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3.4 Natureza jurídica do hardware e do software

3.4.2 Natureza jurídica do software

A natureza jurídica do software, em seio pátrio, é definida pela Lei 9.609 de 19/02/1998,

vulgo, Lei de Software, como propriedade intelectual protegida por direito de autor, conforme

excetos abaixo:

Lei 9.609 de 19/02/1998, Lei de Software

Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas

automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.

Art. 2º O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei. (Grifamos)

96 Código Civil

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social. [...]

Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.

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A dicção do Art. 1º é bastante imprecisa e atécnica. Talvez por isso dê margem a certa

confusão na caracterização jurídica de um fenômeno novo, mas que se torna cada vez

importante, permeando, inexoravelmente, a vida moderna. A programação de computadores

não se dá por intermédio de linguagem natural, mas por linguagem específica, com palavras

chave e rígida sintaxe predefinida, de modo a poder ser traduzida para linguagem de máquina,

por um outro programa, a saber, o compilador (Figura 2). Com as técnicas de Inteligência de

Artificial, ou mais recentemente, de Computação Cognitiva, os computadores passaram a ter

capacidade de entender, interpretar e reter informação a partir de linguagem natural, falada ou

escrita. Embora esta informação seja armazenada na memória dos computadores da mesma

forma que os programas, o software de inteligência artificial que captou, armazenou e derivou

conhecimento a partir da linguagem natural, foi desenvolvido em algum tipo de linguagem de

programação, a saber, lógica e estruturada. Adicionalmente, é mister entender que a expressão

“contida em suporte físico”, em pese ser demasiadamente aberta e genérica, deve abarcarduas

situações distintas. De um lado, refere-se ao substrato físico que retém ou armazena a sequência

de bits de linguagem de máquina, a saber, o código-executável. Este substrato pode ser de

natureza eletrônica, por exemplo, um chip semicondutor de memória, ou de natureza magnética,

tais como, discos do tipo hard drive (HD), ou ainda de natureza óptica, tais como, CD-ROMs

e DVDs. Geralmente, consideram-se, coloquialmente, os dispositivos magnéticos e ópticos

como espécies do gênero dispositivos eletrônicos. Por outro lado, o “suporte físico” refere-se

também ao substrato no qual é armazenado o código-fonte, que pode ser tanto papel, contendo

a impressão da sequência de instruções produzidas em linguagem de alto-nível, ou substratos

eletrônicos. Devido ao incrível volume de software produzido, o papel foi praticamente

abandonado.

O Art. 2º é direto na medida em que determina ser o programa de computador uma

propriedade intelectual e dispõe, inequivocamente, o seu regime de proteção como sendo o de

direitos autorais, em conformidade com a respectiva lei, a saber, a Lei 9.610, de 19 /02/1998,

vulgo, Lei de Direitos Autorais.

Quanto ao direito do autor, o Art. 2º, §3º da Lei do Software

97

dispõe que não há

necessidade de registro para que seja assegurada sua proteção. Todavia, ao oferecer, no Art. 3º,

um mecanismo de registro, a Lei de Software impõe a originalidade como pré-condição, sendo

97 Lei do Software

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esta demonstrada por trechos do programa,

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fornecidos pelo autor ao órgão público competente

mediante garantia de sigilo.

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Ora como já demonstramos, somente códigos fonte, sejam eles

escritos em linguagem Assembly ou, principalmente, em linguagem de alto-nível são

razoavelmente cognoscíveis ao ser humano. Assim sendo, infere-se da exegese sistemática da

Lei de Software que o direito de autor é comprovado pelo domínio de um certo código-fonte

por parte de certo programador que o tenha criado. Portanto, é o domínio devidamente

registrado de um código-fonte que garante o direito de propriedade intelectual de um software.

Fica, portanto, claro tratar-se o software de um direito real ou bem intangível vinculado a um

titular especifico, a saber, aquele que tem o seu respectivo direito de autor.

