• Nenhum resultado encontrado

2. LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: TUDO JUNTO, MISTURADO OU

2.2 No meu entender letramento é

A incerteza ou o pensamento equivocado do que vem a ser um aluno letrado, muitas

vezes subestima sua capacidade cognitiva, limitando-o a atividades pedagógicas que lhe

ofereçam apenas conhecimento de mundo. Assim, um aluno que poderia ser capaz de produzir,

ler e interpretar diversos gêneros textuais fica restrito apenas a elaborar narrativas banais, como

aquelas pelas quais cada um de nós passou um dia, ou seja, no primeiro dia de aula ter que

elaborar um relato de como foram as férias.

Não que essa atividade seja condenada ou inútil, mas antes, acreditamos que quando

contextualizada e proposta utilizando estratégias que motivem o aluno a fazê-la, pode se tornar,

uma boa oportunidade de produção textual e reflexão sobre a estrutura da tipologia textual e

principalmente a função do texto.

O conceito de letramento abordado ao longo deste estudo e no qual iremos nos

aprofundar, propõe um rompimento com o processo de simplificação que este vem sofrendo,

bem como sua diversificação de sentidos de acordo com as várias áreas de conhecimento que o

adotam. Por termos uma língua viva, seus sentidos vão sendo construídos em meio aos campos

sociais nos quais circulam esses novos significados. Sendo assim, o conceito de letramento

atribuído a esta construção de significados acaba por não estabelecer relação direta com o

conceito de alfabetização.

Para nós, letramento está diretamente ligado às práticas sociais, desde que estas estejam

diretamente relacionadas também à capacidade de ler, interpretar e produzir textos de acordo

com o ambiente em que cada autor circule. Ou seja, ter a capacidade de dominar a linguagem e

a estrutura presentes nos textos de vários ambientes e de acordo com suas funções sociais, o

que torna o termo complementar ao conceito de alfabetização (MENDONÇA, 2007).

Nesse sentido, destacamos alguns pontos que podem vir a dificultar a compreensão do

conceito de letramento pelos professores. A saber: a crença na oposição entre os conceitos de

letramento e alfabetização que na verdade são indissociáveis; a existência, relacionada à

modernidade de diversos tipos de letramento e finalmente a crença de que mesmo sendo

analfabeto, um aluno pode ser letrado, sendo esse último para nós o mais preocupante.

A preocupação com o letramento em Língua Portuguesa para alunos surdos, está

diretamente relacionada ao ensino da língua oficial do país em sua modalidade escrita,

utilizando para tanto, estratégias de ensino de segunda língua, já que para este público alvo a

Língua Portuguesa é sua segunda língua (L2), adquirida de forma instrumental e sistemática.

Dessa forma, enfatizamos que o conceito de letramento a que iremos nos deter, está

58

originalmente relacionado ao conceito de literacy, ou seja, “estado ou condição que assume

aquele que aprende a ler e escrever

21

” (SOARES, 1998, p. 17).

Iniciamos nossa explanação buscando em Geraldi (2014) base para nossas afirmações

acerca das consequências relacionadas à oposição entre os conceitos de letramento e

alfabetização, ao qual nos referimos acima, e que pode ser considerado senso comum entre uma

parcela de profissionais que atuam na alfabetização ou mesmo no ensino de Língua Portuguesa

posterior a esta etapa. Geraldi destaca o cuidado que devemos ter para não identificarmos o

letramento como uma teoria moderna que viria a se sobrepor a alfabetização, assim como as

suas práticas, de forma a produzir estratégias que insiram nossos alunos no universo da leitura

e escrita.

Anteriormente vimos que a crença equivocada no que viria a ser o construtivismo e na

sua superioridade em relação a métodos de alfabetização anteriormente utilizados levou

professores à desconstrução de “velhas” práticas, em direção a algo que não dominavam. A

tentativa de utilização de estratégias mais modernas de alfabetização contribuiu para aumentar

ainda mais as dificuldades presentes no processo de aprendizagem, devido à falta de uma

metodologia específica. Ou seja, tudo ficava muito solto e esperava-se que o aluno, sem

qualquer interferência do professor, apresentasse, a qualquer momento, domínio das práticas de

leitura e escrita.

No que se refere ao letramento, não podemos cometer o mesmo equívoco como em um

ciclo vicioso, que se inicia a cada proposta ou novo termo que surge relacionado à alfabetização.

Antes, precisamos ter a clareza de que toda nova proposta de alfabetização pode ou não

acrescentar algo às práticas já utilizadas e que muitos passarão como nada mais que uma espécie

de “modismo”. Como foi o caso dos ciclos de alfabetização, duramente criticados por

professores.

