• Nenhum resultado encontrado

Novos Letramentos na escola e o papel dos Objetos Educacionais Digitais

2. MULTILETRAMENTOS, MULTISSEMIOSE E NOVOS LETRAMENTOS NO

2.3. Novos Letramentos e Letramentos Escolares

2.3.2. Novos Letramentos na escola e o papel dos Objetos Educacionais Digitais

Os Objetos Educacionais Digitais, a nosso ver, não deveriam ser apenas novas ferramentas digitais para a escola, mas deveriam romper o paradigma do livro para o do ambiente digital, bem como por deverem ser objetos customizáveis para seu uso, poderiam ser encaixar na lógica da produção pós-industrial em que os produtos, cada vez mais, adaptam-se às necessidades do consumidor (no caso, das necessidades educacionais momentâneas de alunos e professores). Afinal, como afirma Jenkins (2009), é preciso ter o cuidado de não estarmos apenas incluindo novas mídias e novas tecnologias em sala de aula através desses objetos; ao contrário, é preciso pensarmos de que maneira isso está sendo feito.

Quando pensamos que esses objetos são digitais, logo temos a propensão de localizar esses objetos como parte da cultura digital, promotora de novos letramentos. Assim como esta parece ser a sugestão mais evidente para todos os materiais didáticos digitais: suprir as necessidades do impresso, com aquilo que é mais próprio do digital. No entanto, na prática, esta relação não é assim tão óbvia, a começar porque, embora digitais, estes objetos também são feitos na e para uma cultura escolar. Cultura esta que está embasada na cultura

do impresso e em um conjunto diverso de normas e práticas próprias da escola, socialmente situadas de acordo com as necessidades e finalidades de cada época (JULIA, 2001).

Os OEDs, do PNLD, extremamente atrelados ao uso do livro didático em sala de aula, possuem um caráter escolar muito próprio, que não pode ser desconsiderado. Não podemos simplesmente achar que todas as práticas de novos letramentos vão ser favorecidas por estes materiais. Como bem já notou Chevallard (1998), existe uma distância entre o saber científico e o saber a ser ensinado, caracterizando aquilo que pode ser chamado de

transposição didática.

Chervel (1990) também tem muito a contribuir sobre esse assunto. Para o autor, é senso-comum que a escola seria o lugar da vulgarização da ciência, isto é, o lugar da transmissão dos saberes acadêmicos e científicos de forma simplicada, acessível e adaptada para o público jovem, de acordo com cada idade específica. Chervel argumenta que este não é o objetivo da escola. Ao longo de todo um estudo da história das disciplinas escolares, o autor concluiu que a escola tem e sempre teve um objetivo único e próprio, com conteúdos e saberes criados na escola para a própria escola. Exemplo trazido por Chervel, no contexto francês, no qual se situa, é o ensino da gramática. Inicialmente ela era apoio para o ensino de ortografia, aos poucos, ainda no século XIX, foi se tornando o próprio objeto de ensino. Isto é, uma necessidade exclusivamente escolar, que pouco ou nada tinha de semelhante com os estudos científicos da época. Portanto, para Chervel, quando a escola se distancia da ciência não é por incapacidade do professor, mas porque seu papel sempre foi outro.

Isto nos ajudará a compreender, em nossa análise, o porquê de os OEDs se distanciarem da cultura digital e se aproximarem da cultura escolar. É possível pensar que, na visão do Ministério da Educação e, consequentemente, dos editores que fazem o material, sua função não é e não será fazer aquilo que se faz na Web, mas sim ter um caráter escolar, educativo, próprio daquilo que já é consolidado como prática usual em sala de aula, só que utilizando tecnologia digital. Este conceito de prática escolar nos remete também ao conceito de letramentos escolares. Para Bunzen (2010), podemos falar em letramento escolar porque a escola tem práticas de letramento próprias, com gêneros e discursos também próprios. Assim, o autor define que o letramento escolar é

compreendido como um conjunto de práticas socioculturais, histórica e socialmente variáveis, que possui uma forte relação com os processos de aprendizagem formal da leitura e da escrita, transmissão de conhecimentos e (re)apropriação de discursos. (BUNZEN, 2010, p. 101)

Esta afirmação de Bunzen nos mostra o quanto a escrita e o impresso têm papel fundamental na cultura escolar. A cultura escolar é uma cultura da escrita, do impresso, em que determinadas práticas de letramento são mais valorizadas e visíveis que outras (letramentos dominantes versus letramentos vernaculares), por exemplo, a escrita na carteira não é valorizada, enquanto que a escrita no caderno, com cópia idêntica à da lousa, sim. O autor também relembra o quanto estas práticas estão em constante conflito, isto é, o “conflito entre os mundos de letramento” (BUNZEN, 2010, p. 109).

