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Primeira premissa de estrutura: modelo democrático de processo como forma de orientação na interpretação das hipóteses expressamente previstas e de integração

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 83-89)

CAPÍTULO 3. CONSTRUÇÃO DA NORMA CONCRETA E SUAS PREMISSAS

3.2. Premissas de estrutura

3.2.1. Primeira premissa de estrutura: modelo democrático de processo como forma de orientação na interpretação das hipóteses expressamente previstas e de integração

de hipóteses não previstas expressamente

Conforme o presente estudo demonstrou, as opções legislativas de padronização da imparcialidade dos árbitros ensejam problemas práticos de ordens diversas: (i) a técnica de padronização mediante exclusiva tipificação legal dos casos de recusa ou impugnação deixa de tratar grande variedade de hipóteses passíveis de ocorrerem nos casos concretos;

(ii) a técnica de padronização mediante a equiparação às causas de impedimento ou

suspeição de juízes impõe ao intérprete o esforço argumentativo de adequar aquilo que foi legislado ao servidor do Estado (escolhido para julgar uma causa segundo regras de distribuição de competência) a um particular (escolhido direta ou indiretamente pelas próprias partes); e (iii) a técnica de padronização mediante o estabelecimento de um estado

de coisas impõe ao intérprete o desafio de preenchimento do suporte fático da regra a ser

aplicada, resultando em maior dificuldade para o exercício e controle da interpretação, diminuindo a previsibilidade das condutas objetivadas.

Não importa qual seja a opção legislativa, o intérprete somente superará os problemas hermenêuticos ao recorrer ao modelo democrático de processo e à consequente conceituação da imparcialidade como não fechamento do árbitro à influência dos argumentos das partes, que será aferida mediante as aparências que os eventos

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objetivamente verificáveis ensejarão no caso concreto. Como se viu, nem mesmo os ordenamentos que, já antecipando a problemática derivada da impossibilidade de aferição da condição subjetiva (psiquê) do árbitro, positivaram expressamente a existência de

dúvidas justificadas como fator denotativo da parcialidade276, favorecem a superação dos problemas hermenêuticos se não for levado em conta que a imparcialidade consiste no óbice à influência dos argumentos das partes no julgador. Daí a necessidade do recurso ao

modelo democrático de processo como forma de orientar e harmonizar eventuais hipóteses

previstas em lei, e, eventualmente, como forma de integrar situações não previstas expressamente, mas que igualmente imunizam o árbitro ao exercício da influência.

As hipóteses de imparcialidade eventualmente tipificadas em lei ou outras regras vinculantes carecem – tal como qualquer outro texto – ser interpretadas mediante a atividade da subsunção, que consiste na adaptação das propriedades da hipótese do fato prevista linguisticamente no texto normativo às propriedades da descrição linguística do evento ocorrido no mundo social. Assim, o intérprete adapta o juízo que faz da hipótese prevista ao juízo que extrai do evento social277.

Se o ordenamento que rege o processo arbitral acata o modelo democrático de processo que, entre outras características, prevê a imparcialidade do árbitro como um estado de

coisas necessário, essa previsão exerce eficácia integrativa278, permitindo ao intérprete a eleição do comportamento necessário para se atingir o conteúdo operativo da imparcialidade (não imunização do árbitro aos argumentos das partes), efetivamente criando a hipótese de fato da norma que regulará o caso concreto.

Cabe ao intérprete279 escolher, dentre todos os eventos ocorridos no mundo fático, aqueles sobre os quais a lei lhe permite projetar critérios que lhe são interessantes ressaltar280.

276 É o caso das legislações que seguem a Lei Modelo UNCITRAL. Vide capítulos 1.3.2.3 e 1.3.3.2 do presente estudo.

277

Trata-se de “(...) uma adaptação entre as propriedades do ato comunicativo jurídico geral e abstrato e o evento social ocorrido, com a criação de um micro-sistema de formulações jurídicas destinado à construção da verdade a ser incorporada pelo sistema, dando origem ao ato comunicativo jurídico individual e concreto (...)”. ERNANI CONTIPELLI. Aplicação da norma jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 80.

278

HUMBERTO ÁVILA. Teoria... op. cit., pp. 104-105.

279 “A adequação do evento social às categorias dos atos comunicativos previstos na norma jurídica geral e abstrata depende da atuação do intérprete/aplicador”. ERNANI CONTIPELLI. Aplicação... op. cit., p. 120.

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Nesse sentido, o direito não se prende aos fatos em si, mas ao uso que lhes é dado como referência para o estabelecimento da norma que regulará determinada relação jurídica, em uma estratégia retrospectiva281 ou de conformação da situação do fato (como enunciado) ao texto normativo, em um “ir e vir da perspectiva”282 desenvolvido pelo intérprete.