Os ciclos de alfabetização foram criados pelo Ministério da Educação (MEC) entre 2004

e 2006, tendo em vista a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos em todo o país, em

decorrência da Lei 11.274, de 06/02/2006. A organização temporal instituída pelos ciclos foi

orientada pelas necessidades de aprendizagem dos estudantes e, consequentemente, o tempo

escolar passou a ser organizado em fluxos mais flexíveis, mais longos.

Dessa forma, o ciclo de alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental é

compreendido como um tempo sequencial e ininterrupto de três anos, por se compreender, a

complexidade da alfabetização, na qual raramente as crianças conseguem construir todos os

59

saberes fundamentais para o domínio da leitura e da escrita alfabética em decorrência de apenas

um ano letivo.

De acordo com as diretrizes curriculares nacionais

22

, ainda que o sistema de ensino ou

a escola façam a opção pelo regime seriado, devem considerar os três anos iniciais do ensino

fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo sequencial, portanto, não passível de

interrupção, salvo em casos de evasão ou mesmo de frequência inferior à prevista por lei.

A esse respeito, Perrenoud (2004) destaca que a organização em ciclos se constituiu em

uma tentativa de combater o fracasso escolar, de forma a assegurar que de fato ocorresse a

aprendizagem dos alunos. No entanto, a utilização da progressão automática como estratégia

de ampliar o tempo de aprendizagem dos alunos – que é subjetivo – através da construção de

uma escola inovadora, fundamentada na aprendizagem e na tentativa de rompimento com as

práticas simplórias de classificação e reprovação de alunos, acabou por fracassar.

A defesa de que, em prol da diversidade presente em nossas salas de aula seria

necessáriorespeitar o tempo de aprendizagem dos alunos, para que estes concluíssem o temido

processo de alfabetização, levou muitos à concepção de que a retenção seria fragmentação do

processo de ensino por meio da reprovação. Todavia, o resultado esperado não foi atingido, o

que fez com que várias redes de ensino abandonassem a organização da alfabetização em ciclos.

Para que possamos de fato compreender o conceito de letramento, apresentaremos

brevemente a origem, assim como o contexto primário de sua utilização, bem como

realizaremos uma sucinta abordagem, acerca de como o termo passou a ser amplamente

difundido e adotado no Brasil.

Dessa forma, nos remetemos primeiramente a Soares (2004, p.06) que visa apresentar

a “concepção do fenômeno do letramento”. A autora discorre que o termo surgiu da ânsia de

caracterizar e denominar as diferentes práticas sociais, relacionadas à leitura e à escrita mais

desenvolvidas e profundas, se comparadas ao ler e ao escrever, consequência do sistema de

aprendizagem da escrita utilizada até então. É com essa finalidade que, em meados dos anos

90, se dá paralelamente em vários países, e também no Brasil, a invenção do termo letramento.

Soares (2004, p. 06) ressalta a diferença crucial, e a ênfase apresentada nas redações

abarcando o tema letramento, em países como Estados Unidos e França, que estabelecem as

“relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e a aprendizagem do sistema de

22 Presente na Resolução n◦ - 7, de 14 de dezembro de 2010 do Conselho Nacional de Educação (CNE). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=7251-resolucao-7-ef-1&category_slug=dezembro-2010-pdf&Itemid=30192

60

escrita, ou seja, entre o conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de

alfabetização (alphabétisation, Reading instruction, beginning literacy)” (grifo nosso).

Em um movimento contrário aos países citados, no Brasil as discussões iniciaram tendo

como foco apenas as habilidades de leitura e escrita, vinculadas à aprendizagem inicial e não à

utilização da leitura e da escrita no âmbito social. Tal ocorrência nos leva a crer que isso se

deva ao conceito de alfabetização vinculado e utilizado na época em questão. Ou seja, este

estaria pautado na decodificação dos signos linguísticos de forma descontextualizada e

dissociada das práticas sociais. Dessa forma, o Brasil acaba por se distanciar das questões

relacionadas ao que a autora nomeia de – problemas de letramento – mantendo o foco na

alfabetização que, como vimos anteriormente, tinha seu conceito confundido com o de

letramento.

O conceito de alfabetização utilizado na produção acadêmica, nos exames nacionais e

até mesmo vinculado pela mídia, foi aos poucos se aproximando do conceito de letramento,

mesmo que de forma ainda incompreendida. Soares (1998) sugere ainda que a proximidade,

mesmo com o intuito de estabelecer diferenças entre os dois conceitos (letramento e

alfabetização), tem induzido ao entendimento equivocado de ambos os fenômenos, provocando

confusão e a ideia de que ambos possam se fundir em um único conceito. A autora afirma que

é inegável a existência da relação entre alfabetização e letramento, mas que, sobretudo, há que

se preservar a especificidade de cada fenômeno.