O Art. 9º da Lei de Software dispõe que: “O uso de programa de computador no País

será objeto de contrato de licença”. A transação jurídica aludida pela lei no referido artigo é a

cessão parcial de direitos, a saber, o direito de uso.

Neste ponto, faz-se útil uma breve digressão sobre o conceito de direito real. Luciano

de Camargo Penteado, elaborando sobre o fundamento do direito das coisas, traz à tona as

teorias realistas e personalistas.

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A primeira, dominante por vários séculos, entende que o

direito real incide diretamente sobre a coisa, depreensível da relação entre o titular do direito e

o seu próprio objeto, sendo, neste contexto, irrelevante o papel dos demais integrantes da

coletividade. Já a teoria personalista, segundo Penteado, floresceu a partir do modelo das

relações jurídicas formulado por Savigny e que foi sistematizado por Bernard Windscheid,

referido pelo autor como o Príncipe da Pandectística. Em síntese, a nova perspectiva entende

que todo direito é subjetivo, uma vez que é exercido em relação a outra pessoa. Assim, nas

relações de direito identificam-se dois tipos de sujeito, ativo e passivo, sendo o primeiro aquele

que o exerce e o segundo aquele que se sujeita ao exercício do primeiro. Neste quadro

dogmático, o direito real deixa de ser considerado ontologicamente real (no sentido de ser uma

relação com a coisa) e passa a ser uma categoria de direito subjetivo caracterizado por um tipo

especial de sujeito passivo, e uma sujeição inespecífica e abrangente – salvo limitações ex lege

98 Lei de Software

Art. 3º, §1º, III - os trechos do programa e outros dados que se considerar suficientes para identificá-lo e caracterizar sua originalidade, ressalvando-se os direitos de terceiros e a responsabilidade do Governo. 99 Lei de Software

Art. 3º, §2º As informações referidas no inciso III do parágrafo anterior são de caráter sigiloso, não podendo ser reveladas, salvo por ordem judicial ou a requerimento do próprio titular.

100 Eduardo Jardim e, bem assim, boa parte dos doutrinadores modernos, esposam a teoria personalista ou subjetivista.

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– consubstanciada no dever de não interferência ante o sujeito ativo. Segundo Penteado,

Windscheid cria uma categoria conceitual de sujeito passivo universal, que representa toda a

coletividade, à qual se impõe, ante a titulares de direitos (subjetivos) reais o dever legal de

respeito e não intromissão no quase ilimitado plexo de faculdades do titular. Neste sentido, é

proveitosa a transcrição de Karl Larenz, citado por Penteado ao comentar sobre o esvaziamento

empreendido por Windscheid no significado ético e existencial do conceito de propriedade,

tornando-o um conceito eminentemente formal:

O efeito da propriedade vê-lo ele não tanto no poder do proprietário de decidir o que quiser acerca da coisa (de dispor dela, fáctica ou juridicamente), mas na mera possibilidade de excluir os outros da mesma coisa: na soma de pretensões que lhe são conferidas para a defender de perturbações potenciais.

(LARENZ apud PENTEADO, 2008, p.60) (Grifamos)

Ao que o autor complementa com alongada citação de Windscheid:

Direitos reais são aqueles que por força dos quais a vontade do titular é decisiva para uma coisa. Isto não se deve entender no sentido de que seja a coisa aquela a quem, o ordenamento jurídico, ao conceder um direito real, impõe a sujeição. Isto não teria sentido. Todos os direitos subsistem entre pessoa e pessoa, não entre coisa e coisa. Mas com isto se quer dizer que a vontade do titular de um direito real é a norma para o comportamento respeitante à coisa, isto é, para o comportamento de qualquer um e não deste ou daquele. Mas o conteúdo do poder volitivo, que constitui o direito real, é negativo: aqueles que se encontram defronte do titular do direito devem abster-se de qualquer ação, ou de uma determinada ação sobre a coisa, e com o seu comportamento em relação à coisa não devem impedir a ação – uma qualquer ação, ou uma determinada ação – do titular sobre a coisa.

