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CAPÍTULO 1 – GRAMÁTICAS POLÍTICAS: INSTITUIÇÕES NA FORMAÇÃO DO ESTADO

1.2 Formação do Estado: do patrimonialismo ao clientelismo

1.2.1 O patrimonialismo brasileiro

O Estado patrimonial brasileiro, anterior a 1930, foi progressivamente substituído pela crescente burocratização42 característica do

Estado moderno, entendido com Weber como a racionalização e continuidade da administração. Na Era Vargas, um evento que marcou decisivamente o processo

41 NUNES, Edson. A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

42 O processo de construção estatal no Brasil pós-Vargas é estudado em O ex-Leviatã brasileiro a partir do raio-x da burocracia constituída durante grande parte do século XX no país. Wanderley Guilherme dos Santos argumenta que a ação de determinados grupos privados de empresários foi um dos fatores que acabou por levar ao ataque e ao descrédito do Leviatã, que sofreu um profundo definhamento, visível na diminuição dos quadros do corpo de funcionários e do aparelho estrutural do Estado nas últimas décadas. Cf. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O ex-Leviatã

brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

de burocratização do Estado foi a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Esse órgão, previsto na Constituição de 1937, e subordinado à Presidência da República, foi criado em julho de 1938. Sua missão era levar a cabo a reforma administrativa iniciada, com o objetivo de organizar, racionalizar e tornar mais eficiente o serviço público no país. A justificativa de sua criação encontrava-se na defesa da separação entre a irracionalidade presente na política, por um lado, e a racionalidade inerente à administração, por outro. Tal separação poderia, então, mitigar as injunções dos interesses privados e político- partidários. Suas principais tarefas seriam integrar setores da administração pública e promover a seleção e o aperfeiçoamento do pessoal administrativo por meio da adoção do sistema de mérito. Foi desenvolvida uma administração para distinguir o público do privado, o político do administrador público. Sua concepção foi claramente fundada na administração burocrática moderna, racional-legal weberiana. Dessa forma, seus traços marcantes são a centralização das decisões, a hierarquia, as rotinas, o controle dos processos e o recrutamento baseado no mérito.

A instauração da administração burocrática teria sido necessária para suplantar o padrão anterior, baseado na lógica patrimonialista de comando do Estado. No patrimonialismo, o governo é uma extensão do domínio privado do governante, tendo como regra o arbítrio pessoal, legitimado pela tradição imemorial e santificada. O recrutamento de funcionários para a administração patrimonial é realizado nos limites do domínio familiar e pessoal do governante, dentre seus escravos ou servos. A qualificação para o desempenho de cargos é mero exercício do juízo de valor do chefe sobre aqueles que o cercam (funcionários domésticos, partidários ou favoritos). O cargo e a pessoa não têm distinção no patrimonialismo, uma vez que há uma apropriação de funções públicas por pessoas ligadas ao governante. Todos os meios de administração são considerados parte do patrimônio pessoal do detentor do poder e as atividades e funções administrativas tendem a não ser exercidas de forma continuada e sistemática.

O processo de construção estatal brasileiro, segundo Raymundo Faoro, se deu em bases patrimoniais. O contexto econômico era o de um

capitalismo mercantilista de Estado. Nas palavras do autor, o patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como a técnica de operação da economia.43 Sua análise do Estado patrimonial baseia-

se na operação de um corpo de funcionários que ele denominou de “estamento burocrático”. Esse seria um grupamento caracterizado como estado-maior da autoridade pública.44 É o estamento que domina constituindo-se como o governo de uma minoria. Dele saem a classe política e a elite governante. O estamento torna-se progressivamente mais burocrático, para Faoro. Aqui não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas relacionado à apropriação do cargo, carregado de poder próprio. Essa burocratização apressa a separação entre a coisa pública e os bens do príncipe. Naquele momento o Estado ainda não é uma pirâmide autoritária, mas um feixe de cargos, reunidos por coordenação, com respeito à aristocracia dos subordinados.45 No exercício do poder pelo estamento, prevalece no Estado patrimonial a prática prebendária da distribuição de cargos e da concessão de benesses, mercês econômicas, capitanias e postos militares. A prática prebendária, segundo o autor, denota a falta de compromisso da elite com o povo, reforçando a volubilidade do governante, perfil este que promove a instabilidade do sistema.

