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CAPÍTULO 2 – SURGIMENTO DAS NOVAS GRAMÁTICAS POLÍTICAS: O PROCESSO DE STATE

2.1 A gramática do corporativismo

2.1.5 O neocorporativismo

A abordagem que enfatiza a autonomia dos grupos na sociedade para explicar o corporativismo é normalmente utilizada pela vertente denominada societal. A principal diferença com a vertente corporativista estatal pode ser atribuída à origem dos grupos, quer seja na própria sociedade, quer seja por criação ou indução do Estado. Lijphart aponta que o corporativismo muitas vezes recebe qualificações para distingui-lo das formas autoritárias de corporativismo em que grupos de interesse são totalmente controlados pelo Estado.122 Outras denominações comuns são “corporativismo democrático”, “corporativismo societário” ou “neocorporativismo”. Essa vertente acredita numa espécie de organização natural ou autônoma dos grupos sociais, que, somente após sua constituição, são reconhecidos e legitimados pelo Estado. É comum que seus estudos abordem casos de democracias liberais do período pós-segunda guerra, especialmente em países da Europa. Seus objetivos são estudar tanto a intermediação de interesses, quanto a participação social dos grupos no sistema político, que proporcionam a sua intervenção na formulação e na implementação de políticas públicas.

Araújo & Tapia identificam duas vertentes dentro do neocorporativismo: a marxista e a estruturalista. A primeira enfatiza as análises classistas para explicar o corporativismo. No caso da estruturalista, apesar de se reconhecer a importância das classes para o fenômeno corporativista, a ênfase recai sobre as estruturas e arranjos político-organizacionais.

121 STEPAN, op. cit., p. 91.

122 LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 197.

Da análise classista de Offe e Wiesenthal,123 pode-se extrair que o

neocorporativismo é um elemento indissociável da estrutura de classes e do sistema capitalista, visando à redução dos conflitos classistas. Os autores apontam diferenças entre os arranjos corporativos das organizações dos capitalistas e dos trabalhadores. O papel dos sindicatos é discutido para se esclarecer se tais estruturas propõem a organização do trabalho, dos trabalhadores, dos interesses dos trabalhadores ou da sua força de trabalho. Os sindicatos de trabalhadores seriam uma forma secundária de organização, que tem no capital a fonte primária. O artigo propõe uma reflexão teórica sobre o conceito político de interesse de grupo como produto da lógica da ação coletiva. Tal conceito serviria para promover o obscurecimento da categoria de classe social, através da prática intelectual de equacionar o desigual. Para os autores,

se a forma organizacional pura de representação de interesse é igualmente acessível aos grupos do capital, do trabalho e a outros, então não há razão para pressupor que o uso dessa instrumentalidade perfeitamente neutra resultará em algo semelhante à assimetria sistêmica da riqueza e do poder (isto é, desigualdade social).124

A discussão dos autores tem como referência declarada o propalado trabalho de Mancur Olson, A lógica da ação coletiva. Przeworski já se referiu ao principal suposto no trabalho de Olson, qual seja, de que as pessoas que partilham interesses e condições de vida não agiriam coletivamente, em geral, para promover esses interesses, como a implicação mais danosa do individualismo metodológico. A conclusão de Przeworski é que, se isso for verdade, não podemos esperar que a classe trabalhadora se transforme jamais num sujeito histórico coletivo, uma classe para si com todas as conseqüências decorrentes.125 Entretanto, as duas lógicas sustentadas no artigo de Offe e Wiesenthal se referem às lógicas antagônicas subjacentes ao desenvolvimento do capitalismo, proposição central do materialismo histórico de Marx: de um lado a “lógica do lucro”, e, de outro, a lógica do caráter crescentemente “social” das forças de produção.126 Offe e Wiesenthal argumentam que, além das diferenças

123 OFFE, Claus & WIESENTHAL, Helmut. Duas lógicas da ação coletiva: anotações teóricas sobre classe e forma organizacional. In: OFFE, Claus (ed.). Problemas estruturais do Estado

capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 56-118.

124 OFFE & WIESENTHAL, op. cit., p. 61.

125 PRZEWORSKI, Adam. Marxismo e teoria da escolha racional. Op. cit. 126 OFFE & WIESENTHAL, op. cit., nota 4, p. 112.

de poder, as organizações de grupos em diferentes posições na estrutura de classes apresentam diferentes práticas associativas, ou lógicas da ação coletiva, através das quais as organizações do capital e do trabalho tentam melhorar sua posição respectiva, uma em relação a outra.127

A vertente do neocorporativismo denominada de estruturalista apresenta o corporativismo tanto como um modelo de articulação de interesses, quanto como um modelo de formação de políticas públicas. Considera-se que ela representa um paradigma dominante no debate sobre o conceito do corporativismo. A primeira visão pode ser representada pelo conceito de Schmitter, segundo o qual o corporativismo é

um sistema de representação de interesses no qual as unidades constitutivas são organizadas em um pequeno número de categorias únicas e obrigatórias, não competitivas, organizadas hierarquicamente e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas pelo Estado que concede deliberadamente o monopólio da representação no interior das respectivas categorias.128