No Brasil a concepção de letramento se deu de forma inversa a de outros países que

paralelamente abordavam o tema, sendo que estes tratavam os dois processos – alfabetização e

letramento – como distintos e independentes, ao passo que no Brasil os debates sobre letramento

nunca se distanciaram das discussões sobre alfabetização, ainda que fosse imprescindível este

estranhamento (SOARES, 2004).

Além da falta de distanciamento entre os conceitos e práticas de alfabetização e

letramento, Geraldi (2014) destaca a existência do risco de acabarmos opondo letramento e

alfabetização, como se o primeiro se tratasse de uma nova teoria com intuito de substituir a

segunda, bem como suas “velhas” práticas, de forma a produzir estratégias diferenciadas,

visando à introdução dos alunos no universo da escrita.

De acordo com o autor, o conceito de letramento é difícil de ser caracterizado, pois

“remete tanto a um estado a que acede um sujeito quanto às habilidades deste mesmo sujeito de

movimentar-se num mundo povoado de textos, tanto como leitor destes quanto como autor de

novos textos a enriquecer o patrimônio de enunciados concretos” (p. 26), estando estes

acessíveis em inúmeros ambientes em que ocorre a interlocução social, ou seja, espaços nos

61

quais os indivíduos precisam se expressar, de acordo com a estrutura linguística utilizada.

Sendo assim, as práticas de letramento não deveriam ser consideradas como responsáveis pela

introdução dos alunos no universo da escrita e que sem qualquer esforço, pudessem se tornar

sujeitos sociais, tendo acesso aos bens culturais através do letramento.

Um dos exemplos citados pelo autor se refere ao fato de que os livros didáticos,

designados às classes de alfabetização, têm introduzido o termo letramento em seus títulos,

estando esses completamente dissociados do conceito de alfabetização. O mesmo ocorre no que

se refere à aprovação de programas governamentais designados à formação continuada de

professores que atuam nas séries iniciais do ensino fundamental. Segundo o autor, tais cursos

são chamados de “Pró-letramento” (GERALDI, 2014). Ainda no que se refere aos textos e

pesquisas acadêmicas, que abordam o tema letramento, estes igualmente se limitam a descrever

cenários que fazem parte da etapa de alfabetização.

O processo de letramento ocorre durante toda a vida dos indivíduos, e depende do meio

social no qual estejam inseridos. No entanto, independente do meio, sempre estarão expostos a

uma variedade de gêneros textuais, os quais precisarão ler, e até produzi-los, se tornando assim

leitores dos textos que ali circulam, e também capazes de reproduzir, sob a forma de texto, sua

própria voz.

Outro fator que amplia a complexidade está diretamente relacionado à velocidade com

que o letramento foi disseminado e adotado por diferentes áreas. Ou seja, é compreendido como

o início da aquisição de inúmeros conhecimentos aos quais está vinculado. Dessa forma,

existiria o letramento físico, o letramento químico, o letramento musical. Haveria também os

letramentos referentes as áreas técnicas destinadas à formação de especialistas, como o

letramento mecânico, o digital e o jurídico, por exemplo.

Geraldi (2014) nos fornece subsídio para a definição do conceito de letramento que

abordaremos neste estudo, ou seja, o letramento acadêmico, pautado no desenvolvimento de

habilidades linguísticas e estruturais da língua portuguesa, presentes nos mais diversos gêneros

textuais (cartas, e-mails, narrativas, dissertações, contos, poesias e etc.), que favoreçam o

domínio dos alunos durante as atividades de produção textual.

Pautados neste conceito de letramento acadêmico, propomo-nos a buscar entender e

disseminar conhecimentos acerca do que vem a ser o letramento nas escolas pesquisadas, o que

por sua vez, diverge do conceito de letramento proposto por Soares (1998, p. 24), quando a

referida autora afirma “que um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto,

mas ser, de certa forma, letrado”.

62

O autor ameniza o debate, afirmando que em uma sociedade complexa, circula uma

grande variedade de gêneros textuais. Todos os sujeitos podem ser considerados “letrados e

iletrados ao mesmo tempo, dependendo dos campos de atividades, dos conhecimentos nelas

mobilizados e de suas formas de emprego da linguagem”, pois sempre haverá algo novo a ser

apreendido (GERALDI, 2014, p. 33).