O patrimonialismo brasileiro pautou-se, dessa forma, pela confusão entre o setor público e o privado, entre o domínio pessoal e o coletivo, entre a casa e o Estado, no mando da coisa pública por figuras como fazendeiros, senhores de engenho e coronéis. O traço patrimonialista do Estado era reforçado por cargos como os de delegados, delegados substitutos, subdelegados e subdelegados substitutos de polícia, criados em 1841. Praticamente toda tarefa coercitiva do Estado no nível local era delegada aos proprietários.46 Mas a

tendência geral era a de reduzir, ou mesmo eliminar, as características patrimoniais da administração para a instauração de uma ordem burocrática de Estado. Um exemplo disso foi a crescente resolução de conflitos por burocratas como juízes de direito e oficiais da polícia. Ainda durante o Império, tal burocracia

43 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo, 2002[1958], p. 823.

44 Idem, p. 63. 45 Idem, p. 102.

46 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual.

é a instância para recurso e julgamento de conflitos, inclusive os gerados pela atuação das autoridades patrimoniais. Na República, por sua vez, a manutenção da ordem era tarefa exclusiva da burocracia. Os delegados e funções congêneres foram transformados em funcionários públicos.

O papel estratégico das elites políticas, do exército e das milícias civis, e da Igreja, no processo de formação do Estado nacional durante o século XIX, é destacado por Trindade.47 As diferentes interações desses três fatores compõem decisivamente, para o autor, o ritmo de implantação do Estado nacional nos dois países analisados. O autor defende a busca de uma perspectiva diversa da usual clivagem entre pressupostos monistas, o que chama de dupla vertente interpretativa, que polarizou as análises dos cientistas sociais brasileiros sobre as relações Estado/sociedade nos últimos anos. Segundo Trindade, a polarização é representada pelo estamento burocrático, de Faoro, e pela privatização do poder pela sociedade agrária, de Sérgio Buarque de Holanda e Nestor Duarte, e redundaria na restrição da possibilidade de reconstruir processos históricos em termos diferentes aos termos dualistas do debate.48

O processo tardio de profissionalização e politização da corporação militar favoreceu o fortalecimento da estrutura estatal no Brasil. A divisão de papéis entre a Guarda Nacional (uma milícia civil) e o Exército propiciou o desenvolvimento de rotinas administrativas nos governos locais, burocratizando permanentemente a então sociedade patrimonial durante praticamente duas gerações. A Guarda Nacional, criada pelo governo durante a Regência, ligou proprietários rurais ao governo. A Igreja também foi importante na formação do Estado brasileiro. O clero exerceu suas atividades como funcionalismo civil em função de sua dependência de recursos do Estado. Desempenhou, assim, o papel de um corpo administrativo amplamente distribuído pelo país no exercício

47 TRINDADE, Hélgio. A construção do estado nacional na Argentina e no Brasil (1810-1900): esboço de uma análise comparativa. Dados, 1985, v. 28, n. 1, p. 61-87.

