quanto à sua imparcialidade, correspondendo a esse dever o direito das partes de ser informadas. Esse direito, como já se viu, tem como função municiar as partes de informações para que se cuide – antes ou durante o curso do processo arbitral – da higidez desse processo, impedindo que profissionais envolvidos em eventos que ensejem aparência de parcialidade assumam ou exerçam o encargo de árbitro.

Não obstante a clara função profilática do dever (e do correspondente direito) de revelação, não é incomum constatar a prática de se requerer a anulação da sentença arbitral, com base na alegação de que esse dever não teria sido corretamente observado em razão da não prestação, pelo árbitro, de informação de domínio público. A manobra é clara: a parte, conhecendo a informação, não a invoca no curso do processo arbitral, guardando-a para dela se utilizar apenas no caso de derrota609. Assim, um direito cuja função é patrocinar a higidez do processo (e, portanto, a segurança jurídica) acaba por ser utilizado para conferir ao derrotado uma segunda chance de vitória (em atentado à segurança jurídica). Esse desvio de função é manobra característica do abuso de direito610.

607

Notadamente os itens 3.1.1 a 3.1.5, 3.3.3, 3.4.2 e 3.4.4.

608 Reconhecendo aplicar um prazo arbitrário de cinco anos, pois um prazo maior ensejaria maior dificuldade – e maior chance de falhas – na investigação, GERALD AKSEN, The tribunal’s appointment, in LAWRENCE W. NEWMAN;RICHARD D.HILL (Ed.). The leading arbitrators’ guide to international arbitration. 2. ed. New York: Juris Publishing, 2008, p. 34.

609 Na tentativa de coibir essa prática, o Princípio Geral 7(b) das IBA Guidelines recomenda que a parte apresente informação que lhe seja disponível e que realize uma busca razoável de informação de domínio público.

610

Conforme art. 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

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Evidentemente, a informação omitida pelo árbitro deve ser pública e acessível às partes (não somente aos seus advogados), o que significa dizer que não deve oferecer maiores dificuldades para ser encontrada, mesmo para o leigo. Obter a informação de que o árbitro e o advogado de uma das partes são professores regulares de uma mesma universidade é relativamente simples, bastando conferir o currículo de ambos na internet e procurar seus nomes no endereço eletrônico da universidade; obter a informação de que esses mesmos profissionais trabalham juntos por conta de uma comissão nomeada por um município (ainda que a nomeação de ambos tenha sido publicada no diário oficial) já é muito mais difícil, sendo mais escusável que a parte não tenha conhecimento dela.

Assim, para que se caracterize o abuso no direito de revelação pela parte (o que não significa dispensa do dever de revelação pelo árbitro), a informação deve ser pública e acessível, tal como se verificou no caso Nidera v. Leplatre, no qual a Corte de Apelação afastou como causa de anulação de sentença arbitral a não revelação, pelo árbitro, de que ele era presidente de uma associação profissional da qual uma das partes era associada. A Corte de Apelação considerou que essa situação era conhecida por todos os envolvidos no mercado agrícola (explorado pelas partes), observando, ainda, que a associação continha mais de oitocentos membros611.

Por fim, necessário apontar que o dever de revelação se mantém eficaz durante todo o curso do processo arbitral. O árbitro deve, assim, continuar a perquirir e informar as partes sobre quaisquer eventos – mesmo os ocorridos após a assunção do encargo – que possam gerar dúvidas razoáveis ou justificadas quanto à sua imparcialidade. É o que fica claro no caso J&P Avax v. Société Tecnimont, no qual o árbitro presidente em processo CCI revelou, em declaração de independência, que era of-counsel de um escritório localizado em Paris, cujas filiais de Washington DC e Milão haviam prestado serviços a sociedades coligadas da Tecnimont, dos quais o árbitro não havia participado. No curso do processo, a Avax tomou conhecimento de que o referido escritório prestava serviços a companhia que foi posteriormente adquirida por uma coligada da Tecnimont, razão pela qual impugnou o árbitro na CCI, sem sucesso. Com a prolação de sentença parcial, a Avax pleitou judicialmente a sua anulação, pedido provido pela Corte de Apelação de Paris em 12 de fevereiro de 2009, sob a conclusão de que o dever de revelação do árbitro é contínuo. A

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Corte de Cassação anulou a decisão por entender que o julgamento da Corte de Apelação de Paris não havia se restringido aos fatos e argumentos apresentados pelas partes, remetendo a causa para a Corte de Apelação de Reims. Em 2 de novembro de 2011, essa Corte anulou a sentença parcial por falta de revelação de conflito de interesse no curso da arbitragem.612.

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