O direito brasileiro, como já afirmado no presente estudo, trabalha diretamente283 a imparcialidade do árbitro em três passagens da LA: (i) estabelecendo-a como modo de ser do processo no art. 21, § 2º; (ii) impondo-a ao árbitro no art. 13, §6º, embora sem a definir; e (iii) impedindo, no art. 14, caput, “de funcionar como árbitro” o profissional que ostentar, frente às partes ou ao litígio “algumas das relações que caracterizam os casos de

impedimento ou suspeição de juízes” previstas no arts. 134 e 135 do CPC. Ao assim

proceder, a lei acatou duas técnicas: a técnica da equiparação (positivada de modo vago pela referência a “algumas das relações”, sem especificar quais relações seriam, e deixando esse ônus para o intérprete diante do caso concreto) e a técnica do estabelecimento de um estado de coisas voltado à imparcialidade.

Assim, a despeito de a lei impedir que sejam árbitros pessoas que ostentem “algumas das

relações” que configurem impedimento e suspeição de juizes, esse não deve ser – e não é –

o único critério de padronização da imparcialidade dos árbitros no ordenamento brasileiro284. Ao contrário, ao assimilar o modelo democrático de processo, consoante art. 21, a LA demanda que outros casos não expressamente previstos ou referidos também sejam considerados, na medida em que eles possam ser enquadrados na situação de não permitir que o árbitro seja persuadido e influenciado pelos argumentos de ambas as partes na arbitragem. Tome-se o exemplo da relação de amizade íntima entre árbitro e advogado,

280

Nesse sentido: “Law provides nothing but a network of criteria exteriorly and posteriorly projected onto the event. The underlying idea is to afford that I can break an event into sets of concepts and conceptual connections (artificially established as seen from any purely theoretical reconstruction of its factors and elements) so that, by their standards, I can issue a judgment upon the fact”. CSABA VARGA. The non- cognitive character of the judicial establishment of facts, in Legal System and practical reason. Stuttgart: Franz Steiner, 1994, p. 235.

281 C

SABA VARGA. The non-cognitive… op. cit., p. 238. 282 K

ARL LARENZ. Metodologia da ciência do direito (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 395.

283 O art. 14, § 1º, objetivando o dever de revelação do árbitro, trabalha com a imparcialidade indiretamente. 284 Contra, conforme já citado, L

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cujo correlato para o juiz não está previsto nos arts. 134 e 135 do CPC285. Não há dúvida – e assim se reconheceu em diversas decisões judiciais segundo legislações que também estabelecem um estado de coisas – de que, a despeito da ausência de previsão expressa, o caso em questão demanda o reconhecimento da parcialidade do árbitro286.

Assim, a análise da imparcialidade do árbitro no direito brasileiro demanda não apenas o exame das causas de suspeição e impedimento dos juízes (e sua adaptação para o processo arbitral) ou de eventuais outras regras vinculantes escolhidas pelas partes (tais como os regulamentos e os códigos de ética das instituições arbitrais), como também o cotejo do

modo de ser imposto pela lei com as circunstâncias específicas de determinado caso

concreto (o que permite a criação de norma não ligada às situações já previstas na hipótese legal ou consensualmente vinculantes). Assim, seja com regras mais específicas, seja com apoio na regra geral de vedação à parcialidade do árbitro, o intérprete deve elaborar uma

proposta de norma que permita averiguar a aparência de imparcialidade do árbitro no caso

concreto.

Se há regras vinculantes específicas (vinculantes por força de lei ou de consenso), o trabalho do intérprete é facilitado, consistindo no estabelecimento da relação entre a hipótese prevista na regra vinculante específica e o caso concreto. Exemplo disso é o árbitro amigo íntimo de uma das partes (art. 13, § 6º, da LA, c/c art 135, inc. I, do CPC), na qual o intérprete deverá demonstrar em que consiste uma amizade íntima normativamente prevista e demonstrar que os elementos distintivos dessa relação ocorrem no caso prático.

Registre-se o posicionamento desenhado pelo julgamento do caso Merit v. Leatherby, segundo o qual as regras consensuais a respeito da imparcialidade fixadas no regulamento da American Arbitration Association (AAA), impondo um padrão mais rígido para a avaliação da imparcialidade do que o constante na Section 10 do FAA, não seriam um ponto de partida adequado para a perquirição da validade de uma sentença impugnada em

285 Tal evento, segundo a melhor doutrina, não configura impedimento ou suspeição do juiz. Sobre o tema, JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI. Do relacionamento juiz-advogado como motivo de suspeição, in Revista dos Tribunais, v. 756, 1998, p. 69-76.

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razão da parcialidade do árbitro, visto que o regulamento não teria força de lei287. Não é possível concordar com essa tese à luz do direito brasileiro que, tal como já apontado, estabelece um estado de coisas que pode ser padronizado pelas partes, conquanto não contrarie o modelo democrático de processo.

Mas como criar uma proposta de norma sem que haja qualquer regra vinculante que trate da hipótese verificada no caso concreto?

