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CAPÍTULO 1 – GRAMÁTICAS POLÍTICAS: INSTITUIÇÕES NA FORMAÇÃO DO ESTADO

1.2 Formação do Estado: do patrimonialismo ao clientelismo

1.2.3 Oligarquia e coronelismo

O recuo do patrimonialismo e o avanço da burocracia propiciaram, ao final do século XIX, o surgimento de um fenômeno caracterizado por compromissos e trocas, o coronelismo.

A instauração da República em 1889 propiciou a ascensão e o estabelecimento das oligarquias regionais no plano nacional. O novo sistema federativo deu poder aos Estados, consolidando um sistema fundado em práticas clientelistas de troca de favores e apoio recíproco entre três entes políticos nacionais. Em nível municipal, os coronéis ou potentados locais, que em diversas unidades da federação exerciam seu poder de mando por meio da proteção dos indivíduos desprovidos concedendo-lhes acesso a recursos materiais, emprego ou renda. Em nível federal, apesar da descentralização político-administrativa, o Estado encontrava-se fortalecido pela recém-instauração do novo regime Republicano, e contava com o apoio político das principais oligarquias estaduais, inicialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e, mais a frente, Rio Grande do Sul. Entre esses dois pólos de poder, os coronéis e o governo federal, estavam exatamente as elites hegemônicas estaduais, representantes da então ascendente base da sustentação econômica nacional, a burguesia do café, sobretudo do Estado de São Paulo.

O coronelismo é definido por Leal61 como um sistema político

nacional baseado em barganhas entre o governo e os coronéis, representantes da oligarquia local. Ocorre em um período bem definido, como resultado de uma conjuntura econômica associada a um fato político específicos. O período corresponde ao da Primeira República. O fato político é a implantação, a partir de 1889, do federalismo em substituição ao centralismo imperial. Cria-se, então, uma figura que já surge dotada de amplos poderes de atuação política: os governadores de estado, diferentes dos antigos presidentes de Província. Estes últimos foram durante o Império os atores da confiança do Ministério, porém sem poder próprio. Não reuniam condições para construir bases de poder na Província, pois, além de serem muitas vezes recém chegados a ela, podiam ser substituídos no cargo a qualquer momento. Os governadores, ao contrário, eram eleitos pelas máquinas políticas dos estados. Correspondiam, então, aos chefes da política de sua região. Coube às oligarquias se organizarem em torno dos governadores para reforçar seu poder de mando local.

A conjuntura econômica, continua o autor, era a decadência dos fazendeiros, fato que coloca em evidência a dupla dependência das partes. De um lado, a conveniência do governo estadual de contar com o apoio político local para a manutenção de seu aparato de poder. De outro, a necessidade de respaldo oficial pelos senhores de terras e comerciantes locais para sustentação de seu negócio, o que se dava por meio da concessão de favores, cargos e poder de mando. Nas palavras de Carvalho, as tensões entre o latifúndio e o Estado, entre o coronel e o governo estadual, entre a ordem privada e a ordem pública são postas, na obra Coronelismo, enxada e voto, numa relação antes de complementaridade em que os dois lados se afetavam mutuamente e mesmo se

61 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997 [1948]. Considerado um clássico da literatura política brasileira, Coronelismo... é referido por José Murilo de Carvalho como a primeira obra

importante da moderna sociologia política brasileira. Valorizando o caráter interdisciplinar e

empiricamente fundamentado, Victor Nunes iria antes buscar no estudo cuidadoso e

pormenorizado do município, de sua economia, de sua estrutura social, de seu governo, as bases para as generalizações sobre o sistema político nacional. CARVALHO, José Murilo de. Em louvor

reforçavam.62 Em sua clássica obra, Leal sintetiza a essência do compromisso

coronelista da seguinte forma:

da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive da nomeação de funcionários estaduais do lugar.63

Na prática, o compromisso correspondia a uma certa garantia pelo governo estadual do poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais em troca da promessa de apoio do coronel ao governo. No primeiro caso, a garantia se dava por meio do controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O retorno do coronel seria dado principalmente na forma de votos.

