Dworkin e Alexy desenvolvem o conceito de princípios jurídicos visando posicioná-los
no âmbito do direito com um papel distintivo e próprio, em complementariedade e mesmo em
contraposição à visão positivista. A forma como os princípios interferem nas decisões da cortes
norte-americanas, de acordo com a descrição de Dworkin, e a conceituação de colisão de
princípios e sistematização da mecânica de sopesamento empreendida por Alexy a partir da
jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, têm como pano de fundo uma
atividade judicante que, à primeira vista, aparenta extrapolar os limites aos quais os juízes
deveriam estar submetidos. Em outros termos, traz à tona a questão da discricionariedade.
Dworkin define discricionariedade lançando mão de uma analogia simples, porém
reveladora: “Discretion, like the hole in the doughnut, does not exist except as an area left open
by a surrounding restriction” (DWORKIN, 1978, p.31)
67. Na visão do autor, discricionariedade
é o espaço deixado ao arbítrio de quem está cercado por barreiras limitadoras, algo assim como
um cercado de bebês.
68Neste sentido, o autor compara duas perspectivas sobre
discricionariedade esposadas por positivistas, a segunda delas dando ensejo ao papel dos
princípios:
The positivists […] say that a judge has no discretion when a clear and established rule is available.
[…]
Positivists hold that when a case is not covered by a clear rule, a judge must exercise this discretion to decide that case by what amounts a fresh piece of legislation.
66 FUST. Ministério da Comunicações. Disponível da página http://www.mc.gov.br/fundos/fundo-de-universalizacao-dos-servicos-de-telecomunicacoes-fust , acessada em 13/09/2015.
67 Tradução livre do autor: “Discricionariedade, tal qual um donut (ou um pão em formato de rosca) não existe senão como um espaço vazio circundado por restrições”.
68 Nos Estados Unidos é comum expressar figurativamente níveis de autoridade gerencial como “sandboxes”. Desde que se mantenham no interior das suas respectivas caixas de areia, assim como as crianças podem brincar à vontade, os gestores têm liberdade para tomar decisões.
Mackenzie - Dissertação - SPGallindo v155 São Paulo, 2016 67/226 (DWOKIN, 1970, p.34 e 31)69
Discricionariedade entra em jogo não só quando não existe uma regra claramente
aplicável in casu, mas também quando, em casos mais complexos, se constatam antinomias,
reais ou aparentes. A percepção usual (e superficial) é a de que a tradição Common Law está
primordialmente ligada aos precedentes, com um viés de estabilidade jurídica, o stare decisis,
que molda a atuação das cortes, minimizando o papel das leis. Dworkin afirma que não só a
relevância dos precedentes, mas também a doutrina da supremacia legislativa, são, em si,
decorrentes de princípios jurídicos assentados, e como tal, têm relevância, mas são desprovidos
de natureza estritamente impositiva
70. Embora possa parecer um tanto surpreendente, Dworkin
estabelece seu pensamento a partir de uma posição crítica ao positivismo emanado no âmbito
da própria tradição da Common Law – de certa forma personificado pelo autor em H. L. A Hart,
pensador britânico, filósofo do direito e professor da Universidade e Oxford – exposta ao
diálogo dialético com a própria práxis das altas cortes dos dois lados anglo-saxões do Atlântico:
In most American jurisdictions, and now in England also, the higher courts not infrequently reject established rules. Common law rules – those developed by earlier court decisions – are sometimes overruled directly, and sometimes radically altered by further developments. Statutory rules are subject to interpretation and reinterpretation, sometimes even when the result is not to carry out what is called the ‘legislative intent’. If courts had discretion to change established rules, then these rules would not be binding upon them, and so would not be law on the positivists’ model…
When, then, is a judge permitted to change an existing rule of law? Principles figure in the answer […]
(DWORKIN, 1978, p.37)71
69 Tradução livre do autor: “Os positivistas [...] dizem que um juiz não tem discricionariedade quando há uma regra clara e estabelecida. [...] Positivistas sustentam que quando um caso não é coberto por uma regra clara, o juiz deve exercer sua discricionariedade para decidir o dito caso, o que acaba por se constituir em um novo fragmento de legislação”.
