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O campo Universitário

No documento PUC-SP VILMA SILVA LIMA (páginas 60-68)

―[...] a universidade também é o lugar de uma luta para saber quem, no interior desse universo socialmente mandatário para dizer a verdade sobre o mundo social (e sobre o mundo físico), está realmente (ou particularmente) fundamentado para dizer a verdade.‖ (Bourdieu, 1990:116).

No Brasil o ensino superior, num espaço relativamente pequeno de tempo, protagonizou significativas mudanças. Nos anos 1960, o sistema contava com aproximadamente cem instituições de ensino, a maioria delas de porte médio ou pequeno. Essas organizações eram responsáveis por formar os intelectuais da elite nacional da época e, em geral, mantinham uma conduta de princípios ou, segundo Bourdieu (1985), - um ethos23 - que orientava todos os processos da hierarquia escolar.

Na citação abaixo, Bourdieu chama atenção para a relação que se estabelece entre o agente e a instituição da qual faz parte; no caso, o autor faz uma alusão ao curso de filosofia e ao cenário francês, mas que pode ser transportado para a realidade brasileira.

Produtos puros de uma instituição escolar triunfante, que concedia a sua "elite" um reconhecimento incondicional, transformando, por exemplo, um concurso escolar de recrutamento [...] numa instância de consagração intelectual [...], essas espécies de crianças prodígios se viam conferir por decreto, aos vinte anos de idade, os privilégios e as obrigações do gênio. Numa França econômica e politicamente diminuída, mas sempre tão senhora de si intelectualmente, podiam se consagrar com toda inocência à missão que lhes atribuíam a Universidade e toda uma tradição universitária habitada pela certeza de sua universalidade: ou melhor, uma espécie de magistério universal da inteligência (Bourdieu, 2005:57).

Incoerências e contradições, como foi visto, são inerentes às questões acerca da universidade brasileira desde a sua criação até os dias de hoje. Segundo Santos (2005), a universidade passa por uma crise formada a partir de três aspectos: o primeiro diz respeito à legitimidade, haja vista a manutenção de um conhecimento hierarquizado e de restrito acesso, por um lado, até a luta pela igualdade de oportunidade, por outro; o

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Bourdieu caracteriza ethos como um sistema de valores implícitos e interiorizados, que contribui para definir as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar.

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segundo envolve uma questão de hegemonia, visto que não cabe mais ao Estado, exclusivamente, a oferta do ensino superior e pesquisa, o que, consequentemente, resulta em produção de conhecimento extrauniversidade; e o terceiro reside numa questão puramente institucional que versa entre a contradição da autonomia universitária e a pressão exercida pela lógica do mercado.

As questões de legitimidade, de hegemonia e institucionais relacionadas por Santos (2005), para caracterizar a crise das universidades, somadas ao conceito de

campo desenvolvido por Bourdieu (1983), podem configurar-se como marcos iniciais para o estudo que se pretende. O conceito de campo relaciona-se ao espaço temático no qual se estabelecem relação de força mais ou menos desigual e onde os agentes travam luta pela manutenção de suas posições. Para Bourdieu, é característica de um

campo possuir hierarquia interna, espaços estruturados de posições, objetos de disputa e de interesses que são irredutíveis aos objetos, às lutas e aos interesses constitutivos de outros campos.

O campo científico é sempre o lugar de uma luta, mais ou menos desigual, entre agentes desigualmente dotados de capital específico e, portanto, desigualmente capazes de se apropriarem do produto do trabalho científico que o conjunto dos concorrentes produz pela sua colaboração objetiva ao colocarem em ação o conjunto dos meios de produção científicos disponíveis (Bourdieu, 1983:136).

