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Padrão de imparcialidade do árbitro e padrão de imparcialidade do juiz

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 180-184)

CAPÍTULO 4. PRINCIPAIS QUESTÕES LIGADAS À IMPARCIALIDADE DO ÁRBITRO

4.1. Padrão de imparcialidade do árbitro e padrão de imparcialidade do juiz

Ao estabelecer que algumas das “relações” que caracterizam os casos de impedimento e suspeição dos juízes configuram causa para o “impedimento” do exercício da função de árbitro, a LA nada mais fez senão estabelecer uma regra que, por referência, descreve eventos que ensejam a aparência de parcialidade do árbitro. A LA não restringiu os eventos ensejadores da aparência às “relações” características de impedimento e suspeição de juízes, nem estabeleceu, para os eventos previstos, a equivalência de interpretação.

Vale a pena, antes do exame desses dois pontos (não limitação e não equivalência interpretativa dos eventos passíveis de ensejar a aparência de parcialidade do árbitro às hipóteses de impedimento e suspeição dos juízes), destacar as diferenças fundamentais entre árbitro e juiz que, ao final, constituem os vetores determinantes para a orientação tomada pelo presente estudo.

A esta altura, é claro que o ambiente institucional no qual a arbitragem se desenvolve possui características muitíssimo distintas daquele em que se desenvolve o processo jucidial. O julgador no processo judicial é funcionário estatal, que geralmente é sorteado para a atuação em determinado caso, enquanto o árbitro é um profissional atuante no mercado, que é escolhido direta ou indiretamente pelas partes para a solução de uma controvérsia544. Por conta disso, é possível – e até mesmo esperável – que entre árbitro e

544 A dinâmica de as partes escolherem, cada uma, um árbitro para compor o tribunal arbitral é a prática mais comum, a despeito das diretas colocações de Paulsson no conhecido texto “Moral Hazard”, no sentido de que essa prática gera dissonâncias cognitivas nas partes (entre elas, de que o árbitro irá “ajudar” a parte a vencer o caso; de que as partes terão mais confiança nos árbitros que selecionarem; e de que o árbitro indicado irá assegurar que o tribunal, como um todo, entenda a “cultura” da parte) e somente favorece o assédio moral da parte sobre o árbitro nomeado, que pode (tal como em casos narrados no texto, especialmente quando os vínculos do árbitro com a parte são profundos mas não conhecidos, quando o árbitro for inexperiente, ou mesmo quando mal-intencionado) resultar em sentença maculada pela parcialidade do árbitro. Pregando, ao final, que isso somente poderia ser evitado pela proibição – ou ao menos a rigorosa fiscalização – da prática de nomeações unilaterais, substituindo-a pela indicação por um órgão neutro, JAN PAULSSON. Moral... op. cit., esp. pp. 8-14.

O problema dessa proposta é a garantia de que tal órgão exista e assim permaneça. Vide, por exemplo, o caso da CICA-CCIR, que em 2012 alterou seu regulamento para retirar das partes a faculdade de nomeação do

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partes (ou seus advogados) possam ter se estabelecido contatos pretéritos que, ao final, ensejaram sua nomeação. A parte ou seu advogado podem ter tido contato com o trabalho acadêmico do árbitro, com petição escrita por ele em caso não sujeito a sigilo, assistido à palestra ou participado de outro litígio e, assim, conhecido o posicionamento do árbitro relativamente à determinada questão jurídica que seria, em princípio, favorável à tese que a parte ou seu advogado irão defender no processo arbitral545. Essa escolha do julgador aparentemente mais favorável à tese de uma das partes é impensável no processo judicial, no qual o órgão julgador preexiste à controvérsia e é ocupado por pessoa de acordo com regras administrativas totalmente alheias à vontade das partes.

Por ser funcionário estatal, o juiz sorteado não depende de seu capital simbólico no mercado jurídico, nem sua remuneração se vincula a esse fator546. Igualmente, o juiz não pode esperar que seu desempenho na solução da controvérsia tenha efeito direto sobre o encaminhamento de novos casos547. O profissional que atua como árbitro (e também como advogado, algo impensável para um juiz) pertence a um mercado próprio e pode esperar isso.

