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O CASO E O CONTEXTO: CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

COMENTÁRIOS AO ACÓRDÃO DO SUPREMO

3. O CASO E O CONTEXTO: CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Antes de passar à análise do julgado objeto destes comentários, é necessário fazer alguns brevíssimos esclarecimentos sobre o modelo de decisão adotado pelo Supremo Tribunal Federal e sua repercussão no que diz com a eficácia do sistema de precedentes previsto no art. 927 do Código de Processo Civil em vigor: no que diz respeito ao modelo de decisão, porque reflete na compreensão do próprio conceito de precedentes adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro; no que diz respeito ao sistema de precedentes, por sua vez, porque importa conhecer o conteúdo e os limites da eficácia vinculante da decisão preferida.

É o que se pretende fazer agora, na medida indispensável à análise do acórdão do tribunal.

3.1 CORTES SUPREMAS: MODELOS DE DECISÃO

Nos ordenamentos filiados aos sistemas do Common Law e do Civil Law considera-se basicamente a existência de dois modelos de deliberação dos órgãos judiciais colegiados: o modelo per curiam, expressão latina que significa pelo tribunal;

o modelo seriatim, expressão latina que pode ser traduzida pela expressão em série.

O modelo per curiam se caracteriza por decisão única, tomada em nome da Corte, sem que de ordinário haja identificação dos votos de seus integrantes. Pouco importa se se trata de decisão tomada à unanimidade ou por maioria dos votos dos integrantes do tribunal, a decisão é do tribunal.

Esse é o modelo clássico, mas admite-se uma variação do modelo per curiam na qual é mencionada a circunstância de a decisão ter sido tomada à unanimidade ou por maioria de votos.

Já o modelo seriatim se caracteriza por considerar as posições individuais dos integrantes do tribunal, inclusive as decisões divergentes, sendo possível avaliar como cada juiz decide determinado caso.

O direito brasileiro adota o modelo seriatim, no qual são considerados os votos de todos os integrantes do órgão colegiado, o que se reflete, inclusive, no arranjo institucional do sistema recursal.

Para os objetivos deste texto, no entanto, interessa apenas considerar que no modelo seriatim o precedente a ser extraído da decisão haverá de considerar os fundamentos determinantes (rationes decidendi) de todos os votos que compõem o resultado do julgamento proferido; por aí já se vê que a empreitada, só por esta razão, torna-se mais complexa.

3.2 PRECEDENTES JUDICIAIS: UM BREVÍSSIMO ESCLARECIMENTO

Não é objetivo deste trabalho analisar o sistema de precedentes judiciais adotado no país, senão apenas ressaltar que estes comentários pretendem avaliar a tese jurídica fixada pela Suprema Corte a partir dos fundamentos determinantes constantes nos votos proferidos.

Nesse sentido, o texto procura trabalhar a compreensão da tese jurídica fixada - e de seus possíveis problemas - tendo em linha de consideração a motivação de cada voto, empreitada que se revela particularmente importante no caso do Recurso Extraordinário 654.833/AC, na medida em que se percebe a inexistência de disciplina legal geral da matéria; há previsão de prazo prescricional em legislação específica, que

cuida da responsabilidade civil decorrente de acidente nuclear, mas a questão só foi enfrentada em um dos votos divergentes.

Em outras palavras, a análise da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal só pode ser adequadamente feita se considerados os fundamentos que levaram à conclusão de que é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.

3.3 O CASO SUBMETIDO A JULGAMENTO

O caso levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal decorreu da invasão da Terra IndígenaAshaninka-Kampo do RioAmônia, situada no Estado doAcre, entre os anos de 1981 e 1987, com a finalidade de extrair madeira de elevado valor de mercado (mogno, cedro e cerejeira).

Essa exploração, que teria sido promovida por pessoas físicas e jurídicas, provocou a devastação da mata, a abertura irregular de estradas, o assoreamento e a poluição de rios pelo descarte de óleo das máquinas utilizadas na atividade ilegal. A título ilustrativo, houve prova pericial concluindo que foram derrubadas cerca de 1.700 árvores.