A universidade configura-se como uma entidade que se materializa nos corpos docente e discente, no quadro técnico e administrativo, enfim, em sua estrutura física e administrativa, tendo suas práticas e ideias determinadas pela e para a sociedade e, portanto, reproduz as relações e os conflitos vivenciados tanto pelos agentes internos quanto pelos externos a este campo. O campo universitário configura-se como um espaço no qual há diversos interesses em jogo e os jogadores têm posições diversas, muitas vezes, consolidadas e, por isso, lutam para a manutenção ou conquista de posições. Segundo Bourdieu (2000:85), ―o jogador é obrigado a tomar posição, a se comprometer‖, em contexto no qual ―A única liberdade absoluta que o jogo concede é a liberdade de sair do jogo por meio de uma renúncia heróica, a qual, a não ser que crie outro jogo, não obtém a ataraxia senão à custa daquilo que é, do ponto de vista do jogo e da illusio, uma morte social‖ (Bourdieu, 2000:85).

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Apreende-se, portanto, que os agentes sociais fazem parte espacialmente de determinados campos sociais e a posse de alguns capitais, entre eles o cultural24,

condiciona a posição que eles ocupam no campo. Assim, espera-se que cada jogador conheça as regras do jogo dentro do campo social do qual faz parte. Evidentemente os agentes sociais criam realidades, travam lutas e relações visando à imposição de seus objetivos, porém sua influência está determinada em função da posição que ocupam no espaço que pretendem transformar.

As práticas que ocorrem no campo universitário orientam-se para a obtenção da autoridade científica, de status e, principalmente, do reconhecimento, o que, em maior ou menor grau, determinará as táticas e as diretrizes do jogo científico. A estruturação deste campo dá-se a partir de relações objetivas que se estabelecem entre os diferentes agentes. A magnitude da estrutura do campo, entre eles o científico, é medida em função da distribuição do capital - científico, social, político, artístico, esportivo e econômico – entre os agentes. Segundo Bourdieu (1989), os portadores de um quantum de capital (de qualquer natureza) optam por aceitar ou não as diretrizes da sociedade, uma vez que o espaço social constitui-se de posições diversas, definidas em função do tipo específico de capital que cada agente detém.

[...] falar de estratégias de reprodução não é atribuir ao cálculo racional, ou mesmo à intenção estratégica, as práticas através das quais se afirma a tendência dos dominantes, dentro de si mesmos, de perseverar. É lembrar somente que o número de práticas fenomenalmente muito diferentes organizam-se objetivamente, sem ter sido explicitamente concebidas e postas com relação a este fim, de tal modo que essas práticas contribuem para a reprodução do capital possuído. Isto porque essas ações têm por princípio o habitus, que tende a reproduzir as condições de sua própria produção, gerando, nos domínios mais diferentes da prática, as estratégias objetivamente coerentes e as características sistemáticas de um modo de reprodução (Bourdieu,1989:386).

Se, por um lado, as questões relacionadas ao campo orientam-se pelas dinâmicas das disputas ocorridas em seu interior, por outro, consubstanciam-se na

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Bourdieu (1998) observa que o capital cultural pode se apresentar em três modalidades: a primeira, a Objetivada, que diz respeito à propriedade de objetos culturais valorizados (livro / obras de artes); a segunda, trata-se da Incorporada, que se relaciona à cultura legítima, ou seja, aquela internalizada pelo indivíduo (habilidades linguísticas, crenças, conhecimentos, comportamento) ligada à cultura dominante; a terceira e última delas, a Institucionalizada, que compreende a posse de atestados que certificam a formação cultural.

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estrutura do habitus dos agentes existentes no campo, visto que o agente/jogador incorpora propriedades inerentes à lógica do campo. Para Bourdieu (2000), o habitus configura-se como um núcleo de sistema de classificação da realidade que pode ser desenvolvido ou incorporado pelos indivíduos dentro dos respectivos campos. Habitus não é destino, embora, na maioria das vezes, seja entendido como um sistema gerado no passado e direcionado para ação presente (Setton 2002).

O Conceito de habitus defendido por Bourdieu (1979, 1990, 1996, 1997, 1980) consiste no princípio norteador de práticas e de representações articuladas a partir de esquemas mentais construídos ao longo da trajetória do indivíduo.

