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2. MULTILETRAMENTOS, MULTISSEMIOSE E NOVOS LETRAMENTOS NO

2.3. Novos Letramentos e Letramentos Escolares

2.3.1. Novos Letramentos: o que há de “novo”?

Dois principais autores que têm se concentrado em defender a existência dos novos letramentos e justificar a necessidade da palavra “novo” são Lankshear e Knobel (2007; 2011). Em sua obra de 2007, os autores fazem a primeira definição que se mostra essencial para enterdemos o que, de fato, são esses novos letramentos. Já no livro de 2011, na mesma linha de raciocínio do anterior, são aprofundados e atualizados os estudos de novas práticas que surgiram deste então. No entanto, sua definição teórica dos novos letramentos não é modificada.

Para Lankshear e Knobel (2007), os aspectos que os definem são a presença de novas tecnologias e de um novo ethos, os quais chamam de “new technical stuff” e “new ethos stuff”, respectivamente. Uma das principais diferenciações, em relação aos letramentos tradicionais, é possuir essas duas características. No entanto, explicam os autores, em um novo letramento é possível haver apenas um novo ethos, sem que haja novas tecnologias, mas o uso de novas tecnologias não necessariamente garante a emergência de um novo ethos. Por exemplo, uma atividade escolar que peça para os alunos digitarem uma poesia feita no caderno, se utiliza de novas tecnologias, mas não de um novo ethos, como se explicará melhor adiante, portanto, não se trata de nenhuma prática de letramento nova.

Nas novas tecnologias digitais, devido ao digital se caracterizar por uma linguagem única – a binária –, muitas linguagens podem ser misturadas com facilidade em um só enunciado, possibilitando a criação de textos multissemióticos. Este é um dos pontos de congruência entre os multiletramentos e os novos letramentos: a multissemiose. Isto acaba por criar novas técnicas ao lidarmos com a linguagem, como editar fotos, aplicando efeitos, editar vídeos e músicas já existentes, criando “remixes”, por exemplo. Isto é, através de diversos recursos e ferramentas, qualquer pessoa com acesso às novas tecnologias pode combinar e recombinar linguagens, sem necessitar de conhecimento especializado e a custo zero. Após estas criações, elas podem ser compartilhadas com um grupo de pessoas ou até mesmo para todo o público interessado, na Web. Aqui vemos como a multissemiose é responsável pela

criação de novas hibridações de linguagens e formas de expressão, como afirma também o

The New London Group (1996).

Porém, para Lankshear e Knobel (2007), mais do que as novas tecnologias, o que caracteriza os novos letramentos como realmente novos, é a presença de um novo ethos. Enquanto os letramentos tradicionais operam na lógica da publicação impressa, do individualismo e da autoria marcada, os novos letramentos operam na lógica da participação, colaboratividade e distribuição. Os autores defendem que a criação desse novo ethos se deu, principalmente, pelo surgimento de um novo espaço e de uma nova mentalidade. As mudanças sociais citadas pelo The New London Group (1996; 2009) são também refletidas por Lankshear e Knobel (2007), com algumas contribuições a mais, como entender a emergência do ciberespaço e de uma lógica mais coletiva e menos hierarquizada. Enquanto o Grupo de Nova Londres está mais preocupado com a preparação do sujeito cidadão e trabalhador deste novo capitalismo, Lankshear e Knobel estão mais preocupados em constatar novas práticas sociais de letramentos, principalmente as que surgem com a Internet e seus espaços de afinidade.

O novo espaço, para os autores, é o ciberespaço. Nunca substituindo o espaço físico, ele passa a coexistir com este, tornando-se uma experiência espacial comum para crianças que já nascem convivendo com tecnologias digitais e acesso à Internet. Exemplo disso pode ser visto quando crianças ainda pequenas já entendem o conceito de redes sociais, interagindo com amigos e familiares, mesmo que não estejam presentes fisicamente no local. Ou seja, o ciberespaço está, cada vez mais, se naturalizando como um espaço facilmente reconhecível e vivido no cotidiano de muitas pessoas.

Além desta mudança nas práticas de espacialização, os autores argumentam sobre a evolução e emergência de uma nova mentalidade, em que passamos de uma mentalidade “físico-industrial” para uma mentalidade “ciberespacial e pós-industrial”. As diferenças entre as duas mentalidades, são resumidas por Lankshear e Knobel (2007, p. 11, tradução nossa) no quadro a seguir, na figura 14:

QUADRO 1.1. Algumas dimensões de variação entre as duas mentalidades

Mentalidade 1 Mentalidade 2

O mundo opera basicamente no físico/material e nos princípios e lógicas industriais.

O mundo é “centrado” e hierárquico.

 O valor é em função da escassez.

O mundo opera, cada vez mais, no não material (por exemplo, ciberespaço) e nos princípios e lógicas pós- industriais.