A visão do corporativismo como modelo de formação de políticas é dada por Lehmbruch. O autor advoga que o corporativismo, além de funcionar como modelo de articulação de interesses é, antes de tudo, um modelo institucionalizado de formação das políticas.129 De acordo com o autor, existe no

neocorporativismo uma colaboração entre as organizações de interesse, e dessas com o Estado. A finalidade é tanto a articulação e intermediação dos interesses, quanto as alocações imperativas dos valores e a implementação de políticas. Para o autor, esse processo de participação corporativa no policy-making é fundamental para se descrever a estrutura política particular do neocorporativismo de produção de decisões estatais.

127 OFFE & WIESENTHAL, op. cit., p. 68.

128 SCHMITTER, Philippe. Interest intermediation and regime governability in contemporary Western Europe and north America. In: Berger, S. (ed.). Organizing interests in Western Europe: pluralism, corporatism and transformation of politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, recuperado em ARAÚJO & TAPIA, op. cit., p. 17.

129 LEHMBRUCH, G. Introduction: neo-corporativism in comparative perspective. In: Lehmbruch, G. and Schmitter, P. (eds.). Patterns of corporatist policy-making. Beverly Hills and London: Sage Publications, 1982, recuperado em STEPAN, op. cit., p. 18.

Essa parece ser a visão apresentada por Hirst, que advoga a inclusão de práticas corporativistas para o funcionamento da democracia representativa. Não se trata, como esclarece o autor, de tentar fazer do corporativismo uma crítica ou uma alternativa à democracia representativa, mas, sim, de entendê-lo como mecanismos pragmáticos de gestão da economia nacional. Na sua visão, estruturas desenhadas como fóruns corporativos servem para facilitar a consulta (e com isso a comunicação) e a coordenação (e com isso a negociação) entre interesses sociais e órgãos públicos.130 Ao final, resultaria uma orquestração dos interesses políticos, possibilitando a minimização do uso da coerção por parte do Estado. O funcionamento de fóruns corporativos nacionais, promovendo a representação e a negociação entre a indústria, o trabalho e o Estado em alto nível, poderia ter um tratamento quase-formal, com uma exigência parcial de mecanismos institucionalizados. Seu propósito não seria o de legislar ou supervisionar diretamente o governo, como o Parlamento, mas seu objetivo seria antes a consulta, a coordenação da ação econômica e a negociação de ganhos e sacrifícios.131

Hirst parece defender uma posição intermediária entre o corporativismo e o pluralismo quando vislumbra a possibilidade de atuação de grupos de interesse abrangentes, que negociam acordos amplos, como as metas econômicas nacionais. Isso poderia evitar, segundo o autor, os piores defeitos da dominação da política de grupos de interesse por organizações exclusivas, que só defendem os próprios interesses.132 Em outra parte o autor se refere a uma

competição aberta de grupos plurais pela sua influência, com uma mobilidade que pudesse comportar a ascensão e o declínio dos grupos. É necessário entender a sociedade como sistemas fluidos e cambiantes, portanto, a representação funcional e corporativa, para ser eficaz, não pode ser encaixada num molde demasiado formal ou rígido.133 O pensamento de Hirst sobre o corporativismo como forma de reforçar a democracia representativa pode ser resumido como segue:

130 HIRST, Paul Q. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 23.

131 HIRST, op. cit., p. 22. 132 HIRST, op. cit., p. 22. 133 HIRST, op. cit., p. 21.

Defendo a idéia de que o corporativismo pode ser ao mesmo tempo um meio eficaz de gestão relativamente não-coercitiva da economia, através da negociação entre a indústria, o trabalho e o Estado nos níveis nacional, regional e local, e uma forma de representação dos interesses sociais organizados que faz crescer a democracia, no sentido de permitir maior influência popular.134

Entretanto, a idéia que Hirst elabora sobre o corporativismo também pode parecer aquela que o eleva ao nível de uma “terceira via”. Quando o autor argumenta que tanto o planejamento socialista da economia quanto o livre mercado da economia capitalista são incapazes de fornecer estratégias viáveis de gestão da economia, ele naturalmente coloca o corporativismo como uma terceira opção, de maneira alternativa às anteriores. Nas palavras do autor,

se nem o planejamento geral do socialismo nem o livre mercado do capitalismo oferecem estratégias viáveis para a gestão da economia, a alternativa só pode

ser o gerenciamento econômico por meio da coordenação dos grandes interesses

sociais e da orquestração do acordo pela negociação entre os grupos de interesse. Isto implica a representação corporativa dos grandes interesses organizados.135