[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (Bourdieu, 1983:65).

O conceito de habitus surge para conciliar a aparente oposição entre as realidades externa e interna na busca de mediação entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo, visto como um sistema de esquemas individuais formado no mundo social (estrutura) e na mente (estruturante). Trata-se, portanto, de uma matriz geradora de práticas distintas e distintivas, fruto da incorporação da estrutura social e da posição social de origem no interior do próprio sujeito.

Extrapolando a noção de habitus para a realidade acadêmica, seria como questionar o que veste e como veste o intelectual, seu esporte e seu modo de praticá- lo, suas opiniões e suas maneiras de expressá-las. Evidentemente, seu consumo e atividades seriam substancialmente diferentes dos de seus alunos, do corpo técnico administrativo e até de alguns de seus pares, mas é fato que cada sujeito, em função de sua posição social, vivencia uma série de experiências que estruturam seu comportamento, o qual não precisa ser seguido indeterminadamente, visto não se configurar como um conjunto inflexível de regras e, sim, como um princípio que pode ser adaptado de acordo com a conjuntura.

A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos), produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistêmico de bens e de propriedades, vinculados entre si, por afinidades de estilo. Uma das

49 funções da noção de habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular e de uma classe de agentes (Bourdieu, 1979:21).

A ação educativa/universidade sempre se revestiu de uma complexidade bastante exacerbada. Essa característica, na contemporaneidade, é ainda mais marcante devido à presença, em função da ―democratização‖ do ensino, de jovens das mais variadas origens sociais e culturais, sem falar das tecnologias da informação e da comunicação. A realidade mudou, mas será que as escolas e os professores também acompanharam essas mudanças? Como visto, as questões relativas à educação estão subordinadas a um conjunto de pressupostos históricos que determinaram e ainda determinam o processo de ensino e aprendizagem, e, evidentemente, esses mesmos pressupostos também foram decisivos para a formação do Estado Brasileiro e do

habitus inerente a esse campo.

A instituição escolar, com raríssimas exceções, não dialoga com as realidades sociais; sua estrutura basicamente seriada e predominantemente meritocrática, com tempos e espaços rígidos, difere-se da realidade e dos habitus de seus alunos. Florestan Fernandes (1979), ao refletir sobre a universidade, ressalta que, ―quando se tentou instituir a ‗universidade‘, não se pensou em corrigir os defeitos estruturais da ‗escola superior‘, e a ‗universidade brasileira‘ assumiu o caráter de uma conglomeração de escolas superiores‖. Se o habitus, como afirma Bourdieu, é o princípio gerador e unificador de uma classe que traduz seu estilo de vida, escolhas e práticas, talvez isso explique a dicotomia existente entre os interesses dos diversos agentes desse campo.

O campo universitário caracteriza-se pelo enraizamento de velhos habitus, muitas vezes cultivados propositalmente, para conferir status a seus agentes mais célebres. Concebido para legitimar a dominação exercida pelas classes dominantes, todas as práticas neste campo são orientadas pela busca da autoridade científica que determina, entre outras coisas, o prestígio e o reconhecimento de seus pares. A busca pela autoridade científica, na prática, produz o afastamento do professor pesquisador do ensino e da extensão, uma vez que estes preferem permanecer em seus laboratórios para obter maiores recursos financeiros, prestígio social e, consequentemente, progressão funcional, o que, para Bourdieu (1983), denomina-se como lucro simbólico, espécie de reconhecimento concedido pelos pares, no interior do campo.