O mundo é “descentrado” e “plano”.  O valor é em função da dispersão.

 A produção é baseada no Modelo “industrial”.

 Os produtos são artefatos materiais e Commodities.

 A produção é baseada na infraestrutura e em unidades de produção ou centros (por exemplo, uma firma ou compania).

 As ferramentas são de produção.

 O indivíduo é a unidade de produção, competência e inteligência.

 O especialista e a autoridade estão “localizados” em indivíduos e instituições.  O espaço é fechado e para propósitos

específicos.

 As relações sociais do “espaço do livro” prevalecem, há uma estabilizada “ordem textual”.

 Visão “pós-industrial” de produção.  Os produtos são serviços de apoio.

 O foco é no poder e na participação ilimitada.  As ferramentas são, cada vez mais,

tecnologias de mediação e relacionamento.  O foco é, cada vez mais, nos “coletivos”

como unidades de produção, competência e inteligência.

 O especialista e a autoridade são distribuídos e coletivos; especialistas híbridos.

 O espaço é aberto, contínuo e fluido.

 As relações sociais do emergente “espaço da mídia digital” estão, cada vez mais, visíveis; textos em mudança.

Figura 14. Quadro das dimensões de variação entre as Mentalidades 1 e 2. Fonte: Lankshear, Knobel, 2007, p. 11, tradução nossa.

Enquanto a primeira mentalidade surgiu no mundo moderno, a segunda surgiu no mundo contemporâneo, em que a Internet e as novas tecnologias alteraram a maneira como fazemos as coisas, além da maneira de sermos e agirmos. Trazendo a reflexão de outros autores, Lankshear e Knobel expõem algumas características desta segunda mentalidade.

Um dos autores é Schrage (2001 apud LANKSHEAR; KNOBEL, 2007) que argumenta que o valor da Internet não está nas informações que podem ser armazenadas e encontradas, mas como elas podem ser manipuladas e transformadas. Antes o valor de algo era definido pelo princípio da escassez, isto é, quando mais raro, mais valioso o produto. Na

Web, ocorre o contrário, quanto mais divulgado, distribuído e disperso, mais valioso será.

Exemplo disso, a nosso ver, estaria acontecendo na indústria musical. O fato de divulgar gratuitamente uma música inédita em um canal de vídeos ou disponibilizá-la para download, antes da venda oficial do álbum em CD como estratégia para ampliar o público consumidor, mostra que hoje o valor está em quanto as pessoas conhecem, divulgam e compartilham algo.

No entanto, no novo ethos, nem tudo é tão simples quanto apenas os direitos autorais de produtos culturais. Assuntos mais sérios não tratados pelos autores, como a Wikileaks, “organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica, em sua página (site), postagens (posts) de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis”17

, podem envolver

até a prisão daqueles compartilham essas informações, como o caso de seu editor-chefe e porta-voz Julian Assange.

Também a reflexão trazida sobre Free Culture (Cultura Livre) de Lessig (2004

apud LANKSHEAR; KNOBEL, 2007) tem muito a contribuir. Lessig defende que qualquer

pessoa comum pode hoje produzir e manipular produtos culturais, sem que isso seja pirataria, mas uma forma de reuso. Entre esses reusos podem estar os “remixes”, que criam novos componentes a partir de outros já existentes. Além disso, outro conceito que é defendido por diversos autores lembrados por Lankshear e Knobel (2007) é que, nesta mentalidade, assim como na Internet, as pessoas se reúnem em “espaços de afinidade”, onde compartilham interesses em comum, gostos, e até mesmo regras específicas, como em sites de fanfiction, por exemplo. É o que Jenkins (2009) chama de cultura de fãs.

Ainda, Lankshear e Knobel (2007) discutem como estamos passando da mentalidade 1 para a 2, através da transição do paradigma do livro para o paradigma do ambiente digital. No paradigma do livro, centrado no paradigma textual, é sempre estabelecida uma ordem de dominância e autoridade ou autoria como, por exemplo, entre o professor/expert e o aluno/aprendiz. Já no paradigma do ambiente digital, segundo os autores, não há o paradigma do texto. Essas convenções sociais de autoridade podem ser facilmente quebradas, tornando-se um ambiente de maior participação e colaboração. É um espaço mais fluido, permitindo maiores experimentações e hibridações.

Outra característica é que, nesta segunda mentalidade, estamos nos tornando aptos a multitarefas simultâneas, como por exemplo, jogar, conversar em um chat e atualizar um

blog, ao mesmo tempo. Citando alguns trabalhos de Leander (LEANDER; FRANK, 2006;

LEANDER; LOVVORN, 2006 apud LANKSHEAR; KNOBEL, 2007), os autores exemplificam como isto tem se tornado comum em escolas em que os alunos utilizam dispositivos digitais. Ao contrário do que muitos professores pensam, os alunos relatam conseguir acompanhar a aula e se envolver em tarefas pessoais como mandar e-mails, conversar via chat ou fazer download de músicas, sem que isso atrapalhe seus desempenhos.