Concordamos com Soares (1998) quando ela afirma que existe uma infinidade de

competências que instituem o letramento. Da mesma forma “compreendemos que existem

incontáveis tipos e níveis de habilidades, capacidades e conhecimentos, que podem ser

aplicados a diferentes tipos de material escrito” (p. 71). É fundamental que professores se

apropriem de práticas que levem um aluno a se tornar letrado e não apenas alfabetizado em seu

sentido mais restrito.

Cabe à escola não dissociar os conceitos de letramento e alfabetização. Cabe também

mediar o ensino e a aquisição do código linguístico da Língua Portuguesa, de forma que esta

favoreça o desenvolvimento das competências e habilidades relacionadas ao processo de leitura

e interpretação de texto. Para isso, há que se desenvolver nos alunos a capacidade de produção

de diferentes gêneros discursivos e a função linguística presente em cada um destes.

Soares (1998, p. 70) aprofunda o tema indagando [...] quais habilidades e aptidões de

leitura e escrita qualificariam um indivíduo como “letrado”? Que tipos de material escrito um

indivíduo deve ser capaz de ler e escrever para ser considerado “letrado”?

Assim, Soares (2004, p. 44) define letramento como “o estado ou condição de quem

interage com diferentes portadores de leitura e de escrita, com as diferentes funções que a leitura

e a escrita desempenham na nossa vida. Enfim, é o estado ou condição de quem se envolve nas

numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita”. A definição de letramento proposta

por Soares (2004) é corroborada por autores como Goulart (2006); Marcuschi (2002) e Kleiman

(2009).

A proposta apresentada pela autora e que entra em acordo com os autores supracitados

nos parecem contemplar a questão social em primeiro foco, ou seja, se baseia na organização

de uma sociedade complexa (GERALDI, 2014), que seria composta de acordo com campos de

atividade, bem como do conhecimento em voga e o emprego esperado da linguagem. Dessa forma,

o usuário da língua oral, inserido em um ambiente letrado, do qual participe ativamente, ainda que

não seja alfabetizado, poderá ser considerado letrado.

No entanto, este estudo pretende analisar o ensino de Língua Portuguesa para surdos

utilizando uma perspectiva mais próxima de autores como Mendonça (2007, p. 52) que define

letramento como “o conjunto de práticas sociais de uso da escrita em diversos contextos

63

socioculturais. A noção de letramento inclui não só o domínio das convenções da escrita, mas

também o impacto social que dele advém”. Sendo assim, não abandonaremos o conceito

proposto nos diversos estudos de Soares (1989), pois entendemos que apenas daremos um foco

estritamente relacionado às práticas de leitura, interpretação e produção escrita.

Visando maior embasamento para nossas proposições, buscamos também aporte em

Albuquerque (2007), ao definir que os processos de leitura e elaboração de textos variados são

atividade fundamental para a constituição de indivíduos letrados. A autora destaca ainda o papel

da escola no processo de letramento ao frisar que, além dos contextos de leitura, interpretação

e produção textual no ambiente escolar, se faz necessário considerar a utilização e o papel do

gênero em tese. É elaborando e lendo textos diversos que o aluno começa a entender as

funcionalidades diferenciadas e, dessa forma, suplantar antigas estratégias que visam apenas

ensinar a ler e a escrever simplesmente. Ramos (2007, p. 32) concorda com essa abordagem,

ao mencionar que o letramento pode ser considerado “uma forma de explicar a influência e a

importância da escrita no contexto social, ou seja, em todas as atividades que o indivíduo

desempenha no seu dia a dia”.

Uma das particularidades atribuídas ao letramento está relacionada ao ato de

proporcionar uma inserção diferenciada dos indivíduos no universo da escrita, proporcionando

que a escrita de cada aluno seja exposta por ele. Para tanto, se faz imprescindível o papel da

escola para que o letramento literário se efetive, não bastando apenas a leitura (GIROTO, 2010,

p. 221).

Por fim, entendemos que não cabe as escolas o reconhecimento da multiplicidade dos

gêneros e a escolha por abordar apenas os que julgar mais significativos para o desenvolvimento

de seus alunos, ou seja, os que considerar como fundamentais. “Entre estes, seguramente se

encontram os campos da literatura e das artes, pois o acesso a tais bens culturais, patrimônio da

humanidade, deve ser privilegiado pela escola” (GERALDI, 2014, p.31). Dessa forma a escola

conseguira então, preparar alunos capazes de assimilar, em quaisquer que sejam as situações, o

padrão, a forma e a linguagem apropriada ao contexto desejado, tonando-se assim, autores e

não apenas espectadores nos ambientes socioculturais em que se encontrem inseridos. A seguir,

abordaremos o dualismo alfabetizar letrando ou letrar alfabetizando.

64