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Bourdieu (1984) entende o sujeito da ciência - o homo academicus - como elemento do objeto da ciência, afastando-se da ilusão de ―intelectual‖ sem laços e nem raízes, e o caracteriza a partir de interesses específicos (postos acadêmicos, contratos de edição, reconhecimentos e gratidões), na maioria das vezes, imperceptíveis aos olhos daqueles que não fazem parte deste universo. Para ele, os intelectuais são, enquanto ‗detentores do capital cultural, um fragmento (dominado) da classe dominante, e muitas de suas posições, em relação à política, por exemplo, devem-se à ambiguidade de sua posição de dominados entre dominantes. A crítica de Bourdieu ao homo academicus torna-se ainda mais severa, à medida que analisa a sedução causada por produções supostamente científicas, por temas da moda.

Se, como diz Bourdieu, o habitus se apresenta em cada sujeito em função de sua posição na estrutura social, o que provoca uma série de experiências que estruturam internamente sua subjetividade, é importante destacar que as características do professor no Brasil – reflexo das dicotomias existentes no ensino superior – não são uniformes. Segundo Schwartzman; Balbachevsky (1997), existem três grupos de docentes no país:

a) Nas instituições paulistas (de referência) e em menor grau nas federais - professores mais qualificados, trabalhando em tempo integral, envolvidos em pesquisas com financiamento próprio, com pouca participação sindical e grande envolvimento acadêmico;

b) Nas instituições privadas e estaduais - professores com títulos de mestre e especialização, trabalhando em tempo parcial, dando expressivo número de aulas e prestando serviço ao setor;

c) Nas instituições públicas federais – predominância de professores de qualificação média, estáveis, de tempo integral, com grande envolvimento em atividades sindicais e corporativistas e produção científica relativamente pequena.

A Instituição Universitária brasileira não forma uma única categoria com os mesmos interesses, porém forjou-se a partir de um habitus característico de seus agentes, que a legitimam em função da transmissão de conteúdos e cultivo de avaliações de produtividade e competência, provocando seu distanciamento da

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comunidade que a compõe e que a rodeia. Nesse cenário, a universidade orienta-se pela geração, disseminação, ampliação e aplicação de conhecimentos, visando a dar sentido à vida na sociedade e, para isso, é necessário o rompimento com velhas fórmulas e conceitos. Esse campo é delimitado por muros, que num primeiro momento o protege, mas também o afasta do caminho da socialização de suas produções. A tevê universitária, objeto deste trabalho, coloca os agentes do campo universitário em situações novas em relação àquelas desenvolvidas entre os muros, podendo significar uma ampliação do campo.

Questões relativas à disseminação e à ampliação da atividade científica constituem-se como temas amplamente discutidos nos diversos campos subjacentes ao universitário. O ponto crucial desta discussão refere-se ao habitus dos agentes deste

campo que, normalmente, utilizam uma linguagem elitizada e de difícil entendimento por parte daqueles que não compõem o campo. A autoridade científica, como visto, legitima-se na luta concorrencial, travada entre os agentes do próprio campo, não existindo espaço para julgamentos externos.

O estado da arte acerca da divulgação científica será amplamente discutido no capítulo três, por ser o momento no qual se discutirá o espaço do Canal Universitário neste amplo campo, entendido como um eficiente espaço para a divulgação científica, na medida em que se constitui como uma vitrine pela qual as inúmeras possibilidades acadêmicas podem ser descortinadas e divulgadas para a sociedade.

Neste primeiro capítulo discutiram-se aspectos relevantes da inserção da universidade no Brasil. Na sequência, discutiremos a trajetória da televisão no Brasil, para, no capítulo seguinte, analisar caminhos de convergência entre estes dois campos, que teria ocorrido com a implantação das tevês universitárias.

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Capítulo 2 - O campo televisivo: formulações

contemporâneas

Este capítulo tem como foco a apresentação, a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental, da televisão no contexto contemporâneo. Para isso buscaram-se dados relativos às condições de sua implantação e desenvolvimento no país – quem eram seus agentes na época; quais lutas se travaram para a distribuição das posições dentro deste campo; a tevê pública (canais universitários, canais legislativos, canais comunitários) X tevê privada; o contexto da digitalização da tevê e suas consequências.

“Tire a televisão de dentro do Brasil e o país desaparece” Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás

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