Essas características da nova mentalidade se relacionam, conforme argumentam Lankshear e Knobel (2007), ao que pode ser chamado de Web 2.0. Desta maneira, os autores fazem uma analogia entre a mentalidade 1 (físico-industrial) e a Web 1.0, assim como entre a mentalidade 2 (cyberespacial-pós-industrial) com a Web 2.0. A Web 1.0 opera na lógica do consumo e da busca de informações, o que se assemelha a uma mentalidade industrial, com intensa produção de material apenas para consumo. Já a Web 2.0, em uma visão pós- industrial, visa maior participação, colaboração e distribuição da inteligência. Outra

característica importante é a maior customização de informações e interesses, cada vez mais centrados em gostos e desejos individuais de cada usuário.

Um exemplo interessante dado pelos autores é a diferença entre a Enciclopédia Britânica Online e a Wikipédia. Enquanto uma traz conteúdo criado por apenas poucos especialistas e consagrado como de confiança, sem possibilidade de edição ou discussão, a Wikipédia é feita colaborativamente por pessoas comuns, com interesse em criar um espaço de conhecimento coletivo. Em contrapartida, esse conteúdo é muito mais questionado por algumas pessoas, por ser fruto de uma construção leiga e, muitas vezes, pouco especializada. Ao mesmo tempo, é preciso lembrarmos que, embora o espaço seja muito mais colaborativo e participativo, ele também não é livre de regras ou hierarquias também pré-estabelecidas. Ao mesmo tempo em que qualquer usuário pode editar um contéudo na Wikipédia, ele também é avaliado por uma série de moderadores, que podem ou não aceitá-lo como participante legítimo e adequado.

Outro exemplo também relevante da Web 2.0 são as categorizações feitas. No lugar de já tradicionais taxonomias, feitas por especialistas, surgem as chamadas

folksonomias, feitas por qualquer pessoa comum, muitas vezes, sem qualquer embasamento

teórico, apenas pela experiência prática ou opinião pessoal. Ao contrário de seguir uma categorização já estabelecida, criam-se constantemente outras, que são feitas pelo próprio autor do conteúdo. Um exemplo de folksonomia são as chamadas tags, presentes em blogs, redes sociais e, agora, até mesmo em diversos sites de outros tipos de conteúdo, como portais de jornais e revistas. Uma das tags mais famosas são as hashtags (associadas pelo símbolo “#”, seguido da palavra que a classifica, por exemplo, “#férias”). Ao clicar nelas, é possível encontrar todo tipo de conteúdo do mesmo site/rede/plataforma que foi catalogado com a mesma classificação.

Após apresentar as características das novas tecnologias e do novo ethos, que se relacionam com uma nova mentalidade, profundamente associada à Web 2.0, os autores definem que os letramentos caracterizados dessa maneira, podem, enfim, serem chamados de “novos” letramentos, atentando sempre para o fato de que o mero uso de novas tecnologias não garante que estas características estejam presentes.

Como é possível observar na argumentação de Lankshear e Knobel, embora as novas tecnologias e mídias não definam um novo letramento, mas possibilitem a emergência de uma nova mentalidade que resulta em novas práticas, é indispensável dizer que, sem as possibilidades trazidas pelos recursos disponíveis através das tecnologias e mídias, também não seriam possíveis novas práticas.

Fazendo, enfim, um comparativo de como as duas teorias dos multi e novos letramentos se interrelacionam, podemos perceber que, embora os multiletramentos considerem os novos, os novos não se restringem aos multi. Isto é, as preocupações entre as duas linhas de pesquisa se distanciam e se aproximam em alguns pontos. Enquanto a primeira pensa mais a respeito de mudanças de um mundo globalizado, com o uso ou não de novas tecnologias, propondo uma pedagogia específica para tal, a segunda se preocupa em pensar práticas da cultura digital, que podem ou não usar novas tecnologias, porém, com a diferença que seu enfoque não é somente a escola, mas a sociedade em geral.

Também os pesquisadores dos novos letramentos estão mais interessados em como as pessoas produzem novos objetos culturais, a partir de uma nova mentalidade, enquanto que os multiletramentos se preocupam com como as pessoas devem se adaptar a algumas lógicas capitalistas, como o trabalhador multitarefa, o que pode ser questionado por alguns. Afinal, alguém precisa disso no ensino? A escola brasileira está interessada em formar sujeitos para as demandas do trabalho contemporâneo? Já um dos pontos de congruência encontrado entre as duas teorias é a multissemiose, como já dito anteriormente, já que ela é reconhecida por ambas como uma característica dos enunciados contemporâneos que não pode ser negligenciada.