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Relevância dos princípios da legalidade e da tipicidade tributárias

As nuances e controvérsias existentes a respeito da incidência tributária sobre software

e hardware, e consequentemente, sobre serviços na nuvem, são relacionadas a dois aspectos

principais: (i) a natureza jurídica dos fatos observados nas duas manifestações da tecnologia no

mundo fenomênico e sua pertinente subsunção a hipóteses tributárias estatuídas pelo Poder

Público no âmbito das competências tributárias constitucionais; e (ii) a observância dos ditames

constitucional e legalmente estabelecidos para o exercício das referidas competências. Quanto

ao primeiro aspecto, referimo-nos à elaboração já empreendida nos subcapítulos anteriores. O

segundo aspecto remete-nos, irrefugavelmente, ao Sistema Tributário Nacional, e todo o seu

plexo de princípios e ditames. Assim, impende-nos abordar seus institutos mais relevantes para

os temas objeto destas reflexões.

Realce-se, de plano, o princípio da estrita legalidade tributária que, lastreado na garantia

fundamental da legalidade geral, disposta no Art. 5º, II, CF/88

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e também no Art. 150, I,

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impõe a todos os entes federados o exercício de atividade legiferante como condição precedente

para exercício da correspondente competência tributária. Neste mister, vale ressaltar o

posicionamento de Eduardo Marcial Ferreira Jardim (2014), justificando o alicerce sobre o qual

repousa a exigência de preexistência de diplomas legais dispositivos de exações, a saber,

invasões na esfera patrimonial do cidadão-contribuinte:

Em princípio, o primado da legalidade ressoa no direito tributário com a mesma essência que noutros segmentos do direito público, conquanto se apresente com um conteúdo mais restritivo e angusto. A legalidade tributária costuma ser adjetivada de estrita em face da conjugação da legalidade genérica, já prevista no art. 5º, II, com o art. 150, I, da Constituição, o que se justifica em virtude da tributação exprimir uma das modalidades mais diretas de intervenção do Estado na ambitude da propriedade e da liberdade.

(JARDIM, 2014, p.157) (Grifamos)

112 Constituição Federal

Art. 5º, II - II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; 113 Constituição Federal

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

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Segundo o autor, esta prudência formal se distingue como uma das principais

caraterísticas das modernas democracias: “Deveras, a legalidade, quer genérica, quer

especificamente tributária, simboliza componente quintessencial do Estado Democrático de

Direito e gravita sobranceira sobre governantes e governados” (JARDIM, 2013, p.103). Não

sem razão, Eduardo Marcial Ferreira Jardim e Luciano Amaro (2010) aludem ao princípio da

legalidade por intermédio de brocardo nulificante de pretensão: nullum tributum sine lege!

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Desnecessário é, mas nunca demais, reiterar que instrumentos infralegais não suprem o

requisito da legalidade estrita, sendo, portanto, injustificáveis as muitas tentativas do Poder

Público em curto-circuitar o devido processo legislativo na ânsia arrecadatória, seja pela

instituição de novas exações, seja pela elevação de gravames previamente estatuídos. Vale o

alerta de Amaro: “A legalidade implica [...] não a simples preeminênciada lei, mas a reserva

absoluta da lei” (AMARO, 2010, p.134).

Eduardo Jardim elenca a tipicidade no rol de princípios constitucionais tributários

inexpressos, implicando tratar-se de princípio que se depreende da exegese do Sistema

Tributário Constitucional. O autor entende que a tipicidade tributária emerge da conjugação do

princípio da legalidade estrita, princípio regente da Administração Pública e que veda o Poder

Público empreender conduta não expressamente disposta em lei, com o princípio da estrita

legalidade tributária:

Destarte, a apontada legalidade imanente ao direito público, conjugada com a estrita legalidade tributária, rende margem ao reconhecimento do princípio da tipicidade, o qual significa adequação do fato à norma. Trata-se de

diretriz implícita que informa todos os quadrantes da tributação,

compreendendo, assim, a mesma magnitude dos princípios expressos. (JARDIM, 2013, p.119) (Grifamos)

Amaro perfila-se com a mesma noção, enfatizando que a autoridade administrativa não

tem poder discricionário para decidir, sem lastro legal preestabelecido, se uma certa situação

fática enseja ou não recolhimento de tributo. O autor ressalta que se faz mister que o lastro legal

de cada exação seja suficientemente detalhado e claro:

[...] para ser possível a concreção do dever tributário com a só ocorrência do fato gerador, há de estar já na própria norma legal a completa descrição dos fatos à vista de cuja realização ter-se-á, como decorrência necessária, o nascimento da obrigação tributária, no montante apurável segundo os critérios de medida definidos na lei.