70 “... any judge who proposes to change existing doctrine must take into account some of important standards that argue against departures from established doctrine, and these standards are also for the most part principles. They include the doctrine of “legislative supremacy”, a set of principles that require the courts to pay a qualified deference to the acts of the legislature. They also include the doctrine of precedent, another set of principles reflecting the equities and efficiencies of consistency. The doctrine of legislative supremacy and precedent incline toward status quo¸ each within its sphere, but they do not command it.” (DWORKIN, 1978, p.37-38)
Tradução do autor: “[…] qualquer juiz que propuser mudar doutrina preexistente, deve levar em conta alguns importantes referenciais que se opõem ao afastamento da doutrina estabelecida e tais referenciais são também, em sua maioria, princípios. Eles incluem a doutrina da “supremacia legislativa”, um conjunto de princípios que requerem que as cortes confiram deferência qualificada aos atos do legislativo. Eles também incluem a doutrina do precedente, um outro conjunto de princípios que refletem a equidade e eficiência decorrentes da consistência. As doutrinas da supremacia legislativa e do precedente se inclinam na direção do status quo, cada uma em sua esfera, mas não o determinam mandatoriamente”.
71 Tradução livre do autor: “Na maior parte das jurisdições norte-americanas, e atualmente também nas inglesas, a altas cortes rejeitam regras estabelecidas sem infrequência. Regras da Common Law – aquelas
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Para Dworkin a discricionariedade exercida pelas altas cortes no seio da tradição
Common Law é lastreada em uma exegese de princípios, a partir da qual são geradas novas
regras, fenômeno observado principalmente nos chamados hard cases:
After the case is decided, we may say that the case stands for a particular rule [...] But the rule does not exist before the case is decided; the court cites principles as its justification for adopting and applying a new rule.
(DWORKIN, 1978, p.28)72
Alexy parte de um contexto jurídico informado por uma constituição pós Weimar, na
qual os direitos fundamentais positivados se revestem de proporções e abrangência
significativamente avantajadas, extrapolando o papel tradicional de instrumentos reguladores
da relação Estado-cidadão, que marca os diplomas jurídicos do liberalismo europeu-continental
clássico. Neste contexto, os direitos fundamentais constitucionais galgam uma abrangência que
atinge as relações entre cidadãos, configurando-se, no dizer de Böckenforde, em uma
“’ordenação fundamental jurídica da coletividade’, que ‘já contém o ordenamento jurídico no
total [...] – no plano das normas-princípios com tendência de optimização’”
73. Tratar-se-ia,
neste caso, de uma sobreconstitucionalização do sistema jurídico, no qual o tribunal
constitucional teria um papel hipertrofiado em relação aos outros poderes. Diante desta
perspectiva Forsthoff chega às raias do catastrofismo aludindo a uma “transição do Estado
legislativo parlamentar para um Estado judiciário constitucional”.
74Neste sentido, Alexy
conceitua como uma ordem-fundamento, no sentido quantitativo, uma constituição densamente
exaustiva e que nada faculta ao seu intérprete ou ao legislador. Ainda que consideremos a
ordem-fundamento um tipo provavelmente hipotético, as carregadas tintas dos críticos
germânicos servem como motivador de reflexão sobre o nosso sistema constitucional, de viés
marcadamente dirigente e abundante em normativos.
desenvolvidas por decisões anteriores de tribunais – são algumas vezes diretamente derrogadas, e, muitas vezes radicalmente alteradas por desenvolvimentos posteriores. Regras legisladas, são submetidas a interpretação e reinterpretação, mesmo quando, muitas vezes, o resultado não foi fruto de uma ‘intenção legiferante’, como se costuma dizer. Se as cortes têm discricionariedade para modificar regras estabelecidas, então tais regras não são vinculantes sobre as cortes, não se constituindo em lei no modelo preconizado pelos positivistas. [...] Quando é permitido, a um juiz, mudar uma regra jurídica existente? Princípios têm um lugar na resposta...”.
72 Tradução livre do autor: “Depois que o caso é decidido, podemos dizer que o caso se subsume a uma regra em particular. [...] Mas a regra não existe antes do caso ser decidido; a corte cita princípios como justificativa para adotar e aplicar uma nova regra”.
73 Cf. (ALEXY, 2015b, p.75) 74 Cf. (ALEXY, 2015, p.578)
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Que latitudes restariam ao judiciário e ao legislativo diante de uma estrutura
constitucional de tal sorte exauriente?
Alexy traz à baila a conceituação de constituição como ordem-moldura quando esta
limita o papel do legislador (e do intérprete) por intermédio de dispositivos ordinatórios e
proibitórios, ambos de natureza obrigatória – a moldura – e deixa ao seu alvedrio certas
faculdades, a saber o que não é explicitamente ordenado ou vedado – o espaço para a tela do
quadro.