Em que pese o fato de que a obra de Leal teve de início vida obscura,64 sua leitura tornou-se quase obrigatória para os que se dedicassem ao tema a partir da década de 1960. Apesar do esforço do autor, a ampla citação ensejava o risco da má leitura que poderia se dar especialmente na confusão entre os conceitos de coronelismo e de mandonismo, o que poderia levar ao distanciamento do ponto teoricamente mais rico da obra de Leal, qual seja o aspecto de sistema coronelista. Sobre a especificidade de seu conceito de coronelismo, Victor Nunes pondera: quando Eul-Soo Pang,65 em sua obra notável

sobre a liderança local na Bahia, define o coronelismo, não é evidentemente ao meu coronelismo [de Coronelismo, enxada e voto] que se refere.66 Pang atribui ao

coronel um status de senhor absoluto que exerce um poder monopolizante, ao passo que Nunes Leal estuda a figura do coronel por ser parte de um sistema: não há uma palavra no meu livro pela qual se pudesse atribuir o status de senhor

62 CARVALHO, José Murilo de. Em louvor..., op. cit.

63 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto, op. cit., p. 70.

64 CARVALHO, José Murilo de. In Memoriam – Victor Nunes Leal (1914 – 1985). Dados, 1985, v. 28, n. 2, p. 141.

65 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias (1881-1943). A Bahia na Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

absoluto ao coronel, ou às expressões pessoais de mando do sistema coronelista, pois o que procurei examinar foi sobretudo o sistema.67

Além de interpretações diversas, o trabalho de Nunes Leal gerou um intenso debate sobre a validade dos pressupostos e das conclusões de sua pesquisa sobre o coronelismo. O debate entre Paul Cammack e Amilcar Martins Filho, sumarizado a seguir, é um bom exemplo.68 Cammack, ao questionar o “compromisso coronelista” de Leal, defende uma posição tradicional segundo a qual o sistema político da época seria dominado pelos proprietários rurais, havendo, dessa forma, a representação de seus interesses pelo Estado. Para Cammack, os pressupostos do compromisso estabelecido entre os coronéis e o governo – quais sejam o controle dos votos pelos senhores de terra e o valor do voto como mercadoria política – seriam falsos. O controle dos votos não seria regra, pois no período haveria grande fluxo migratório ocasionado pelo fim do regime escravocrata e pela expansão da economia cafeeira. Não se poderia afirmar que os “trabalhadores rurais eram suficientemente dependentes de um só empregador a ponto de serem compelidos a votar segundo sua vontade”.69 “Quanto ao valor do voto como mercadoria”, avalia Carvalho, “a crítica faz sentido, a votação pouco valia na época”.70 Segundo relatos da época, havia fraudes na apuração e proclamação dos eleitos e a proporção de eleitores na população economicamente ativa era muito pequena. Na visão de Martins Filho, por outro lado, Cammack comete uma série de impropriedades, começando pela simplificação da historiografia sobre a época e a omissão de obras clássicas como Os donos do poder, de Faoro. Cammack limitaria a “interpretação clientelística” à literatura sobre coronelismo analisada por ele. Faz, assim, uma verdadeira confusão entre os conceitos, o que gera uma associação necessária entre eles. Como conseqüência, a análise de Cammack, ao negar a existência do sistema coronelista proposto por Leal, nega também a validade das interpretações clientelísticas dos estudiosos do período.

67 Idem, p. 13.

68 Cf. CAMMACK, Paul. O “coronelismo” e o “compromisso coronelista”: uma crítica. Cadernos do

Departamento de Ciência Política, Belo Horizonte, 1979, n. 5, p. 1-20; e MARTINS FILHO,

Amilcar. Clientelismo e representação em Minas Gerais durante a Primeira República: uma crítica a Paul Cammack. Dados, 1984, v. 27, n. 2, p. 175-197.