[...]

Mackenzie - Dissertação - SPGallindo v155 São Paulo, 2016 100/226 Isso leva a uma outra expressão da legalidade dos tributos, que é o princípio da tipicidade tributária, dirigido ao legislador e ao aplicador da lei. (AMARO, 2010, p.135) (Grifamos)

À tipicidade tributária são agregadas adjetivações que buscam realçar a imperiosa

necessidade de clareza e completude na descrição abstrata do fato jurídico que se pretende seja

objeto de exação, a saber, tipicidade fechada ou cerrada. O comentário de Yonne Dolário de

Oliveira, transcrito por Luciano Amaro, informa que:

O que põe em relevo o caráter do tipo cerrado é a sua limitação precisa, o que se obtém, como no conceito abstrato, por meio de determinação exaustiva de suas características consideradas sempre necessárias. (OLIVEIRA, 1980, p.24, apud AMARO, 2010, p.135) (Grifamos)

Os referidos doutrinadores referenciam-se à obra de Alberto Xavier

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na qual, segundo

Eduardo Jardim, o autor destaca como traços da tipicidade tributária a (i) origem legal; (ii)

objeto; (iii) seleção; (iv) numerus clausus; (v) exclusividade; e (vi) determinação, detalhados

abaixo:

A origem legal resulta da estrita legalidade e os objetos são o fato e o efeito contemplado na estatuição normativa. A seleção pressupõe um

conceito definido e não geral como pressuposto de tributação ao passo que o numerus clausussupõe uma tipologia taxativa na dimensão em que o fato jurídico tributário deve adequar-se à previsão legal em todos os seus elementos. Já o exclusivismo implica a descrição normativa completa dos elementos necessários à tributação e a determinação, por derradeiro, consiste na fórmula precisa da legislação que não autoriza qualquer subjetivismo na gestão dos tributos.

(JARDIM, 2013, p.120) (Grifamos)

O conceito de tipo é referenciado no instituto homônimo do direito penal. Todavia a

aplicação realizada pelos doutrinadores no âmbito tributário guarda marcadas distinções, como

explica Eduardo Jardim:

A exemplo do quanto ocorre nas províncias do direito penal, o princípio da tipicidade traduz linha diretiva de ponderável relevo no direito tributário. A tipicidade significa a exata adequação do fato à norma, e, por isso, o surgimento da obrigação se condiciona ao evento da subsunção, que é a estreita e plena correspondência entre o fato jurídico tributário (fato gerador) e a hipótese de incidência.

[...]

Sobremais, no direito tributário a tipicidade ganha assomos de maior rigor em relação ao direito penal. Esse é o magistério fecundo de Alberto Xavier. Com efeito, o festejado professor português assinala que no direito criminal o órgão aplicador do direito é investido de uma certa margem de subjetivismo ao fixar a medida da pena. Já nos lindes do direito tributário,

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além da adequação do fato à norma, a lei estipula o fundamento da decisão e bem assim o próprio critério de decidir. (JARDIM, 2014, p.178) (Grifamos)

Luis Eduardo Schoueri (2011), ao elencar e analisar a questão, informa que Roque

Carrazza também é adepto da noção de tipicidade fechada, mas manifesta entendimento

diverso, com base em elaborada exegese sobre os conceitos Tatbestandsmäßigkeit e Typicität,

debatido por autores alemães e austríacos, e sua translação para o mundo jurídico hispanófono

e lusófono. A principal divergência transparece girar em torno do conceito de tipo jurídico e

sua aplicabilidade aos rigores do âmbito tributário:

A incompatibilidade da ideia de tipo com a determinação normativa, proposta por Xavier, se nota quando se vê que o tipo, exatamente por não apresentar limites em sua descrição, permite uma evolução: com o correr do tempo é possível que algumas características típicas passem a predominar sobre outras, que podem perder sua força ou até desaparecer [...] A consequência é que toda vez que um que determinado objeto é reconhecido como pertencente a um tipo, o próprio tipo é modificado, uma vez que passa a adquirir novas características [...]

