• Nenhum resultado encontrado

Preferência, pré-compreensão e imparcialidade

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 75-78)

CAPÍTULO 2. CONTEÚDO DA IMPARCIALIDADE DO ÁRBITRO E SUA OPERACIONALIZAÇÃO PELA APARÊNCIA

2.1. Função da imparcialidade

2.1.2. Preferência, pré-compreensão e imparcialidade

Com os estudos de Heidegger259, o método hermenêutico descartou definitivamente a possibilidade de o indivíduo ser capaz de apreender a realidade sem recorrer à sua própria vivência e às marcas (posições, visões e concepções) que essa vivência imprimiu. De modo direto, “[a] interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição

255 Não é por outra razão a repulsa cada vez mais eloquente na doutrina contra as declarações de “nulidade- surpresa”, de ofício, pelo juiz. Sobre a necessidade de permitir a influência das partes previamente a tais declarações, vide RENZO CAVANI. Contra as “nulidades-surpresa”: o direito fundamental ao contraditório diante da nulidade processual, in Revista de processo, v. 218, 2013, pp. 65-78.

256 Vide capítulo 1 do presente estudo.

257 O conceito de influência adotado pelo presente estudo é próximo do conceito de persuasão apresentado por ENRIQUE M.FALCÓN. Comunicación y proceso, in Revista de processo, n. 157, pp. 124-125.

258

Vide capítulo 2.1.2 do presente estudo. 259 M

ARTIN HEIDEGGER. Ser e tempo (trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback). Parte I, 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

76

prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições”260.

O indivíduo, ao interpretar algo, faz impregnar a interpretação da sua pré-compreensão daquilo que é interpretado261, ou seja, lança sobre a interpretação, necessariamente, a própria personalidade. Com isso, o ser do intérprete – resultado da sua vivência em um contexto social, linguístico, cultural etc. em certo tempo – interfere no produto da intepretação.

Ressaltando o caráter histórico da interpretação, Gadamer262 apontou que o indivíduo não se relaciona com a realidade, mas com as evidências dessa realidade traduzidas pela linguagem, construídas no curso da sua própria historicidade: ele, indivíduo, apropria-se dos acervos de ideias descritos linguisticamente para assim identificar e compreender a evidência do mundo que lhe é apresentada263. Por sua vez, esses acervos são objeto de uma tradição, pois são traduzidos pela consolidação das várias experiências humanas prévias. Ao interpretar um texto, por exemplo264, o intérprete parte necessariamente da sua pré- compreensão dos significados linguísticos, mas não pode ignorar que o autor (assim como o intérprete, imerso em uma tradição), ao construir o texto, terá nele impresso as suas próprias pré-compreensões e pré-conceitos. Isso impõe que "face a qualquer texto, nossa

tarefa é não introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos lingüísticos"265.

260 M

ARTIN HEIDEGGER. Ser... op. cit., p. 207. De modo também claro, “só interpretamos o que compreendemos previamente, conforme nossa faticidade, isto é, como ser no mundo, já circunscritos por objetos, vivendo em determinado estado de conexão com os outros”. MARIA HELENA DAMASCENO E SILVA MEGALE. Hermenêutica jurídica: interpretação das leis e dos contratos. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2001, p. 35.

261 M

ARTIN HEIDEGGER. Ser... op. cit., p. 207. 262

HANS-GEORG GADAMER. Verdade e método (trad. Flávio Paulo Meurer). 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, passim.

263 E

DUARDO C.B.BITTAR. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica, in Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 186.

264

Para Gadamer, o processo hermenêutico é unitário, inexistindo distinção entre compreensão, interpretação e aplicação do trabalho do intérprete. Literalmente: “Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação [...] a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação”. HANS-GEORG GADAMER. Verdade... op. cit., p. 460.

265 H

77

A interpretação se inicia com a revelação de um sentido prévio ao texto, originário das expectativas e da perspectiva do intérprete. No entanto, esse projeto prévio de significado é constantemente revisado no processo hermenêutico, conforme o intérprete penetra no sentido do texto, reprojetando constantemente a sua interpretação266 e operando a uma

fusão de horizontes267.

Tranportando as noções acima para o processo, tem-se que – também sob uma ótica metodológico-hermenêutica – o julgador pode ter (rectius: tem) sua visão prévia sobre os sujeitos processuais, sobre os direitos que serão discutidos e sobre o litígio em si. Essa pré- compreensão pode ser mais ou menos tênue, a depender das experiências do julgador268. O que não se pode permitir é que seus pré-conceitos impeçam a apropriação e mensuração das opiniões e pontos de vista trazidos pelas partes no litígio, que as antecipações do julgador o imunizem contra a alteridade (entre as próprias convicções e os argumentos trazidos) inerente ao processo de interpretação. É por essa razão que o teste proposto pelas

IBA Guidelines, que identificam como dúvidas justificadas sobre a imparcialidade a

possibilidade de o árbitro ser influenciado por fatores outros além do mérito da causa269 apresentado pelas partes, parece-nos por demais impreciso, visto que inúmeras são as influências sofridas pelo julgador. Esse conceito pode servir para amparar o dever de revelação do árbitro, mas não para configurar a imparcialidade. É preciso que esses outros fatores, mais do que influenciarem o árbitro em algum sentido, impeçam o exercício da influência de uma das partes no processo.

Também sob a ótica metodológica-hermenêutica, portanto, a parcialidade do árbitro não se faz sentir pela existência de pré-compreensões, e sim pela eventual vedação que elas ofereçam à influência de ambas as partes no seu convencimento, no seu fechamento à argumentação das partes. Obviamente, se a argumentação for ruim, ela será ponderada e

266 H

ANS-GEORG GADAMER. Verdade... op. cit., p. 402. 267 H

ANS-GEORG GADAMER. Verdade... op. cit., p. 451.

268 “A filosofia hermenêutica alertou-nos para o perigo do objetivismo subjacente à abordagem metódica, objetivamente, da interpretação das expressões humanas. Ao desenvolvermos o nosso conhecimento da ‘pré- estrutura’ da compreensão, excluímos ainda a pressuposição simplista da possibilidade de um conhecimento totalmente objetivo ou neutro, dado o fato de termos já interpretado um objeto ‘como’ algo, antes mesmo de o chegarmos a investigar”. JOSEF BLEICHER. Hermenêutica contemporânea (trad. Maria Georgina Segurado). Rio de Janeiro: Edições 70, 1980, p. 353. A lição é perfeitamente aplicável à hermenêutica jurídica realizada no curso de um processo arbitral.

78

afastada pelo árbitro, o que é muito diferente da situação de o árbitro estar imunizado à sua influência.

A questão que se coloca importante para o presente estudo – e que começa a ser respondida a partir do item seguinte – é o ponto a partir do qual a pré-compreensão do árbitro a respeito das questões a serem discutidas na arbitragem (ou a respeito das partes) é estabelecida de forma tal a imunizar o julgador contra a influência e persuasão dos argumentos que lhe são apresentados.

2.2. Da subjetividade para a intersubjetividade: imparcialidade, probabilidade e

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 75-78)

Outline

Documentos relacionados