69 CAMMACK, Paul. O “Coronelismo”..., op. cit., p. 6. 70 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo..., op. cit.

Com a decadência do sistema oligárquico, a relação do Estado com a sociedade mudaria significativamente. A partir de então, pode-se dizer que há uma tendência crescente de o Estado representar interesses de classe e não de grupos mais bem definidos. A oligarquia, que teve seus tempos mais áureos durante a Primeira República, tem sérias dificuldades para se reproduzir nas novas condições políticas, econômicas e sociais dos últimos anos da década de 1920. Em se tratando da conjuntura econômica, é importante registrar que o estabelecimento de uma nova dinâmica produtiva, com a crescente urbanização e industrialização do país, aliada ao crescimento e organização da classe trabalhadora, gerou conseqüências para a relação de forças no plano político. O movimento grevista de amplitude mundial nos anos de 1917 a 1920, reforçado pelo início da Primeira Guerra ajudou a colocar em evidência as diferenças entre elites regionais e ao fracionamento no seio desse grupo hegemônico.

Do ponto de vista social, a pressão exercida pela nascente classe média urbana é um fator desestabilizador importante. Profissionais liberais e jornalistas, estavam intimamente ligados ao aparelho de Estado, na qualidade de funcionários públicos. Eram em grande medida os formadores da opinião pública nacional e, frontalmente ao ideário oligárquico, defendiam a ampliação da participação política em geral, como fator de estabelecimento de uma democracia liberal.

Soma-se a isso a insatisfação de um contingente de jovens oficiais do escalão intermediário do exército, relacionados ao movimento tenentista. Com um ideal de Estado forte, capaz de integrar o povo e unificar a nação, eles divergiam da pragmática concepção de República das principais oligarquias do país, em especial a do Estado de São Paulo, que deseja não mais que a garantia de seus negócios privados e a autonomia do Estado para os assuntos econômico- financeiros. Não que se possa dizer que o exército brasileiro fosse uma instituição majoritariamente oposta ao sistema oligárquico. Entretanto, a permanente sensação de incômodo dos militares frente ao descaso da elite dominante na condução dos assuntos nacionais terminou por gerar uma mobilização suficiente para a insurreição dos oficiais.

Os militares viabilizaram a instauração da República e forneceram os primeiros quadros para a sua direção, tanto em nível federal quanto em mais da metade dos Estados. Porém, o refluxo de sua participação na condução política nacional abriu espaço para o crescimento e a consolidação das grandes oligarquias, sobretudo a dos Estados cuja base econômica em expansão favorecia o desenvolvimento daquelas frações dominantes. Com o recuo dos militares em suas operações no campo político, abriu-se uma janela para a consolidação do sistema oligárquico: estabelecia-se então a política dos governadores. Arquitetada durante o governo do então presidente Campos Sales (1898-1902), e conduzida por ele, o objetivo principal era o de forjar um acordo entre os principais Estados e o governo federal para a sustentação política recíproca, minando as dissidências regionais e a oposição do Legislativo ao Executivo. O desenvolvimento das alianças entre Estados para as disputas nacionais redundou em uma sucessão de diferentes conformações políticas que relativizaram o arranjo inicial de compromisso da Primeira República, a política do café-com-leite, fruto do pacto entre São Paulo e Minas Gerais para seu revezamento na ocupação da Presidência da República.