Podemos acrescentar à reflexão de Bunzen (2010) que os novos letramentos, provenientes do novo ethos (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007), também fazem parte deste conflito atual entre os mundos de letramento na escola. As práticas de novos letramentos entram na escola como vernaculares, isto é, por exemplo, quando o aluno, paralelamente ao letramento dominante do caderno, do exercício escrito em sala de aula, posta e compartilha em redes sociais, atualiza blogs, vê vídeos, entre outras atividades (mostrando também o caráter multitarefa do sujeito contemporâneo).

Embora sejam compreensíveis os motivos pelos quais certos conteúdos entram ou não na sala de aula (e consequentemente nos OEDs) e seja possível entender que a escola valoriza certos letramentos mais que outros, não podemos desconsiderar que a escola, como notou Julia (2001), está de acordo (ou deveria estar) com as necessidades e finalidades de cada época. Isto é, as necessidades de nossa época são multiculturais, multimodais e multimidiáticas (THE NEW LONDON GROUP, 1996), assim como da formação de um sujeito inserido em um novo ethos (LANSHEAR; KNOBEL, 2007). É neste sentido que não podem ser desconsiderados no ensino os multi e os novos letramentos.

Dois autores que nos ajudam a compreender mais de perto esta problemática dos novos letramentos na escola são Lemke (2010) e Dahley (2010). Lemke afirma que “nossas tecnologias estão nos movendo da era da ‘escrita’ para a era da ‘autoria multimidiática’” (LEMKE, 2010, p. 456). Novas mídias pressupõem novas habilidades de autoria e interpretação, o que é o principal argumento do autor em relação a nossa sociedade contemporânea, da qual chama de a “Era da Informação”. Isto, segundo Lemke, se contrapõe aos paradigmas de aprendizagem e educação vigentes. A primeira constatação em relação aos paradigmas de aprendizagem é que, em toda uma tradição de ensino logocêntrica,

nós não ensinamos os alunos a integrar nem mesmo desenhos e diagramas à sua escrita, quanto menos imagens fotográficas de arquivos, vídeo clips, efeitos sonoros, voz em áudio, música, animação, ou representações mais

especializadas (fórmulas matemáticas, gráficos e tabelas etc.) (LEMKE, 2010, p. 461)

Portanto, para ele, este seria um dos principais desafios da escola: ensinar como diferentes culturas e sociedades associam e interpretam diferentes modalidades semióticas, inclusive, não somente o que significam separadamente, mas suas diferentes combinações, ao que Lemke já chamou em outros trabalhos de “significado multiplicador”.

Esta tradição logocêntrica escolar não é apenas uma novidade notada a partir do surgimento de novas mídias e tecnologias, mas, também, como argumenta o autor, sempre foi imposta desde a infância, a começar por tecnologias há muito já tradicionais, como o próprio papel. Quando crianças, há o incentivo para a leitura e produção de enunciados multissemióticos, através do uso de desenhos, valorizando a relação entre escrita-imagem. Mas isto se perde ao longo da escolarização, em que a escrita atinge seu papel dominante e, cada vez menos, há espaço para imagens tanto nos materiais de leitura, quanto nas produções dos alunos. Aprender a ensinar a integração entre imagem e escrita não é tarefa fácil, o que demandaria, como alerta Lemke, um mínimo conhecimento de semiótica multimidiática por parte dos professores. Isso levaria a questões além do foco aqui proposto, acerca também da formação inicial e continuada de professores.

Já a segunda constação do autor, em relação aos novos paradigmas de aprendizagem e educação, é que os novos letramentos requerem habilidades de exploração do ciberespaço. Isto inclui, por exemplo, a habilidade de como localizar e categorizar informações e objetos multimidiáticos. Para Lemke, essas habilidades se assemelham muito aos paradigmas já vigentes dos usuários de bibliotecas, que consistem em buscar individualmente, a partir de seus próprios interesses e necessidades, algo de um grande acervo disponível.

O que Lemke acaba por argumentar, a partir de seu ponto de vista e de seu contexto sócio-histórico, é que estas novas habilidades e exigências contemporâneas não podem ser aceitas ou utilizadas dentro do paradigma da aprendizagem curricular, vigente na maioria das instituições de ensino. O que estes novos letramentos pedem é um paradigma de aprendizagem interativo, em que os alunos buscariam pelo conhecimento que desejassem, também no ritmo que lhes fosse ideal, isto é, um paradigma mais de busca do que imposição.