75Alexy entende ser possível coexistirem os dois tipos de ordem em uma mesma
constituição, o que parece ser o caso na Magna Carta pátria:
Uma constituição é uma ordem-fundamento em sentido qualitativo ou substancial se por meio dela são decididas questões que sejam fundamentais para a comunidade. [...] Uma constituição pode decidir questões fundamentais, e, nesse sentido, ser uma ordem-fundamento, e, mesmo assim, deixar muitas questões em aberto, e, nesse sentido, ser uma
ordem-moldura. De acordo com a teoria dos princípios, uma boa constituição deve conciliar as duas coisas.
(ALEXY, 2015, p.584) (Grifamos)
Alexy informa que o Tribunal Constitucional Federal alemão emprega sobejamente o
conceito de espaço em dicções variadas, tais como, “espaço de estimativa, de valoração e de
configuração”, “espaço de apreciação”, “espaço de atuação” e “espaço de decisão”
76. Não
surpreende, portanto, a similitude entre os conceitos de moldura e espaço, com o “donut” de
Dworkin. Nos dois lados do Atlântico os autores referem-se a espaços de discricionariedade, os
quais, no contexto de um sistema constitucional têm natureza estrutural, a saber, as faculdades
deixadas pelo constituinte para o legislador, no interior da moldura. Alexy identifica três tipos
de discricionariedade no âmbito do espaço de discricionariedade estrutural. Quando o
constituinte deixa, em relação a um direito fundamental, uma autorização, condicional ou
incondicional de intervenção, se está diante de uma discricionariedade para definir objetivos.
Quando os direitos fundamentais proíbem intervenções e ordenam ação positiva, notadamente,
na dimensão da proteção, caracteriza-se uma discricionariedade para definir meios para
realizar a ação ordenada. Por fim, temos o espaço de discricionariedade para sopesar, que
decorre diretamente da teoria dos princípios e caracterização destes como mandamentos de
otimização. Segundo o autor, a busca pela otimização tem como condições de contorno as
possibilidades jurídicas e fáticas subjacentes e implica o emprego da “máxima da
75 Cf. (ALEXY, 2015, p.582) e (ALEXY, 2015b, p.77) 76 Cf. (ALEXY, 2015b, p.78)
Mackenzie - Dissertação - SPGallindo v155 São Paulo, 2016 70/226
proporcionalidade com suas três máximas parciais – as máximas da adequação, da necessidade
e da proporcionalidade em sentido estrito”,
77sendo esta última bem traduzida pela lei de colisão
enunciada por Alexy.
Depreende-se, da teoria de Alexy, que um sistema constitucional tipo ordem-moldura,
por ter sua estrutura normativa permeada de princípios, lado a lado com normas-regra, tem um
alto grau de plasticidade estrutural. Princípios não deixam de ser dispositivos mandamentais.
Todavia, são aplicados in casu na medida das possibilidades jurídicas e fáticas. Assim, se
consideramos que princípios são parte da moldura, decorre que esta não é intrinsecamente
rígida, admitindo ser moldada pelo resultado do sopesamento dos princípios. Resta evidente
que, tal plasticidade não é ilimitada, uma vez que a técnica de sopesamento (como já
observamos) implica também um exercício mútua-limitação ou mútua-mitigação. O que se quer
dizer é que os princípios, e bem assim as colisões a que são submetidos, norteiam tanto a
atividade judicante quanto a legiferante, definindo contornos a partir dos quais emergem novas
regras, seja em sede de uma sentença interpartes, ou uma sentença de repercussão geral, ou
ainda em novo diploma legal ou infralegal. Esta visão um tanto mais formal, no âmbito
metodológico, porém maleável por ser assentada em ponderação, consubstancia a coerência
lógica de Kelsen e a harmonia de Bandeira de Mello, aterrissando-as das alturas aspiracionais
para o terreno operativo judicante e legislativo. Neste sentido, o Marco Civil da Internet, sendo
um diploma permeado de princípios, confere um amplo espaço de discricionariedade estrutural,
a ser explorado, tanto na atividade jurisdicional, que ora vemos em estágio infante, quanto na
produção infralegal, conforme inclusive reclamada pelo próprio diploma.
Como se não bastasse a complexidade do espaço de discricionariedade estrutural, Alexy
introduz ainda um espaço de discricionariedade epistêmica, a saber:
Uma discricionariedade epistêmica decorre não dos limites daquilo que a constituição obriga, ou proíbe, nas dos limites da possibilidade de se reconhecer o que a constituição [...] faculta. De uma forma exagerada, é possível afirmar que a discricionariedade epistêmica decorre dos limites da capacidade de se conhecer os limites da constituição. Os limites dessa capacidade podem ser tanto limites da cognição empírica quanto limites da cognição normativa. Saber se a constituição admite tais espécies de discricionariedade epistêmica é algo que depende dos princípios formais [...] (ALEXY, 2015, p.583)
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