(WINDSCHEID apud PENTEADO, 2008, p.60) (Grifamos)

Constata-se, portanto, a pertinência da caracterização do software como direito real,

considerado este à luz da teoria personalista. Sendo um direito de autor, é incontestavelmente

um direito pessoal sobre uma coisa, a saber, um código-fonte de sua autoria. A violação do

domínio sobre código-fonte constitui-se ilícito de furto de propriedade intelectual (expressão

empregada em lato sensu). A cessão parcial do direito real para uso está inserida no plexo de

faculdades do seu titular. Porém, o uso não devidamente autorizado pelo titular do direito real,

vulgarmente conhecida como pirataria de software, caracteriza-se como uso ilícito, sendo

prática infelizmente muito mais comum do que seria de se esperar.

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O direto de uso é elencado no rol de direitos reais do Art. 1.225 do Código Civil, em

seu inciso V. Todavia, a dicção do Art. 1.412 é restritiva e assentada em conceitos de

propriedade imobiliária, urbana ou rural, que pouco refletem a realidade das modernas

tecnologias. Pontes de Miranda (2002, p.378) alarga este horizonte: “O uso consiste em

aproveitar-se da utilidade, excetuados os frutos.” Ao incluir o conceito de utilidade, o autor

abarca no direito de uso um sem número de vantagens auferíveis pelo usuário que vão além dos

frutos diretos, sem incluí-los, podendo redundar inclusive em vantagens pecuniárias que,

classificar-se-iam como vantagens pecuniárias indiretas.

Ao discorrer sobre direitos reais de gozo, Penteado afirma que:

A função de gozo [...] pertine ao fato de que se destinam à satisfação de necessidades, relacionando-se à utilidade que o bem proporciona ao seu titular. Gozar, em sentido mais estrito, é fruir, aproveitar-se de vantagens que o bem tem aptidão de gerar. (PENTEADO, 2008, p125)

(Grifamos)

A função de gozo – embutida, assim, no direito real de uso – agasalha tudo que um

software pode proporcionar ao cessionário do direito de uso, excluindo-se, por exemplo, o seu

aluguel ou subcessão a título oneroso, permitidos apenas se houver autorizativo explícito no

contrato de licenciamento. As utilidades auferíveis a partir de um software cobrem um amplo

raio de possibilidades, varrendo desde (i) entretenimento como, acesso a jogos, músicas, vídeos

e rede sociais, passando por (ii) ferramentas de produtividade pessoal, tais como editores de

texto, planilhas, elaboradores de apresentações, correios eletrônicos e comunicadores

instantâneos, passando, também, (iii) por complexas ferramentas de gestão empresarial capazes

de aumentar a produtividade e a lucratividade das empresas e chegando a (iv) softwares que

realizam cálculos complexos, tais como, estruturas construtivas, prospecção de petróleo,

simulação aerodinâmica, previsão climática, reconhecimento de imagens ou ainda sistemas de

inteligência artificial e computação cognitiva.

Mas como o direito de uso de software, cedido por intermédio de um contrato de

licenciamento, é efetivamente materializado?

No passado recente, o direito de uso de software licenciado era materializado por

intermédio da entrega do código-executável, armazenado em algum meio físico passível ser

lido pelo hardware, tipicamente disquete, CD-ROMs ou DVDs. Não é sem razão, portanto que

o Art. 6º da Lei de Software restringe ao usuário realizar apenas uma cópia destinada

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salvaguarda (backup),

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copia usualmente feita em meios físicos semelhantes ao meio original

atrelado a licenciamento. Todavia, a evolução tecnológica e a massificação da Internet vêm

transformando rapidamente esta realidade. Atuamente, a materialização do direito pode se dar

(i) pela transferência eletrônica do código-executável (download) diretamente para o hardware

do cessionário do uso do software ou (ii) pelo fornecimento, por parte do cedente, de uma

palavra-chave que permita ao cessionário realizar o download ou ainda (iii) pelo fornecimento

de uma palavra-chave que possibilite o cessionário usar o software que é executado em uma

infraestrutura computacional remotamente instalada e conectada à Internet. Esta última e mais

recente modalidade é denominada de Software na Nuvem.

