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CAPÍTULO 1 – GRAMÁTICAS POLÍTICAS: INSTITUIÇÕES NA FORMAÇÃO DO ESTADO

1.2 Formação do Estado: do patrimonialismo ao clientelismo

1.2.5 O conceito de clientelismo

No clientelismo, as trocas são generalizadas e pessoais. A troca generalizada, característica do clientelismo, é diferente da troca específica, típica do capitalismo moderno. Neste,

o processo de troca e aquisição de qualquer bem não inclui a expectativa de relações pessoais futuras, nem depende da existência de relações anteriores entre as partes envolvidas (...) as trocas ocorrem sem preocupação com as características pessoais dos indivíduos envolvidos; elas são caracterizadas pelo impersonalismo.79

Para Nunes, o impersonalismo é um dos constituintes básicos do mercado livre e também a base da noção de cidadania.

O conceito de clientelismo, universalmente utilizado, deve ser cuidadosamente empregado para evitar uma extensão demasiada, que deseje inadequadamente encobrir situações diversas. Na literatura internacional, muitos não concordam em restringi-lo à idéia de atributo de um sistema; outros querem aplicá-lo apenas à política local; outros ainda o vêem como um sistema global.80 Para Carvalho, o conceito de clientelismo em geral é empregado de maneira frouxa. O autor utiliza o conceito limitando-o a relações de troca entre atores políticos, como um atributo variável de sistemas políticos macro.81

Genericamente, o clientelismo pode ser caracterizado pelo controle informal do fluxo de recursos materiais em relações e redes personalistas nas quais há relações assimétricas por diferença de poder, geralmente envolvendo concessão de benefícios públicos.

Sobre a confusão entre os conceitos de coronelismo e mandonismo, Carvalho esclarece que o coronelismo se apresenta como um sistema político, uma complexa rede de relações que permeia todos os níveis de atuação política e

não apenas como mandonismo local. E continua: o surgimento do coronelismo

implica a decadência do poder do coronel, ou seja, o enfraquecimento do

79 NUNES, 2003, op. cit., p. 27-8.

80 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo. op. cit. 81 Idem.

mandonismo.82 Leal entende que o mandonismo sempre existiu apresentando-se

como uma característica do coronelismo. Dessa forma, reforça Carvalho, o mandonismo não é um sistema, é uma característica da política tradicional. Existe desde o início da colonização e sobrevive ainda hoje em regiões isoladas. Nessa perspectiva, o mandonismo desaparecerá completamente quando os direitos civis e políticos alcançarem todos os cidadãos. A história do mandonismo confunde-se com a história da formação da cidadania.83

No que respeita à diferença entre os conceitos de coronelismo e clientelismo, observa-se que, assim como o mandonismo, o clientelismo é uma característica do coronelismo. A sociedade brasileira é tradicionalmente clientelista. Não obstante, na medida em que o clientelismo pode mudar de parceiros, ele pode aumentar e diminuir ao longo da história, em vez de percorrer uma trajetória sistematicamente decrescente como o mandonismo. Daí ser mais útil delimitar o conceito [de coronelismo] no sentido de restringir-se a um momento do processo.84 A partir dos termos da construção do compromisso coronelista, era comum a já citada concessão de favores e as nomeações de funcionários para cargos no município. O clientelismo, isto é, a troca de favores com o uso de bens públicos, sobretudo empregos, tornou-se a moeda de troca do coronelismo.85 Entretanto, no coronelismo, como esclarece Carvalho, o controle do cargo público é mais importante como instrumento de dominação do que como empreguismo. O emprego público adquire importância em si, como fonte de renda, exatamente quando o clientelismo cresce e decresce o coronelismo.86

É de se notar que os três conceitos são relacionados, porém não sinônimos. Além de guardarem sua especificidade, assumem curvas diferentes de evolução.

82 CARVALHO, José Murilo de. Coronelismo. In: ABREU, Alzira Alves de. et al (coord.). Dicionário

Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 1598. (Destaques

meus).

83 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo. op. cit. 84 CARVALHO, José Murilo de. Coronelismo. op. cit., p. 1598.

85 CARVALHO, José Murilo de. As metamorfoses do coronel. Política Democrática Revista de

Política e Cultura, 2001, v.1, n.1, p. 18.

O coronelismo retrata-se com uma curva tipo sino: surge, atinge o apogeu e cai num período de tempo relativamente curto. O mandonismo segue uma curva sempre descendente. O clientelismo apresenta uma curva ascendente com oscilações e uma virada para baixo nos últimos anos.87

Eisenstadt e Roninger defendem que o clientelismo é um sistema caracterizado por situações paradoxais. Tal paradoxo estaria presente numa combinação entre desigualdade e assimetria de poder e uma, pelo menos aparentemente, solidariedade mútua. Essa solidariedade se daria em termos de identidade pessoal e de sentimentos e obrigações interpessoais. Haveria, também, uma combinação de exploração e potencial coerção com relações voluntárias e obrigações mútuas imperiosas. Além disso, um arranjo dessas obrigações e solidariedade com a necessidade de burlar a legalidade, caracterizando um aspecto ligeiramente ilegal ou semilegal destas relações.88

O clientelismo é um importante mecanismo de contraposição à centralização burocrática estatal. Redes pessoais e hierárquicas desempenham a função de canais simulados para a participação, competição e alocação de recursos de acordo com as demandas oriundas de baixo.89 Ações baseadas em contatos e relações pessoais e hierárquicas são cruciais para um sem número de questões. Pode-se obter um emprego, a apropriada assistência médica e, até mesmo, a aprovação de um pedido feito a um órgão público. Pode-se dizer que uma chamada “cultura do jeitinho”,90 largamente utilizada no Brasil, reforça a tradição clientelista nacional. Os brasileiros enaltecem o jeitinho (isto é, uma acomodação privada e pessoal de suas demandas) e a autoridade pessoal como mecanismos cotidianos para regular relações sociais e relações com instituições

87 Idem.

88 EISENSTADT, S. N. & RONINGER, Luiz. Patron-Client relations as a model of structuring social exchange. Comparative Studies in Society and History 22, n. 1, 1980.

89 NUNES, 2003, op. cit., p. 29.

90 Para uma produtiva análise do “jeitinho” brasileiro, cf. DA MATTA, Roberto. Carnavais,

malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Nunes lembra, a partir do que Da Matta mostrou

em seus trabalhos, que a sociedade brasileira é extremamente forte e organizada fora da esfera

das instituições políticas formais. Afirma que os cientistas sociais, em suas análises sobre o Brasil, freqüentemente descuraram o estudo das verdadeiras instituições sociais como o ‘jeitinho’, a amizade, as redes de relações sociais e assim por diante, porque esses elementos são aparentemente ‘informais’ e fluidos. Em conseqüência, a tendência é ignorá-los ou considerá-los inconseqüentes para o estudo de outros eventos políticos e sociais. De outro lado, o corporativismo, o autoritarismo burocrático, a formulação autoritária de políticas etc., tendem a ser formalizados em códigos e procedimentos legais, pelo que são analisados com mais freqüência e encarados com seriedade (NUNES, 2003, op. cit., p. 41).

formais.91 Nunes argumenta que as instituições formais do Estado ficaram

altamente impregnadas por este processo de trocas de favores, a tal ponto que poucos procedimentos burocráticos acontecem sem uma ‘mãozinha’.92

Trata-se de uma gramática que permanece incrustada na trajetória política brasileira.

91 Idem, p. 32.

CAPÍTULO 2 – SURGIMENTO DAS NOVAS GRAMÁTICAS