• Nenhum resultado encontrado

3.1 ORDEM ECONÔMICA E ISONOMIA TRIBUTÁRIA

3.1.3 Neutralidade tributária?

A interrogação não é por acaso, pois ela reflete a dúvida suscitada ao observar a neutralidade tributária como um aspecto importante e diretamente influenciável quando tratamos a relação entre extrafiscalidade e isonomia tributária. Essa questão é debatida em razão da conexão da influência que a tributação pode exercer na livre concorrência a partir do dever estatal de neutralidade tributária com vistas a garantir o equilíbrio de mercado. Desse modo, o desenvolvimento deste ponto irá demonstrar a importância do princípio da livre concorrência nesse contexto a fim de enfatizar que a interpretação jurídica, nessas situações, deve ser sistemática, racional, em virtude das finalidades, objetivos, fundamentos, princípios e normas constitucionais que podem relativizar o princípio da neutralidade na tributação. Um tributo é geralmente considerado neutro quando não interfere na economia, no entanto quando

visto sob a ótica da livre concorrência tem por finalidade garantir um ambiente concorrencial em igualdade de condições que fatalmente irá necessitar da atuação estatal para se atingir essa finalidade. Dessa forma, por exemplo, verifica-se a neutralidade tributária quando se submete produtos comparativamente semelhantes à mesma carga fiscal.

A polêmica doutrinária que surge a respeito da neutralidade ou não-neutralidade fiscal pode ser compreendida através de sua origem. A origem da neutralidade tributária fundamenta-se na tese liberal clássica em que o tributo era visto como um mal necessário e por isso não deveria intervir na economia para que os agentes econômicos tivessem maior liberdade de atuar no mercado sem a menor participação do Estado neste processo. Com a crise do liberalismo, a atuação estatal voltou a ser ressaltada a fim de controlar as relações econômicas em prol dos direitos sociais do Estado Social o que afetou a neutralidade da tributação em razão do uso do tributo para realização de políticas fiscais. Dessa forma, as políticas públicas passam a almejar fins econômicos e sociais como a distribuição de riqueza, o desenvolvimento e a estabilização econômica de forma que a neutralidade fiscal se apresente como um fator de equilíbrio da economia fazendo com que a tributação afete o mínimo possível uma economia imperfeita. Com base nesses pressupostos, a política fiscal deve buscar três objetivos, conforme afirma Elali: “(i) financiar as despesas públicas; (ii) controlar a economia e (iii) organizar o comportamento dos agentes econômicos.” 258

Humberto Ávila ao analisar os fundamentos jurídicos que propiciam a individualização em matéria tributária259 como regra a ser observada na realização da igualdade, apresenta três acepções da neutralidade para investigar sua interferência sobre a

258 ELALI, André. Algumas considerações sobre neutralidade e não-discriminação em matéria tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, BRITO, Edvaldo Pereira de. Direito tributário: princípios e normas gerais. Coleção doutrinas essenciais, v. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 30.

259

O uso da padronização, tendo em vista que a regra é a individualização, pode ser descartado se observados os seguintes critérios: necessidade, na medida em que se utiliza o padrão fiscal porque na prática torna-se impossível fazer de outro modo; generalidade, pois o padrão médio deve estar relacionado com os elementos concretos manifestados pela média das operações efetivamente ocorridas, exceto algumas discrepâncias entre o valor real e o presumido; compatibilidade com a igualdade particular antes e depois da formação do padrão em razão do dever de vinculação com a realidade e do poder de controle do contribuinte; neutralidade da tributação enquanto manifestação da igualdade na sua conexão com o princípio da livre concorrência no aspecto negativo da atuação estatal; não-excessividade no sentido de que a generalização não pode ser excessiva a ponto de ferir qualquer direito fundamental do contribuinte; ajustabilidade da generalização na medida em que ela só será considerada válida se levar em consideração as diferenças entre os contribuintes provocando efeitos desiguais de mínima extensão, alcance e intensidade; Desse modo, é possível estruturar a superação do padrão em dois eixos, o formal e o substancial. O eixo formal faz referência aos riscos da superação na utilização do padrão legal, ou seja, quanto mais a superação colocar em cheque a justificação da generalização como solução eficiente, mais resistente deve ser o padrão em apreço. Já o eixo substancial diz respeito à relação do padrão com os princípios substanciais que justificam a sua utilização, observadas duas regras, a primeira diz que quanto mais importante o princípio subjacente ao padrão, menor sua resistência à superação e a segunda regra diz que quanto mais importante for o bem jurídico valorizado pelo padrão, menos deverá ser sua resistência à superação. In: ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 91-109.