A demanda proposta buscou a reparação de danos materiais, morais e ambientais provocados pela extração ilegal de madeira.

A ação civil pública teve o pedido acolhido na 1ª instância, sendo os corréus condenados à reparação de danos materiais e morais.

Contra essa decisão houve interposição de apelação ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que manteve a condenação proferida em 1ª instância, mas reconheceu a possibilidade de prescrição da pretensão de reparação do dano ambiental com base nos prazos fixados no Código Civil revogado, mantendo-se a condenação por não ter havido o transcurso do prazo previsto no Código Civil revogado⁵.

O julgamento da apelação foi objeto de recursos extraordinário e especial.Apenas o recurso especial foi admitido, mas não provido, por reconhecer o Superior Tribunal de Justiça a imprescritibilidade da pretensão de reparação do dano ambiental⁶, o que desafiou o Recurso Extraordinário em análise.

5 PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL. INVASÃO E EXTRAÇÃO ILEGAL DE MADEIRA EM TERRA INDÍGENA. (...). PRESCRIÇÃO. PRAZO DE VINTE ANOS. (...). 12. Na vigência do Código Civil de 1916, era vintenário o prazo prescricional relativo à pretensão de obter indenização por danos (materiais, morais e ao meio ambientais) resultantes de invasão de terra indígena, abertura irregular de estradas, derrubada de árvores e retirada de madeira, com ação adversa sobre sua organização social, costumes, tradições e meio ambiente. (...). (AC 2.000.01.00.096900/AC).

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar Recurso Extraordinário 654.833/AC interposto contra o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, fixou a seguinte tese: é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.

Veja-se, a propósito, a ementa do julgado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL.

TEMA 999. CONSTITUCIONAL. DANO AMBIENTAL.

REPARAÇÃO. IMPRESCRITIBILIDADE. 1. Debate-se nestes autos se deve prevalecer o princípio da segurança jurídica, que beneficia o autor do dano ambiental diante da inércia do Poder Público; ou se devem prevalecer os princípios constitucionais de proteção, preservação e reparação do meio ambiente, que beneficiam toda a coletividade. 2. Em nosso ordenamento jurídico, a regra é a prescrição da pretensão reparatória. A imprescritibilidade, por sua vez, é exceção. Depende, portanto, de fatores externos, que o ordenamento jurídico reputa inderrogáveis pelo tempo. 3. Embora a Constituição e as leis ordinárias não disponham acerca do prazo prescricional para a reparação de danos civis ambientais, sendo regra a estipulação de prazo para pretensão ressarcitória, a tutela constitucional a determinados valores impõe o reconhecimento de pretensões imprescritíveis. (...). 4. O meio ambiente deve ser considerado patrimônio comum de toda humanidade, para a garantia de sua integral proteção, especialmente em relação às gerações futuras.

Todas as condutas do Poder Público estatal devem ser direcionadas no sentido de integral proteção legislativa interna e de adesão aos pactos e tratados internacionais protetivos desse direito humano fundamental de 3ª geração, para evitar prejuízo da coletividade em face de uma afetação de certo bem (recurso natural) a uma finalidade individual. 5. A reparação do dano ao meio ambiente é direito fundamental indisponível, sendo imperativo o reconhecimento da imprescritibilidade no que toca à recomposição dos danos ambientais. (...).

6 ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL - DIREITO AMBIENTAL- AÇÃO CIVIL PÚBLICA - (...) IMPRESCRITIBILIDADE DA REPARAÇÃO DO DANO AMBIENTAL (...). 6. O direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal. 7. Em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias; se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer, considera-se imprescritível o direito à reparação. 8. O dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental. (...). (REsp. 1.120.117/AC)

Encerrado esse apanhado fático necessário para a contextualização do caso, passa-se a efetiva análise dos votos proferidos pelos Ministros, o que será objeto do tópico seguinte.

4. ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DETERMINANTES DO JULGADO