2. LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: TUDO JUNTO, MISTURADO OU
2.3 Tudo junto
Após a breve explanação sobre os conceitos de letramento e alfabetização, acreditamos
que podemos pensar em ambos ocorrendo simultaneamente ou em momentos distintos na sala
de aula. Cremos que sempre existirão os professores que não abandonarão as cartilhas e a
alfabetização, com base nas letras e sua correspondência fonética. Provavelmente porque foram
alfabetizados dessa forma e não veem nenhum mal em reproduzir tal prática.
É possível que algum leitor dessa tese tenha sido alfabetizado com o texto Ivo viu a Uva
– Cartilha Pompom meu gatinho. De alguma forma sobrevivemos e nos tornamos hábeis
leitores, o que talvez, nos faça refletir se o problema está no tradicional, já ultrapassado, ou se
nossos alunos estão sendo expostos a menos textos e livros.
Enfim, a resposta para tais questões não as temos, mas cabe-nos frisar que, de acordo
com Geraldi (2014), as práticas de alfabetização que precedem ao moderno – se é que ainda
podemos nos referir a elas assim - conceito de letramento, até mesmo aqueles baseados em
etapas sequenciais de aprendizagem, era pautado na codificação e decodificação. Todavia, os
professores que as utilizavam não deixavam de considerar a amplidão da escrita e de sua
utilização no âmbito social, pois de outra forma, o esforço e empenho dedicado à alfabetização
seriam inúteis. Mesmo utilizando metodologias de alfabetização tradicionais, é possível tornar
o universo da escrita pautado tanto no conceito de alfabetização quanto no do letramento. O
autor recomenda o não abandono às práticas do passado.
Correa (2007) amplia a discussão relatando a existência de pesquisadores que fazem
oposição ao uso do termo letramento. No entanto, este não é nosso objetivo, visto que
acreditamos não ser possível a simplificação do conceito, já que este, como visto anteriormente,
conquistou adeptos em várias áreas de conhecimento, alcançando com isso novos significados,
que não possuem relação direta com o conceito de alfabetização.
Como já visto, a interdependência e indissociabilidade entre alfabetização e letramento
nos leva a concluir que práticas de letramento só poderão se desenvolver por meio da correlação
com a aprendizagem da estrutura de escrita. Soares (ibidem, p. 100) menciona que “a criança
desenvolve habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas
sociais que a envolvem no contexto do, por meio do e em dependência do processo de aquisição
do sistema alfabético e ortográfico da escrita”. Para tanto, é fundamental a compreensão de que
não basta oferecer atividades de leitura e escrita diversificadas e contextualizadas, pois para que
as atividades produzam o efeito desejado, dependerá também da ação do aluno em decorrência
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da mediação por parte do professor, e ainda dos episódios de interação com os outros alunos da
turma (VYGOTSKY, 1998).
A mediação e a interação ocorrem por intermédio da utilização da linguagem que, de
acordo com Vygotsky (1998), ocupa lugar central no processo de aprendizagem. Corroborando
com o autor, Bakhtin (2003, p. 261) afirma que “todos os diversos campos da atividade humana
estão ligados ao uso da linguagem”. Por esta razão, estão presentes nos diferentes gêneros
discursivos, nos campos mencionados pelo autor. Dessa forma, o nível de complexidade da
sociedade interfere diretamente na diversidade e nas muitas formas de atividade, presentes nos
gêneros de discurso, que circulam nos cenários em que se constituem o fazer social.
A demanda social faz com que cada um de nós circule em vários campos e espaços de
comunicação social. Assim, a maior parte da sociedade acaba por se tornar competente para o
uso da linguagem (gêneros discursivos) em ambientes diversos, embora não tenhamos a mesma
destreza para produzir, ler e interpretar gêneros textuais em todas as áreas. Podemos supor,
portanto, que o letramento ocorre ao longo da vida do indivíduo e por isso é importante expor
alunos a novas.
O que nos remete, diretamente, ao papel inicial da escola nesse processo, ou seja, de
inserir os alunos no universo dos gêneros textuais orais e escritos, de forma que possam
desenvolver as habilidades de leitura, escrita e produção de textos que circulem nas mais
variadas esferas sociais - pessoal; literária; midiática; jurídica;entretenimento, etc..., das quais
os alunos fazem parte. Bronckart (1999, p. 103) corrobora com tais afirmações ao enfatizar que:
“A apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática
nas atividades comunicativas humanas”.