utilização dos padrões fiscais enquanto critério geral de tributação e que podem ser úteis para a compreensão da neutralidade fiscal. A primeira delas é a neutralidade vista como proibição de os entes federativos exercerem algum tipo de influência no exercício das atividades econômicas dos contribuintes. Tal abstenção é incompatível com ordenamento jurídico, pois tanto os tributos com finalidade fiscal quanto extrafiscal influenciam o comportamento do contribuinte; A segunda é a neutralidade vista como proibição de os entes federativos insurgirem de modo arbitrário no exercício das atividades econômicas dos contribuintes, exercendo, portanto, uma influência imotivada. Ainda que seja possível atribuir um sentido normativo a tal proibição, compatível com o ordenamento jurídico, os limites dessa proibição já são fornecidos pela própria igualdade geral. A terceira acepção afirma a neutralidade no sentido de proibição de os entes federados influenciarem excessivamente no exercício das atividades econômicas dos contribuintes. Da mesma forma que a segunda acepção, ainda que seu conteúdo normativo seja conciliável com o ordenamento, seus limites já são conhecidos pela proibição de excesso. Segundo o autor a melhor neutralidade é a da segunda acepção por manifestar a igualdade na sua conexão com a liberdade de concorrência no aspecto negativo da atuação estatal, decorrente dos efeitos do princípio da livre concorrência. 260

Da mesma forma se posiciona Schoueri ao lecionar que a neutralidade da tributação deve ser afastada na medida em que normas tributárias indutoras podem servir de instrumento para a intervenção do Estado sobre o Domínio Econômico. 261 Assim, para que o Estado consiga manter o equilíbrio econômico, é imprescindível que seus atos políticos busquem a neutralidade, exceto quando se tratar de política fiscal que se mostre fundamentada em corrigir desequilíbrios de mercado. A neutralidade tributária concorrencial262 deve ser efetivada de modo que o tributo não se mostre um fator de desequilíbrio nesse sistema e sim um fator regulador das desigualdades. A extrafiscalidade tributária é uma modalidade aperfeiçoadora do ideal de justiça e propulsora do desenvolvimento econômico que necessita desse respaldo material para se firmar como meio de equilíbrio das desigualdades, especialmente na esfera econômica.

Nesse sentido, a neutralidade tributária surge como limite de atuação do Estado na eficiência econômica, pois o melhor tributo será aquele que não interfere no ciclo econômico,

260 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. P.97-99. 261

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. P. 15-29.

no mercado, nem na concorrência263, exceto nas hipóteses previstas na Constituição que visam atingir outras finalidades sociais. Nesse sentido, o termo neutralidade nos remete a neutralidade de um sujeito em relação a um objeto para atingir uma finalidade a partir de um critério verificador. Por isso, o fundamento do dever de neutralidade tributária reside imediatamente na livre concorrência, em termos de igualdade de competição, e mediatamente na livre iniciativa, enquanto espaço em que se insere a livre concorrência. A concorrência, portanto, deve ser estabelecida em razão da competência, qualidade e eficiência dos competidores e não por uma carga tributária diferenciada que implique em vantagens desproporcionais e injustificadas. 264

Assim, para observar a neutralidade nesse contexto, o Estado pode fazer uso de alguns meios jurídicos que lhe são disponibilizados, quais sejam: o poder de tributar e o correspondente poder de desonerar a exação, na forma prevista pelos artigos 153 a 156 da Constituição; a possibilidade de se fazer cumprirem as leis, bem como o direito de recorrer ao Poder Judiciário, como assegura o art. 5º, XXXV, da Constituição; a criação de critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios na livre concorrência, conforme o art. 146-A da Constituição; a intervenção na economia, como agente normativo e regulador, a fim de promover os princípios constitucionais e reprimir o abuso do poder econômico, na forma dos artigos 173, §4º, e 174 da Constituição.