O contrato de licenciamento de software é um instrumento de constituição de direitos

reais sobre coisa alheia. O código-fonte, que tangibiliza a propriedade intelectual protegida pelo

direito de autor, não é repassado ao usuário, pois caso fosse, seria equivalente à transferência

do domínio sobre a própria propriedade do bem intangível. É através da transferência do

código-executável, inteligível sobretudo ao hardware computacional, que o direito real de uso

e gozo é cedido. Esta situação encontra certo paralelo com o núcleo da doutrina de Penteado,

sobre direitos reais de gozo sobre coisa alheia:

Por isso, sempre que se tratar do usufruto, do uso, [...] a par da figura do titular destes direitos conviverá o a figura do proprietário. Como ele tem direito sobre a coisa própria, os demais se dizem titulares de um direito real sobre coisa alheia, isto é, do proprietário.

Estes direitos reais são formados a partir das estruturas componentes do domínio. No usufruto, por exemplo, destacam-se particulares elementos da propriedade de um sujeito, para proporcionar ao outro, usufrutuário, uma possibilidade de uso e retirada de vantagens do bem, sem a possibilidade de alienação, que é mantida ao proprietário. Reduz-se o plexo de faculdades da situação dominial, mas mantem-se a função de gozo, isto é, de conferir um meio aproveitamento e cria-se um novo direito real. Por isso qualifica-se o usufruto entre os direitos reais de gozo, nas sobre coisa alheia. (PENTEADO, 2008, p.126)

Neste sentido, direito real de uso que se estabelece com a licença de software implica

também o gozo da utilidade que dele advém, não deixando de ser um direito real de uso e gozo

sobre coisa alheia e estando adstrito aos temos da cessão expressos no contrato de

licenciamento.

101 Lei de Software

Art. 6º Não constituem ofensa aos direitos do titular de programa de computador:

I - a reprodução, em um só exemplar, de cópia legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de salvaguarda;

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É importante ressaltar que o titular do direito de autor tem o direito de aliená-lo total ou

parcialmente, gratuita ou onerosamente, a quem deseje. O Art. 4º da Lei de Software,

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enumera algumas circunstâncias nas quais a alienação se dá ex lege. Na prática, empresas que

se dedicam a desenvolver softwares para exploração comercial, a saber, por intermédio do

licenciamento de direito de uso, em geral não se interessam em aliená-lo. É mais comum que

entrem em uma transação de fusão e aquisição com uma empresa congênere e complementar,

de sorte que a empresa resultante tenha uma posição mais expressiva de mercado, combinando

as capacidades técnicas, especializações e participação de mercado das duas. Todavia, é mister

que se reconheça, que nada há que obste a pura e mera alienação de um software, alienação,

esta, que se aperfeiçoa pela tradição do código fonte.

Ante o arrazoado, podemos dizer que software é bem intangível do tipo propriedade

intelectual, protegido por direito real de autor, passível de cessão, onerosa ou gratuita, total

(transferência de titularidade) ou parcial (direito de uso e gozo). A caracterização da autoria se

dá com base no domínio do autor sobre o código-fonte, salvaguardadas as exceções do Art. 4º

da Lei de Software. O contrato de licenciamento de uso é o instrumento pelo qual o titular do

software cede o direito real de uso e gozo sobre coisa alheia, podendo ser a cessão realizada a

título oneroso ou não. A materialização da cessão se dá por intermédio da viabilização acesso

ao código-executável por parte do titular-cedente ao usuário-cessionário. A Figura 3 ilustra tais

aspectos materializadores do direito do autor e da cessão de uso por intermédio do contrato de

licenciamento.

102 Lei de Software

Art. 4º Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e

desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos. (Grifamos)

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Figura 3 -- Materialização do Direito Autoral e da Licença de Uso