(SCHOUERI, 2011, p.284) (Grifamos)

O autor aponta, ainda, a congruência entre seu posicionamento e o de Misabel de Abreu

Machado Derzi, que é crítica ao uso da expressão tipo tanto no direito penal quanto no

tributário, conforme explicitado no excerto de citações feitas por Schoueri:

[...] grande parte do que se chama tipo jurídico é convertido, na realidade, em conceito fechado, pela lei ou pela Ciência do Direito [...] o pensar tipologicamente, o tipificar em sentido técnico, ao contrário do que se supõe, não é estabelecer rígidos conceitos de espécies jurídicas, baluartes da segurança do Direito. Essa função compete aos conceitos fechados, determinados e classificatórios. [...]

Identificar tipo a Tatbestand ou fato gerador é reduzir indevidamente o seu alcance, sentido e acepção. [...] Como sinônimo de Tatbestand ou fato gerador ou hipótese, o impropriamente chamado tipo não é uma ordem gradual, uma estrutura aberta, mas, ao contrário, um conceito que guarda a pretensão da exatidão, rigidez e delimitação.

(SCHOUERI, 2011, p.285) (Grifamos)

Schoueri conclui informando que a doutrinadora propõe o afastamento da expressão

princípio da tipicidade em favor de um “princípio da conceitualização normativa específica”.

Paulo de Barros Carvalho (2010) alude, em brevíssima síntese, ao princípio da tipologia

tributária, dando a impressão de se aninhar com o aparente ramo majoritário da doutrina. Para

além do princípio enunciado pelo autor, a sistematização da regra-matriz de incidência – a

priori como técnica de hermética jurídica das normas tributárias postas, com seu descritor e

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correspondentes critérios material, espacial e temporal, bem como, seu prescritor e

correspondentes critérios pessoais e quantitativo

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– encaixa-se, como luva de pelica, à

conformação da pretensão de exatidão, detalhamento, extensão e delimitação de alcance que se

espera de uma norma, tão invasiva na esfera patrimonial dos atores sociais, como a tributária.

Neste sentido, a tipologia de Barros Carvalho não só é congruente com a tipicidade do demais

doutrinadores, mas eleva-a a um nível de especificidade e justeza semântica que, à primeira

vista, justificaria as adjetivações à tipicidade, a saber, fechada ou cerrada.

Todavia, de acordo com o escorço histórico-analítico de Schoueri e Derzi, a noção de

tipicidade é contraditória ao conceito doutrinário germânico de Tatbestand, levando Derzi a

pugnar e pela ab-rogação da tipicidade, em favor de “conceitos normativos específicos”.

Aparentemente, a rejeição da tipicidade reforçaria a caracterização da regra-matriz como

instrumento, mais do que adequado de explicitação em matéria tributária. Todavia, observa-se,

na prática, uma dinâmica um tanto mais complexa. A proliferação de fatos jurídicos – acarretada

pela diversificação (a) de bens, tangíveis e intangíveis, (b) de serviços, de base infraestrutural

e laboral, e, ainda, (c) de transações, de compra, venda, aluguel, cessão, etc, com contornos

contratuais os mais variados – bem como, por exemplo, a proliferação de incentivos fiscais

como instrumentos de atuação indutiva sobre a economia, têm exigido do Poder Público um

constante labor de adaptação do ordenamento tributário à novas realidades fáticas e objetivos

de política pública. Tal faina, intensamente verificável na atividade normativa infralegal, tem

revelado um, outrora insuspeito, grau de plasticidade das leis tributárias, colocando em xeque

a suposição de ser ínsita, à sua natureza, a aludida conceituação de ser normativo dotado

especificidade.