Destaca-se, ainda, a inserção do art. 146-A265 da Constituição Federal como um dispositivo consagrador da neutralidade e da proteção da livre concorrência em razão de ter previsto a fixação por lei de critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios concorrenciais, como a guerra fiscal e o dumping internacional. Nesse sentido, a norma prevista no artigo em comento comporta-se tanto como regra de competência ao autorizar o estabelecimento de critérios especiais de tributação, quanto um princípio decorrente da neutralidade tributária na medida em que limita a atividade estatal em matéria tributária causar distúrbios concorrenciais. Nota-se que tal dispositivo foi recepcionado no ordenamento

263 Esclarece Humberto Ávila que “Se neutra é a tributação que não pode provocar efeitos negativos de determinado tipo relativamente aos bens jurídicos relacionados ao exercício da livre concorrência, é preciso saber, então, quais são esses bens. Dentre os vários aspectos que poderiam ser aqui analisados, pode-se afirmar que é essencial, para o livre exercício da concorrência, o livre exercício da autonomia privada. Essa, por sua vez, envolve a liberdade de tomar decisões e de competir num mercado livre, especialmente pelo poder de fixar uma política ou estratégia comercial, intimamente relacionada com a livre fixação de preços (freie Preisbildung).” In: ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 100.

264 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre concorrência e o dever de neutralidade tributária. 143f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. P. 65-71.

265

Artigo inserido pela Emenda Constitucional n° 42/2003. Art. 146-A da CF: Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.

para fortalecer o princípio da neutralidade em matéria concorrencial enquanto pressuposto para a existência de um mercado eficiente. 266

Dessa maneira, a neutralidade tributária pode ser entendida, em primeiro plano, como um dever negativo ou de omissão de intervenção estatal na concorrência, e, em segundo plano, como um dever positivo ou de ação para prevenir ou restaurar a igualdade de condições competitivas no mercado quando a concorrência encontra-se ameaçada. A concessão de benefícios fiscais, a substituição tributária de ICMS, as imunidades, a sonegação fiscal, a informalidade e a inadimplência contumaz são formas de afetar a livre concorrência e o dever de neutralidade tributária que deve ser cuidadosamente estudado e analisado, em última instância, pelo Poder Judiciário que tem a incumbência de corrigir irregularidades e desvios de finalidade. Por isso, a utilização do art. 146-A para a criação de lei complementar que discipline e combata esses abusos só será positiva na medida em que não inviabilize o funcionamento das empresas ou as obrigue ao pagamento de dívidas tributárias. A integração econômica, que tem como pressuposto a eliminação de barreiras fiscais, também é inserida, nesse contexto, na medida em que o tratamento fiscal adotado observe a neutralidade a fim de manter a igualdade de condições e livre circulação de produtos nacionais e importados sem interferir na concorrência. 267

Defende-se, portanto, a existência de um dever estatal de impor ou exonerar a carga tributária desde que essa atuação não cause desequilíbrios concorrenciais, tendo em vista a observância do princípio da neutralidade da tributação nos moldes do pensamento do Estado Social em que a neutralidade deixa de ser absoluta e passa a ser relativa a fim de realizar os objetivos visados pela política fiscal de maneira a afetar o mínimo possível o comportamento dos agentes econômicos. No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da neutralidade é a regra geral e corolário do princípio da isonomia no sentido de não-intervenção, ainda que de forma restrita, visto que não há imposto completamente neutro. Na ordem internacional, o princípio da não-discriminação se apresenta como uma variação da neutralidade e da isonomia ao evitar que os tratados fiscais e de livre comércio sejam realizados aplicando-se distinções tributárias desproporcionais e arbitrárias, protegendo assim a liberdade e igualdade econômicas ao impedir atos que prejudiquem a concorrência internacional a partir de dois aspectos fundamentais: “(i) não-discriminação com o tratamento da nação mais favorecida, impondo aos contratantes o direito de receber o mesmo tratamento dispensado a outros países;

266 BRAZUNA, José Luis Ribeiro. Defesa da Concorrência e Tributação – à luz do Artigo 146-A da

Constituição. São Paulo: Quartier Latin, 2009. P. 110.