Ao argumentar que o paradigma curricular tem falhado nos Estados Unidos, Lemke defende, em uma posição questionável e radical, que “novas tecnologias da informação tornarão possível aos alunos aprender o que querem, quando querem, da forma

como querem, sem as escolas.” (LEMKE, 2010, p. 470). Como ele mesmo alerta e aqui defendemos, nem todos terão oportunidade de acesso igual a essas tecnologias, o que é precisamente muito adequado ao contexto brasileiro. Não podemos supor que todos terão acesso igualitário para colocarem em prática suas próprias aprendizagens individuais. Por isso, em um contexto brasileiro extramente desigual e até mesmo de exclusão digital (BUZATO, 2009), não podemos simplesmente defender o fim da escola, já que esta pode ser, para muitos, o único meio de acesso a diversos conhecimentos e oportunidades, mesmo que sem quaisquer usos de novas tecnologias.

No entanto, apesar deste aspecto polêmico da argumentação de Lemke, é muito pertinente sua discussão acerca das tradições logocêntricas escolares, que acabam, muitas vezes, não se atentando às mudanças nas linguagens e práticas novas de letramentos, se distanciando das práticas sociais atuais. Parte desse desafio da escola está em incorporar as diversas semioses e mídias no ensino, bem como, ensinar a analisá-las e produzi-las criticamente. Além disso, as habilidades de busca por informações e multimídia também são altamente relevantes, tendo em vista que, cada vez mais, a fonte de informação e acesso às buscas escolares não são mais somente a enciclopédia ou os livros didáticos, mas sim as fontes disponíveis na Internet. Sem um ensino crítico, ficaremos passivos diante de todas as possibilidades oferecidas.

Dahley (2010) também traz contribuições para nossa reflexão, pois argumenta a favor da expansão do conceito de letramento, a partir de quatro argumentos principais, como ela mesma defende:

1. A linguagem multimidiática da tela se transformou no vernáculo corrente.

2. A linguagem multimidiática da tela é capaz de construir significados complexos independentemente do texto.

3. A linguagem multimidiática da tela permite modos de pensamento, formas de comunicar e produzir pesquisa, e métodos de publicação e de ensino que são essencialmente diferentes daqueles relacionados ao texto. 4. Por último, seguindo os três argumentos anteriores, serão realmente

letrados no século 21 aqueles que aprenderem a ler e escrever a linguagem multimidiática da tela. (DAHLEY, 2010, p. 482)

Segundo seu primeiro argumento, a linguagem multimidiática da tela se transformou no vernáculo corrente porque esta linguagem, presente no rádio, na televisão e no cinema, por exemplo, se tornou a forma mais comum dos cidadãos se divertirem, se comunicarem e terem acesso à informação. É inegável, para a autora, que hoje nossas experiências humanas se modificaram, estando intimamente atreladas às imagens e sons.

Na mesma linha de raciocínio de Lemke (2010), Dahley (2010) argumenta sobre as vantagens das novas tecnologias a respeito da construção de significados topológicos, isto é, aqueles que não podem ser categorizáveis de forma linear ou estanque, mas sim, entendidos em um contínuo, destacando também a importância que a linguagem multimidiática tem ao construir significados complexos. Sem menosprezar a função da escrita, a autora defende que “a multimídia pode nos permitir desenvolver conceitos e abstrações, comparações e metáforas, envolvendo ao mesmo tempo nossas sensibilidades emocionais e estéticas” (DAHLEY, 2010, p. 484), ou seja, ela permite com maior precisão a expressão de modos não verbais e pensamentos não lineares. Podemos dizer que este poderia ser um dos grandes ganhos que os OEDs poderiam trazer: através da multimídia, permitir e ensinar linguagens não verbais e significados topológicos.

Em relação ao seu terceiro argumento, Dahley afirma que, desde o Iluminismo, temos privilegiado, nas áreas do saber e comunidades intelectuais, o racional, o abstrato e o descontextualizado, em detrimento do afetivo, do concreto e do contextualizado. Sendo assim,

aceitar a linguagem multimidiática como tão importante quanto o texto escrito vai requerer uma significativa mudança de paradigma, que desafie a dominação da ciência e da racionalidade, da abstração e da teoria. (DAHLEY, 2010, p. 484)

Afinal, como argumenta a autora, a linguagem multimidiática desafia esses três pressupostos iluministas, pois estando atrelada aos meios de comunicação e diversão, está muito mais ligada ao afetivo. Também devido a suas próprias possibilidades, permite que conceitos abstratos se tornem palpáveis e/ou visíveis, através de representações (esta também seria uma grande contribuição para OEDs, representar o não visível, como bem já se faz em conteúdos digitais de biologia, ao representar com gráficos interativos uma célula humana, por exemplo). E por último, segundo Dahley, ao contrário de produções textuais meramente escolares, a multimídia dificilmente é feita apenas para fins escolares, pois, por demandar muito mais compartilhamento e colaboração, acabaria por tornar o conhecimento muito mais contextualizado.