A imposição do candidato mineiro Artur Bernardes, pelo bloco Minas Gerais-São Paulo em 1922, gerou um reação importante do Rio Grande do Sul que, em associação aos Estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia, formou a chamada Reação Republicana. Uma bandeira de destaque do grupo foi o grande descontentamento com a condução da política econômica e a restrição de privilégios ao café em detrimento de outros produtos brasileiros para exportação ou consumo interno, como o charque, fundamental para a economia gaúcha. Em 1929, novamente a insatisfação com o candidato oficial, nesse caso o paulista Julio Prestes, indicado pelo conterrâneo e então presidente Washington Luís, conseguiu unir de um mesmo lado os estados do Rio Grande do Sul e Minas, que contaram com o apoio do Partido Democrático (PD) de São Paulo, formando a Aliança Liberal. O PD, formado por jovens filhos das famílias tradicionais e dos fazendeiros do café, por industriais e, sobretudo, por profissionais liberais de classe média, é o produto da ruptura do monopólio político do Partido Republicano Paulista, que revelou o declínio em que se encontrava a oligarquia paulista em fins da década de 1920. Boris Fausto considera que o

aprofundamento da crise do sistema oligárquico deveu-se, portanto, mais ao reaparecimento de conflitos entre os Estados e de problemas de ajuste do pacto oligárquico, embora já num novo contexto.71 O autor chama a atenção, ainda,

para o papel desempenhado pela juventude na oposição política ou na atividade revolucionária, especialmente durante a década de 1920. Este traço esteve presente tanto no Partido Democrático de São Paulo, quanto no tenentismo, movimento de jovens oficiais do exército.

A crise no sistema oligárquico pode ser interpretada, portanto, como uma conseqüência da incapacidade do sistema em responder às demandas resultantes da nova conformação social e política. A decadência do sistema oligárquico não eliminaria, de imediato, as relações coronelistas na República, ou federação das oligarquias.72 Nas zonas rurais e nos mais distantes rincões, tanto mais afastados do Centro-Sul do país, estaria presente a figura do coronel. Passados poucos anos da Revolução de 1930, não seria fácil identificar aquele sistema coronelista da República Velha. No entanto, permaneceu a base sobre a qual se erigia o compromisso coronelista, qual seja, as trocas de caráter assimétrico, no sentido vertical, entre agentes em pólos opostos da escala de poder, materializadas nos favores e concessão de benesses públicas, o clientelismo. Reconfigurado e em operação em novos ambientes – os espaços urbanos – o clientelismo seria, a partir de então, a moeda de troca para os partidos e máquinas políticas ganharem o apoio e a fidelidade dos eleitores.

O coronelismo pode ser localizado no tempo durante o período da Primeira República. Nas palavras de Carvalho, o coronelismo, como sistema nacional de poder, acabou em 1930, mais precisamente com a prisão do governador gaúcho, Flores da Cunha, em 1937. Para o autor, o centralismo estado-novista destruiu o federalismo de 1891 e reduziu o poder dos governadores e de seus coronéis.73 Com a perda de poder dos coronéis, que praticamente cessou a partir de 1930, os políticos (e os governos) passam a

71 FAUSTO, Boris. Brasil: estrutura social e política da Primeira República, 1889-1930. BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: de 1870 a 1930, volume V. São Paulo: Universidade de São Paulo; Imprensa Oficial do Estado. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2002, p. 805 72 Na expressão de FAUSTO, Boris. Brasil: estrutura social e política da Primeira República, 1889- 1930. op cit., p. 771.

estabelecer relações clientelísticas com os eleitores, em que pese o avanço de um novo ordenamento legal para os processos eleitorais. A continuidade da política de clientela se dá junto a uma política ideológica, que poderia ser considerada como caracteristicamente urbana. Há chefes políticos tipicamente urbanos que baseiam sua carreira e máquinas eleitorais na capacidade de atender demandas de benefícios visíveis e imediatos em troca da garantia de votos.74 Nunes sustenta que quase todos os autores que escrevem sobre os partidos políticos brasileiros concordam que o clientelismo é uma de suas características mais marcantes.75 Entretanto, segundo o autor, o clientelismo é apontado como uma característica apenas da República Velha, associada à política do “café-com-leite”.