267 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre concorrência e o dever de neutralidade tributária. 143f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. P. 73-111.

e (ii) não-discriminação como tratamento nacional, isto é, situação na qual os produtos importados devem ser tratados da mesma forma dos nacionais.”. 268

É preciso ainda, dentro desse contexto, verificar os reflexos econômicos da neutralidade da tributação, pois o Estado ao implementar políticas públicas deve gerar o mínimo de efeitos negativos para a sociedade, bem como sua influência no comportamento dos agentes econômicos não pode causar grandes variações no sistema de formação de preços. Nesse sentido, os efeitos gerais da tributação podem ser analisados a partir da exação sobre a renda, capital, consumo e folha de pagamento. Os efeitos sobre a renda estão relacionados à oferta de mão-de-obra, pois a diminuição da renda acarreta o aumento da oferta de força de trabalho que reduz os salários e estimula atividades informais não tributadas. Logo, a tributação deve agir no sentido contrário de modo a influenciar o mínimo possível a oferta de trabalho, desestimular o mercado informal, reduzindo minimamente a renda pessoal. Os efeitos da tributação sobre o capital são verificados quando ela interfere na formação de preços e em decorrência disso estimula a poupança e de outro lado torna o consumo mais caro o que reduz a poupança já realizada, assim o ideal é que a tributação incentive a poupança sem provocar retiradas posteriores em virtude do aumento de preços. Os efeitos sobre o consumo dependem da elasticidade econômica, ou seja, quando a tributação atua diretamente nas escolhas econômicas e mudanças de comportamento e como isso pode afetar o preço final da mercadoria ofertada ao consumidor. Por fim, os efeitos gerais da tributação sobre a folha de pagamento ocorrem também em razão da elasticidade no sentido da flexibilidade em encontrar soluções para evitar oscilações no mercado de trabalho evitando o desemprego e evasão de profissionais qualificados. 269

Desse modo, entendemos que a neutralidade tributária, assim como a eficácia na realização da igualdade deve ser coerente com a Constituição. Nota-se, então, a existência de uma prevalência relativa da neutralidade assim como se observa na igualdade em razão das interpretações possíveis e das finalidades que se pretende alcançar. A isonomia, enquanto princípio norteador da neutralidade tributária e norma expressa na Constituição denota uma mais valia que pode ser interpretada como um princípio superior aos demais e que deve prevalecer quando confrontado com outros, ou essa superioridade pode estar atrelada à funcionalidade da igualdade quando operacionalmente comparada com outros princípios.

268 ELALI, André. Algumas considerações sobre neutralidade e não-discriminação em matéria de tributação. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, BRITO, Edvaldo Pereira de. Direito tributário: princípios e normas

gerais. Coleção doutrinas essenciais, v. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 25-38.

269 CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. P. 103-106.

Essas colocações corroboram que a igualdade está diretamente relacionada com os conceitos de hierarquia e coerência para compreender tanto a sua superioridade quanto a sua inferioridade assim como deverá ser feita a sua aplicação, principalmente quando há a sua restrição nos casos em que se observam justificativas em finalidades extrafiscais. A prevalência relativa da igualdade leva ao entendimento de que existe uma presunção em favor da igualdade, especialmente da igualdade particular na medida em que qualquer afastamento da igualdade só será válido se existirem razões justificadoras de cunho constitucional. 270

A neutralidade tributária, portanto, é mais um limite associado à isonomia em termos de regulação econômica. A interrogação colocada no título deste texto já não tem mais razão para coexistir diante do que foi exposto, pois o que se evidencia é que na prática não há imposto completamente neutro, na medida em que o ônus de tributário por si só já afeta os agentes econômicos em suas decisões, bem como é impossível conceber uma omissão total por parte do Estado. Neutralidade e não-discriminação são corolários da isonomia uma vez que obriga o Estado a tratar igualmente agentes econômicos em igualdade de condições, sendo que a primeira diz respeito à noção de não intervir e a segunda equivale a tratar igualmente sem privilégios desproporcionais. Estes princípios visam a proteger um mercado livre, no entanto é preciso que existir uma atuação estatal mínima e positiva a fim de proteger a livre concorrência respeitando a igualdade com a adoção de critérios jurídicos justificáveis e da sua relação com as finalidades constitucionais.