Práticas distintas de leitura e escrita facilitam aos alunos a compreensão da linguagem
a ser utilizada em diferentes gêneros textuais, assim como a apropriação das características
correspondentes a cada gênero, para que este esteja de acordo com o papel social ao qual se
dispõe. Santos e Albuquerque (2007, p. 99) destacam a importância da apropriação da escrita
alfabética para o processo de letramento, pois de nada adiantaria “o indivíduo saber identificar
a que gênero o texto se refere e para que ele serve, se ele não é capaz de recuperar sozinho as
marcas registradas no papel”. As autoras afirmam ainda que quanto à alfabetização paralela ao
letramento, trata-se de “oportunizar situações de aprendizagem da língua escrita nas quais o
aprendiz tenha acesso aos textos e a situações sociais de uso deles, mas que seja levado a
construir a compreensão, acerca do funcionamento do sistema de escrita alfabético”. Só assim
ele poderá se tornar agente no processo de aprendizagem.
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No processo inicial de alfabetização, que ocorre nos primeiros anos do ensino
fundamental, os alunos ainda não estão aptos a utilizar a escrita alfabética. Torna-se
imprescindível que o professor atue como mediador (VYGOTSKY, 1998), como leitor e
também registre a produção oral dos alunos. Santos e Albuquerque (2007, p. 99) destacam ainda
que “não se pode deixar para que o aluno produza escritos ou leia apenas quando já dominar o
nosso sistema de escrita. É importante que eles possam, desde o início do processo de
alfabetização, testar suas hipóteses a respeito da escrita”.
Destacamos, também, a importância da utilização dos conceitos de zona de iminência
ou zona real do desenvolvimento (VIGOTSKI, 1989, p. 211). Para o autor, a zona de
desenvolvimento iminente está diretamente relacionada “a distância entre o nível de
desenvolvimento atual determinado pela resolução independente de problemas e o nível de
desenvolvimento potencial determinado pela resolução de problemas sob orientação ou em
colaboração com parceiros mais capazes”, ou seja, a possibilidade de desenvolvimento.
De acordo com tais pressupostos, Santos e Albuquerque (2007, p. 99) destacam que “se
o conhecimento que esses têm da escrita ainda não é suficiente para que leiam ou produzam
textos extensos, pode-se levá-los a ler textos memorizados, tais como cantigas, quadrinhas,
assim como tentar escrevê-los na íntegra ou parte deles”.
Mais uma vez desejamos afirmar que a variedade imensa de gêneros discursivos não
permite à escola preparar os alunos para tamanha gama de conhecimento, mas a vida e os
caminhos trilhados por cada aluno em sua subjetividade é que os impulsionarão, conforme a
necessidade, a adquirir novas linguagens textuais. Sendo assim, os lugares de pertencimento,
provavelmente, os farão aprendizes e autores de suas produções. Novamente buscamos em
Geraldi (2014, p. 30) aporte para o “iletrismo” do qual cada um de nós sempre fará parte, no
que se refere ao domínio da totalidade de gêneros de discurso, pois o autor enfatiza que:
Esta porosidade, no entanto, não me parece autorizar que cabe à escola introduzir todo estudante a todos os gêneros discursivos em circulação numa sociedade. Se este fosse o objetivo do ensino de língua materna, jamais um estudante terminaria seus estudos porque sempre estaria “iletrado” em alguma das esferas da comunicação social existente entre os diferentes campos de atividade humana. E mais: seria pensar que cabe à escola toda a aprendizagem, como se na vida não se pudesse aprender e fazer relações que, por maior que seja o programa de ensino, jamais dará conta.
Enfim, as oportunidades de iniciar o processo de apropriação da leitura, interpretação e
produção dos diferentes gêneros
23textuais iniciam na escola. Dessa forma, embora a escola não
23 Uma excelente opção de trabalho com os diferentes gêneros textuais pode ser encontrada no livro Exercícios de Estilo. Obra do autor Raymond Queneau, da Coleção Lazuli, da Imago Editora. Disponível em: https://monoskop.org/images/b/b0/Queneau_Raymond_Exercicios_de_estilo.pdf
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inicie o processo, o letramento permeia todo o processo de aprendizagem, que engloba inclusive
o tempo de permanência dos alunos na escola.
De forma a esclarecer e apresentar os caminhos metodológicos escolhidos para a
realização de nossa pesquisa, bem como o lócus de sua realização e seus participantes, o
próximo capítulo irá abordar inicialmente organização da educação de surdos no município de
a apresentação das duas (02) escolas nas quais o trabalho empírico foi realizado.
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