Em relação a este último argumento de Dahley, embora a linguagem multimidiática realmente ofereça oportunidades diferenciadas e claramente muito mais adequadas a determinados tipos de conhecimento, como por exemplo, representação de conceitos abstratos ou invisíveis a olho nu ao ser humano, não devemos cair em um determinismo tecnológico que nos faça ver a tecnologia como a salvação para problemas já

conhecidos. Por exemplo, é possível fazer uma produção escolar multimidiática muito bem contextualizada e com fins adequados a seus gêneros, mas também é possível, da mesma maneira, fazer algo completamente desnecessário e não contextualizado, apenas para dizer estar usando algum tipo de nova tecnologia, como por exemplo, publicar produções textuais escolares em um blog, sem qualquer justificativa ou finalidade. Com devidos cuidados, é possível fazer produções escolares realmente significativas e importantes, sem quaisquer usos de novas mídias, utilizando apenas a caneta e o papel. Porém, não deixa de ser muito relevante a discussão da autora, assim como fez Lemke, de lembrar o quanto nossas tradições escolares e também intelectuais têm sido, e ainda são, extremamente centradas na escrita, não se abrindo facilmente a novas possibilidades de significação, que poderiam ser muito mais adequadas, dependendo do contexto.

Por fim, seu último argumento, estreitamente relacionado aos outros três, aborda sobre a expansão do conceito de letramento, ao dizer que serão realmente letrados no século XXI aqueles que forem capazes de ler e escrever esta linguagem multimidiática na tela. Um grande desafio na educação para este tipo de exigência contemporânea é, segundo Dahley, que algumas escolas e universidades, desde os anos 1960 (isso a respeito do contexto americano e não o brasileiro), tem se empenhado em dar cursos ou incorporar em seu ensino letramentos multimidiáticos e visuais. No entanto, estes são sempre centrados apenas na leitura de textos e linguagens, carecendo do ensino de práticas de produção.

É inegável que muitos alunos lidam de forma muito fácil e fluente com estas novas linguagens e mídias, sendo capazes de produções realmente impressionantes. Isto é, os alunos muitas vezes já possuem habilidades de escrita nesta linguagem, porém, como alerta a autora, “eles não têm mais habilidade crítica com essa linguagem do que os mais velhos que eles – talvez menos” (DAHLEY, 2010, p. 488). E esta é uma das funções da escola, ensinar como lidar criticamente com estes novos letramentos, afinal, não basta termos uma visão idealista, como faz Lemke, de que todos aprenderão de forma igualitária, apenas por terem acesso aos recursos digitais, mas é necessário mostrarmos e analisarmos todos os mecanismos de poder e ideologias presentes nestas linguagens, assim como temos feito (ou tentado fazer) em diferentes gêneros discursivos já ensinados há muito tempo na escola. Assim como também defende Buzato (2009), de que ser incluído digitalmente não é apenas ter acesso às tecnologias digitais, mas sim, saber fazer o uso crítico destas.

Como é possível notar, uma educação que favoreça isto necessita de toda uma estrutura que começa desde orientações curriculares, materiais didáticos até o trabalho e formação do professor, que permitam que estes novos letramentos sejam trabalhados em sala

de aula, por serem, como afirmaram os autores acima citados, fundamentais em nossa sociedade atual. O conceito de Web Currículo de Almeida e Silva (2011) caminha nesse sentido, ao entender que integrar as novas tecnologias na escola não é apenas colocá-las como ferramentas complementares, mas sim buscar uma integração delas e as competências necessárias para utilizá-las de maneira transversal e integrada ao currículo. Mas também é necessário que o façamos de maneira crítica e adequada, sem cairmos em um determinismo tecnológico idealista. Arriscamos resumir, portanto, algumas hipóteses dos papéis que os OEDs de Língua Portuguesa poderiam ter nesta nova mentalidade, aplicada à educação:

a) Possibilitar a exploração das práticas de letramento próprias do digital (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007);

b) Permitir uma sequência de atividades mais personalizada, aproximando-se de um paradigma de aprendizagem interativo (LEMKE, 2010);

c) Trabalhar com a linguagem multimidiática, multissemiótica e com significados topológicos (LEMKE, 2010; DAHLEY, 2010).