Essas significativas diferenças estabelecem, para o árbitro, toda uma nova série de riscos à imparcialidade que inexistem para o juiz. Se, de um lado, torna-se necessário reconhecer a existência de contatos pretéritos entre árbitro e parte (ou seu advogado) como determinante para a escolha do julgador com maior probabilidade de acatar a tese da parte que o escolheu, por outro, não se pode permitir que esses contatos se deem em grau suficiente para ensejar a aparência de parcialidade. Tome-se como exemplo a decisão do TJSP, que considerou não ser suspeito o juiz que é cliente do advogado de uma das partes, por árbitro para atribuí-la ao Presidente da instituição, que passou a receber 10% da remuneração do árbitro (arts. 11 e 14(7) do regulamento). A regra de nomeação institucional, nessas bases, inegavelmente gera muito mais insegurança que a regra de nomeação pelas partes. O regulamento da CICA-CCIR pode ser consultado no

endereço eletrônico

http://arbitration.ccir.ro/engleza/Rules_on_the_organization_and_operation_of_the_Court_of_International_ Commercial_Arbitration_of_the_Romanian_Chamber_of_Commerce_and_Industry.pdf; e comentários às alterações regulamentais podem ser consultados no endereço eletrônico http://www.legal500.com/c/romania/developments/21999; consulta em 21.02.2014.

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YUVAL SHANY. Squaring… op. cit., p. 479.

546 É necessário reconhecer que a promoção de um juiz por merecimento, prevista no art. 95, inc. II, da Constituição Federal e estabelecida pelo art. 80, § 1º, inc. II, da Lei Complementar 35/1979 (LOM), produz reflexos na sua remuneração. No entanto, essa promoção depende da satisfação de requisitos reconhecidos por órgão administrativo do Poder ao qual o juiz se vincula; e não do capital simbólico conquistado perante os próprios destinatários das suas decisões, consoante as regras de mercado.

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inexistir previsão nesse sentido, aliada a uma incabível “pessimista concepção do ser

humano”548. Tal como se viu, em razão do ambiente institucional no qual a arbitragem se desenvolve549, o árbitro que possui relações negociais com o advogado (tendo causa patrocinada por este) ensejará, a princípio, forte aparência de parcialidade, pois aparentará estar imunizado aos argumentos do adversário do seu patrono, em cuja atuação, além de confiar, irá lhe trazer benefícios caso seja bem-sucedida no processo de seu interesse.

Ademais, por geralmente cumularem a função de árbitros com a de advogados, situações impensáveis para o juiz podem ocorrer para os profissionais da arbitragem. É o caso de o árbitro ter que julgar litígio cuja decisão será útil para a defesa de tese que esse mesmo profissional defende, na qualidade de advogado, em outro processo550. Aqui, mais uma vez, a superação da noção genérica de imparcialidade como possibilidade de o árbitro julgar com base em influências outras que não apenas os argumentos das partes, e a sua fixação como vedação da influência das partes no convencimento do árbitro, é de vital importância. Tomem-se duas hipóteses. Na primeira, o árbitro defende, em processo que envolve outras partes, tese para a qual sua sentença é útil e proveitosa em razão da identidade da questão de direito (discussão sobre a aplicação da mesma regra e, portanto, da mesma consequência jurídica) e da extrema similitude da questão de fato (identidade da descrição dos eventos relevantes). Ao decidir, o árbitro certamente estará influenciado pela sua preparação como advogado e, mais que isso, tirará proveito da sua própria decisão, a ponto de aparentar estar imunizado à influência da tese oposta àquela que está defendendo no momento. Em uma segunda hipótese, o árbitro defendeu, em processo estabelecido entre partes diferentes e já findo, tese semelhante à que deve julgar. Aqui também é provável que os estudos e os trabalhos pretéritos do árbitro como advogado (ou seja, sua própria experiência e pré-compreensão como indivíduo) influenciem, sim, sua decisão. Assim, se a parcialidade for tomada – tal como faz a doutrina – como exposição do árbitro a influências outras que não os argumentos das partes, ela se fará presente também nessa segunda hipótese. No entanto, não haverá qualquer proveito imediato para o árbitro julgar no mesmo sentido da tese que defendeu, de modo que ele, aparentemente, não está imunizado aos argumentos contrários. Nessa segunda hipótese, tal como na primeira, o