Quando essas referências não existem – e assim é o caso do direito brasileiro ao estabelecer (ao lado de padrões análogos aos dos juízes para a imparcialidade dos árbitros) um estado de coisas que, como defendido no presente estudo, impõe ao árbitro que esteja aberto à influência exercida pelos argumentos das partes –, a liberdade do intérprete na eleição dos eventos que se encaixariam288 na norma criada para o caso concreto é maior. No entanto, igualmente maior é o ônus argumentativo do intérprete289 para justificar que tal evento do mundo social se enquadra entre aqueles que atentam contra a imparcialidade.

Se não há regras vinculantes que tratem do evento ocorrido no caso concreto, o intérprete verificará se existem regras não vinculantes, categoria em que se encontram tanto eventual corpo de diretrizes não adotadas expressamente no procedimento arbitral (como, por exemplo, as IBA Guidelines), como leis e regulamentos não aplicáveis ao caso concreto, mas que guardam alguma similitude com a situação que se quer analisar. A partir dessas regras, o intérprete apresentará uma proposta normativa que seja suportada pelo estado de

coisas imposto pela lei brasileira a respeito da imparcialidade do árbitro (arts. 21, § 2º e 13,

§ 6º, da LA).

Tão importante quanto um corpo de regras é a interpretação que lhe é dada290. E por essa razão, não se pode descartar o valor da jurisprudência e da doutrina – seja no trato das

287 Caso Merit Insurance Co. v. Leatherby Insurance Co., 714 F.2d 673 (7th Cir. 1983), decisão disponível no endereço eletrônico https://www.casetext.com/case/merit-ins-co-v-leatherby-ins-co-2/; consulta em 21.02.2014.

288 C

SABA VARGA. The non-cognitive... op. cit., p. 234. 289 H

UMBERTO ÁVILA. Teoria... op. cit., pp. 107-108.

290 A moderna hermenêutica jurídica reconhece que norma não se confunde com o seu substrato verbal (a regra), mas sim consiste no juízo que o intérprete retira desse substrato. Sobre o tema, e exemplo das “idas e vindas” do intérprete na compreensão de uma regra, vide KARL ENGISCH. Introdução ao pensamento jurídico (trad. J. Baptista Machado). 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 124-127.

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regras vinculantes, seja das não vinculantes – para a construção da proposta normativa na qual a aparência de imparcialidade no caso concreto será tratada.

Não se pode olvidar que, além da indeterminação dos comportamentos necessários voltados para a obtenção do estado de coisas relativo à imparcialidade, parte das regras mais específicas nas quais a proposta normativa do intérprete poderá se basear envolve

conceitos indeterminados291 – que carecem de um preenchimento valorativo –, ou, sob diferente prisma, envolve cláusulas gerais292 – que são completadas mediante referência a regras extrajurídicas, de modo que sua valoração impõe a utilização de modelos de comportamento e pautas de valoração –, tal como se vê na expressão “amigo íntimo”. Assim, a formulação de uma proposta de norma para o caso concreto demandará do intérprete uma atuação não apenas dedutiva, mas também de classificação e valoração, segundo aquilo que comumente se espera (em certo momento histórico e em certa cultura) do comportamento adequado de um agente imparcial. Eis aí a abertura da proposta normativa para os dados da realidade e às regras da experiência que o intérprete, segundo a sua visão de mundo, dele extrai293.

Essa valoração do evento social que integrará a proposta normativa deve se dar no estreito ângulo entre dois vértices, com vistas à proteção da utilidade e segurança do mecanismo de solução de controvérsia: a interpretação daquilo que comumente se espera a respeito de um evento que envolve a imparcialidade não pode ser muito rigorosa ou restritiva – o que redundaria na impossibilidade de demonstração da imparcialidade, com a consequente maior dificuldade de exclusão dos árbitros aparentemente parciais; e, no outro vértice, a interpretação daquilo que comumente se espera a respeito de um evento que envolve a imparcialidade do árbitro não pode ser muito indulgente ou ampliativa – o que redundaria na desmesurada facilidade de demonstração da parcialidade, criando um estímulo para a utilização dessa alegação em técnicas dilatórias pela parte que quer frustrar a utilização ou o resultado do método arbitral. De fato, quanto mais amplas forem as hipóteses que possam caracterizar a imparcialidade do árbitro e quanto menos demonstrações elas demandarem para que se configure a aparência de parcialidade, mais fácil será às partes eliminarem o

291 K

ARL ENGISCH. Introdução... op. cit., pp. 210-214. 292

RUY ALVES HENRIQUE FILHO. Direitos fundamentais e processo. São Paulo: Renovar, 2008, p. 231. Vide também, por referência ao autor citado, JUDITH MARTINS-COSTA. O direito privado... op. cit., esp. pp. 6-8. 293 K

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árbitro tido como parcial. De outra banda, ao se ampliar as hipóteses e demandar pouca demonstração, abre-se espaço para manobras do litigante que tenha interesse em tumultuar ou retardar o processo arbitral ou mesmo em anular a sentença arbitral no Poder Judiciário.

3.2.2. Segunda premissa de estrutura: satisfação de postulados hermenêuticos ou das

No documento Imparcialidade dos árbitros (páginas 83-89)

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