Ora, a norma jurídica, interpretada sob a égide da regra-matriz de incidência, deve estar

a serviço da segurança jurídica, instituto plasmado, ainda que tangencialmente, no Art. 103-A,

§2º, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, e classificada como postulado

constitucional por Eduardo Jardim.

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Assim sendo, deve: (a) de um lado, ser delimitante quanto

à hipótese de incidência e precisa quanto critérios do descritor, de modo que a subsunção seja

precisa; (b) ser detalhada e exauriente quanto às prescrições pós materialização da obrigação

tributária; porém, por outro lado, deve (c) gozar de certa plasticidade jurídico-semântica para

acomodar a subsunção de novos fenômenos econômicos, subsunção esta que deve se pautar por

116 Cf. (BARROS CARVALHO, 2010, p.412-413) 117 Cf. (JARDIM, 2014, itens 7.1 e 7.2)

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sólidos critérios exegéticos, tais como, a natureza jurídica intrínseca do percebido novo fato

jurídico e sua afinidade com o critério material identificado por intermédio da regra-matriz de

incidência. Eis que, em meio a tal hibridismo, reluz o próprio conceito de Tatbestand, arrazoado

por Schoueri e Derzi, que tampouco é estranho ao direito penal. À guisa de exemplo, nem toda

morte provocada por terceiros se enquadra como homicídio simples, plasmado no Art. 121 do

Código Penal, visto que, para sua caracterização se faz mister a sua submissão ao tipo na sua

caracterização multifacetada, admitindo agravantes e atenuantes e excludentes de ilicitude, tais

como os enumerados no Art. 23 do Diploma Penal. Neste sentido, observemos o escólio de

Luiz Regis Prado:

O núcleo do tipo é representado pelo verbo matar. A conduta incriminada consiste em matar alguém – que não o próprio agente – por qualquer meio (delito de forma livre). [...]

O tipo subjetivo é composto pelo dolo (direto ou eventual), entendido como a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo de injusto doloso (tipo objetivo). [...]

No delito de homicídio, o conhecimento do dolo compreende a realização dos elementos descritivos e normativos, do nexo causal e do evento (morte), da lesão ao bem jurídico, dos elementos da autoria e da participação dos elementos objetivos das circunstâncias agravantes, atenuantes e qualificadoras que supõem uma maior ou menor gravidade do injusto [...] e dos elementos acidentais do tipo objetivos.

(PRADO, 2008, p.67) (Grifamos)

A plasticidade do tipo penal é evidenciada pela recente assunção de que a conduta de

dirigir alcoolizado é caracterizada como dolo eventual, modificando, significativamente, a

subsunção das mortes causadas por atropelamento ou acidentes. Tal entendimento altera o tipo

subjetivo penal, alargando sua superfície subsuntiva, a saber, a gama de condutas que se

conformam ao tipo.

Perfilamo-nos, portanto, com a pertinência da existência do princípio,

constitucionalmente inexpresso, da tipicidade tributária, valorizando sua carga semântica

inequivocamente assentada na doutrina pátria e ressaltando a natureza restrita da sua

plasticidade jurídica implícita, plasticidade e restrição a serem seriamente consideradas na

produção infralegal e interpretativa do Poder Público. Neste sentido, entendemos ser mais

adequado falar-se em tipicidade angusta ou estrita, (i) angusta no sentido de que, em que

pese ser estreita, não é, porém, fechada, e (ii) estrita, no sentido de não ser rígida, ou seja, ser

suscetível a certo grau de plasticidade.

Mackenzie - Dissertação - SPGallindo v155 São Paulo, 2016 104/226

Cabe, ainda, realçar, a utilidade e a importância da regra-matriz de incidência como

instrumento a ser aplicado nas etapas legislativa e normativa em matéria tributária voltado a

determinação da precisão enunciativa do critério material, da completude dos demais critérios

do descritor e a precisão das disposições do prescritor. A sistemática submissão ex ante de

futuras normas tributárias ao crivo da técnica da regra-matriz de incidência constitui-se arrimo

da segurança jurídica.