48 URICOECHEA, Fernando. Coronéis e burocratas no Brasil imperial: crônica analítica de uma síntese histórica. In: NUNES, Edson de Oliveira (org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, recuperado em TRINDADE, Hélgio. A construção do estado nacional..., op. cit. Para a concepção de Sérgio Buarque de Holanda cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil. 3ª ed. Companhia das Letras: São Paulo, 1997 [1936]. Para Nestor Duarte cf. DUARTE, Nestor. A ordem privada e a

de tarefas religiosas, administrativas e políticas. Por fim, as elites políticas brasileiras apresentam um perfil bastante homogêneo. Isso se dá em função do tipo de treinamento por ela recebido, ou seja, sua formação jurídica na Universidade de Coimbra, e mais tarde em Recife e São Paulo, além da experiência administrativa acumulada no aparato de governo. Apesar das diferentes orientações ideológicas entre liberais e conservadores, constata-se uma unidade política nas posições da elite sobre questões gerais como a manutenção da unidade do país, a condenação de governos militares (caudilhescos ou absolutistas), a manutenção da monarquia como forma de governo e a preservação do regime escravocrata.

A importância das elites no processo de formação do Estado brasileiro é o argumento central de José Murilo de Carvalho em A Construção da Ordem.49 Carvalho reconhece as tentativas anteriores de explicação de natureza administrativa, política, social e econômica. São exemplos a centralização/descentralização, a transmigração da corte bragantina para o Rio de Janeiro e o surto mineratório brasileiro do século XVIII. Mas o autor busca uma explicação mais forte para as diferenças – de unidade ou fragmentação, e de estabilidade do seu sistema político – apresentadas pelas colônias portuguesa e espanhola. Sua idéia baseia-se na importância de se estudar o perfil dos responsáveis pelas decisões tomadas à época. Sendo decisões políticas, escolhas entre alternativas, elas sugerem que se busque possível explicação no estudo daqueles que as tomaram, isto é, na elite política.50 As elites são

condicionadas, elas próprias, por fatores sociais e políticos sobre os quais elas têm pouco ou nenhum controle. Carvalho admite que sua explicação não será suficiente para dar conta da complexidade dos fenômenos constituintes do processo de formação do Estado. Entretanto, defende que seu ponto de vista implica negar o determinismo de fatores não-políticos, sobretudo os econômicos, na tomada de decisões políticas. Mas as elites, argumenta, têm um papel fundamental em países nos quais o Estado deve ser o fator preponderante de

49 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

desenvolvimento nacional. Em se tratando de país onde há ausência de uma classe burguesa com poder capaz de regular as relações sociais pelo mercado,

caberia ao Estado, como coube nos primeiros passos das próprias sociedades burguesas de êxito, tomar a iniciativa de medidas de unificação de mercados, de destruição de privilégios feudais, de consolidação de um comando nacional, de protecionismo econômico.51

A homogeneidade das elites foi de fato a explicação encontrada por Carvalho para a singularidade nacional. A burocracia teria peso considerável na composição da elite, formada ainda basicamente pelos magistrados e proprietários oriundos da classe dominante.

O Estado agiria principalmente por meio da burocracia que ele treinava para as tarefas de administração e governo. Essa burocracia podia ter composição social variada, mas era sempre homogênea em termos de ideologia e treinamento.52

O autor entende que o Estado não era um ente separado e dominando a nação, atribuindo tal concepção aos liberais de época e à obra de Faoro.

O Brasil não era uma economia mercantil, como a portuguesa, que pudesse ser governada pela aliança de um estamento burocrático com comerciantes. Era uma economia de produtores agrícolas com mão-de-obra escrava e de criadores de gado com ou sem escravos. As bases do poder tinham que ser aqui redefinidas.53

O Brasil poderia ser explicado em termo de uma “dialética da ambigüidade”, termo emprestado de Guerreiro Ramos. Gostando ou não, diz o autor, a elite política, sobretudo os magistrados, tinha que compactuar com os proprietários a fim de chegar a um arranjo, senão satisfatório, que pelo menos possibilitasse uma aparência de ordem, embora profundamente injusta.54 Assim, o Estado imperial, por causa de sua elite, era um instrumento de manutenção e ao mesmo tempo de transformação das estruturas sociais existentes.

51 Idem, p. 229.

52 Idem, ibidem. 53 Idem, p. 232. 54 Idem, ibidem.