548 Caso em segredo de justiça, ES 8.295-0, C. Esp., TJSP, j. 10.03.1988, in Revista dos Tribunais, v. 631, 1988, p.83.

549 Vide capítulo 3.3 do presente estudo. 550 Vide capítulo 3.4.7 do presente estudo.

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árbitro estará influenciado pela sua experiência como advogado (o que levaria ao intérprete que tomasse a influência externa do árbitro como causa de parcialidade a sancionar igualmente as hipóteses); no entanto, na segunda hipótese é bem menos aparente a vedação do árbitro à influência dos argumentos relativos à tese contrária à qual defendeu como advogado, diferentemente do que ocorre na primeira hipótese, na qual a sua decisão como árbitro dá-se no sentido de – e reforça a – sua posição como advogado no processo em curso. Assim, os dois casos apenas serão diferenciados (o que já ocorreu, mesmo sem explicação técnica551), se a parcialidade for tomada como a vedação à influência exercida pelos argumentos da parte, e não como influência de elementos extra autos na decisão.

Conforme já antecipado, as diferenças fundamentais entre o estatuto do árbitro e do juiz demandam não apenas a construção de normas concretas aplicáveis somente ao primeiro (derivadas, como já se viu, da regra geral que impõe um estado de coisas relativamente à imparcialidade do árbitro), como também uma interpretação particular das causas de impedimento e suspeição previstas na lei (além de outras regras vinculantes), interpretação essa que, para o árbitro, afasta-se da interpretação aplicável ao juiz.

Tome-se o exemplo da causa de impedimento prevista no art. 134, inc. III, do CPC. A interpretação corrente da regra no STJ é no sentido de reconhecer o impedimento do magistrado que tenha atuado previamente no litígio no exercício da função jurisdicional, e não quando tenha atuado na esfera administrativa552. Assim, o mesmo magistrado pode decidir na esfera administrativa sobre uma controvérsia (geralmente ligada à distribuição de delegações de serventias extrajudiciais ou a processos administrativo-disciplinares) e, posteriormente, decidir o tema quando objeto de demanda judicial553. Essa interpretação da regra não pode ser aplicada na arbitragem. Imagine-se o caso em que o árbitro é também o responsável, em certa entidade que administra processos arbitrais, pelo exercício do juízo de arbitrabilidade da controvérsia e sua admissão prima facie para a constituição de um processo arbitral. Nesse exemplo, o conhecimento prévio do árbitro a respeito da

551 Vide casos tratados no capítulo 3.4.7 do presente estudo. 552

STJ, RMS 18.099/PR, 5ª T., Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 12.06.2006, p.500. Também STJ, RMS 13308/DF, 6ª T., Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 04.08.2008.

553 No entanto, registre-se o reconhecimento do impedimento, para a decisão de processo judicial, do magistrado que foi o relator do processo administrativo-disciplinar, no qual se manifestou de forma conclusiva e antecipada acerca da controvérsia (no caso, dando pela culpabilidade do agente público, “proferindo seu voto-condutor com base em ideias preconcebidas que vincularam o resultado final da esfera disciplinar”). STJ, RMS 19.477/SP, 6ª T., Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 22.02.2010.

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controvérsia – e, pior, o seu posicionamento a respeito de uma das questões objeto do litígio: a arbitrabilidade – impõem diferente interpretação e qualificação554 dos termos presentes no texto do artigo em tela, levando ao estabelecimento de uma norma distinta daquela reconhecida para os magistrados, de modo que, independentemente do estágio em que tenha tomado conhecimento do conflito (isto é, atuado nele), esse evento configure causa aparente de sua parcialidade.

Seja com a ampliação das causas que aparentam a parcialidade do árbitro para além daquelas previstas ao juiz, seja com a particular interpretação daquelas previstas em lei, é possível perceber que a sistemática aplicável à imparcialidade do árbitro deve reconhecer a existência de um mercado e de uma comunidade arbitral inexistentes no processo judicial e, sobretudo, de uma lógica diferente na escolha e regulação de conduta do julgador em cada um dos métodos. O árbitro é escolhido, sobretudo, pelo seu capital simbólico, que muitas vezes presume algum tipo de contato entre o julgador e a parte ou seu advogado555. Não considerar esses fatores quando o intérprete propõe uma norma concreta que dê pela parcialidade ou imparcialidade do árbitro é correr o risco de tomar relações indiretas e precárias entre árbitro e parte como evento ensejador da aparência de parcialidade ou, de outro lado, tomar relações diretas e substanciais como insuficientes para caracterizar essa mesma parcialidade556.

4.2. Imparcialidade, independência e neutralidade do árbitro: importância relativa

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 180-184)

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