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Os estudos corporativistas latino-americanos nas democracias liberais: vertentes

CAPÍTULO 2 – SURGIMENTO DAS NOVAS GRAMÁTICAS POLÍTICAS: O PROCESSO DE STATE

2.1 A gramática do corporativismo

2.1.2 Os estudos corporativistas latino-americanos nas democracias liberais: vertentes

A constatação corrente de que o corporativismo foi desenvolvido para servir de alternativa às análises pluralistas e marxistas, encontra em Araújo & Tapia quem sustente a formação de um “paradigma corporativista” nas últimas décadas do século XX. Entretanto, segundo os autores, o conceito de corporativismo tem sido empregado muitas vezes de modo frouxo e impreciso para se referir a fenômenos políticos e sociais muito diferentes.103 De fato, se se avaliar o pouco peso atribuído pelos estudos pluralistas e marxistas clássicos ao poder do Estado, rapidamente nota-se convergência entre tais linhas tão díspares em relação aos seus pontos de partida e de chegada. A maior contribuição de Araújo & Tapia, contudo, sem dúvida deve-se ao seu esforço de empreender uma análise que consiga tanto delimitar as fronteiras do tal “paradigma”, quanto lançar luzes sobre o que se poderia identificar como os principais enfoques e trajetórias do conceito. Nesse sentido, a par da dicotômica classificação da aplicação do conceito de corporativismo em estatal e societal, sua análise volta-se ao reconhecimento de diferentes preocupações ou subgrupos dentro de cada um desses dois pólos. Além disso, a primeira abordagem trata de situar o corporativismo nos espaços em que se identifica quer seja uma tradição político- cultural, quer seja uma ênfase nas estruturas de representação da sociedade junto ao Estado: o critério de corte cobre os casos latino-americanos. O segundo grande grupo seria, de outro lado, representado pelos estudos nos quais o corporativismo serve ao propósito de investigar a forma como o sistema político trata a intermediação de interesses e a participação social para a formulação e

102 SCHWARTZMAN, Simon. Bases..., op. cit., p. 52-3.

103 ARAÚJO, Angela M. C. & TAPIA, Jorge R. B. Corporativismo e neo-corporativismo: o exame de duas trajetórias. BIB, Rio de Janeiro, n. 32, 2º semestre, 1991, p. 3.

implementação de políticas públicas: são enfocadas as democracias liberais do período pós-guerra.

O corporativismo como produto da tradição político-cultural ibero- romana é a principal premissa sobre a qual se assentam os estudos da “vertente culturalista”. Araújo & Tapia destacam que a vertente pode ser caracterizada pela utilização de análises comparativas que ressaltam semelhanças com o que se chama de “modelo corporativo”; ênfase na perspectiva histórica da análise e compreensão das singularidades do desenvolvimento político do mundo ibero- latino, caracterizando o que se chama de “terceira via”, alternativa tanto ao capitalismo, quanto ao socialismo; e valorização da categoria Estado – em geral qualificado como autoritário e patrimonialista –, utilizando-a como variável independente. Howard Wiarda,104 indicado como o autor mais representativo da vertente, aponta dois enfoques conceituais distintos para o corporativismo. Apesar de relacionados, o primeiro trata de abordar o aspecto propriamente histórico da manifestação do corporativismo nos regimes dos anos 1930 e 1940. Corporativismo, nesse sentido, é visto como ideologia e instituições datadas historicamente. Já o outro sentido, mais amplo, corresponde à tradição histórico- cultural ibero-latina, corporificada numa forma dominante de organização sócio- política, que também é hierárquica, elitista, autoritária, burocrática, patrimonialista, católica e corporativista.105 Em geral, nos trabalhos culturalistas sobre o corporativismo, predominam análises sobre a durabilidade e persistência das instituições de tradição corporativista no desenvolvimento das sociedades no mundo ibero-latino. Durabilidade e persistência fundadas na capacidade de ajuste e readaptação institucional das realidades do moderno capitalismo nas regiões.

Desse modo, essa vertente enfatiza, de um lado, a continuidade de um padrão político-cultural patrimonial-corporativista que se perpetua (...) e reconhece, por outro lado, a grande variedade de opções e alternativa abertas no interior do modelo corporativista, sua capacidade de se ajustar a diferentes tipos de regimes políticos...106

104 WIARDA, Howard. Corporatism and development in the iberic-latin world: persistent strains and new variations. The Review of politics, v. 36, n. 1, referido em ARAÚJO & TAPIA, op. cit.

105 ARAÚJO & TAPIA, op. cit., p. 6. 106 ARAÚJO & TAPIA, op. cit., p. 6.

Em relação à vertente culturalista do corporativismo, Araújo & Tapia apontam, por fim, quatro sérias limitações, relacionadas ao uso de suas premissas e métodos de análise.

Elas estão relacionadas, em primeiro lugar, à incapacidade de explicar por que contextos culturais diversos como regiões da Ásia e Oriente Médio, de um lado, e América Latina, por outro, têm estruturas similares para representação política de interesses identificada com o corporativismo. Não explica, também, por que existem tão marcantes diferenças da manifestação do corporativismo em diferentes períodos no mesmo país, nem as razões pelas quais há tantas diferenças entre países, que deveriam apresentar um padrão semelhante de desenvolvimento corporativo – pelo fato de se encontrarem em regiões geográficas próximas e contarem com praticamente os mesmos traços de tradição católico-corporativa. Assim, explicações culturais amplas para grandes áreas geográficas prevêem heranças culturais comuns, mas têm dificuldades de dar conta de divergências nos padrões políticos dentro daquela região. Esses seriam os casos, por exemplo, da Colômbia e do Equador, em que a presença da forte cultura ibero-católica não redundou em mesma intensidade das instituições corporativas. Uma terceira limitação está relacionada à crítica ao argumento de que o corporativismo poderia ser considerado como uma “terceira via” de desenvolvimento das regiões ibero-latinas. Neste caso, segundo os autores, há uma leitura acrítica da ideologia corporativista em que se toma “a palavra pelo fato”, ou o discurso ideológico como verdade histórica.107

A quarta e última limitação apontada se deve ao próprio uso da explicação baseada na continuidade cultural, uma vez que muitas vezes ela não encontraria paralelismo com as evidências empíricas, tanto em função de readaptações corporativas, quanto do surgimento de instituições corporativas em países onde antes não se podiam encontrá-las. Na visão de Stepan, essas experiências institucionais corporativistas têm emergido das crises, onde os elementos de descontinuidade são importantes.108 São citados pelo autor exemplos de descontinuidade nos casos do Estado Novo do Brasil, do partido

107 ARAÚJO & TAPIA, op. cit., p. 7-8.

108 STEPAN, Alfred. Estado, corporativismo e autoritarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 80.

revolucionário do México e da experiência militar do Peru, onde foi necessário recriar novas bases hegemônicas de apoio para o Estado, por meio da integração de novos grupos sociais. O elemento de descontinuidade para o surgimento do corporativismo é confirmado, segundo Stepan, pelo fato de as elites desses Estados usarem os modos de participação corporativista como estratégia de implementação de seus projetos de desenvolvimento e reação às crises. Em seu projeto de reconstrução da sociedade, setores importantes dessas elites utilizaram o poder do Estado por motivos mais programáticos do que por motivos culturais tradicionais.109 A crise seria o resultado da percepção pela elite de uma ameaça de fragmentação política e social em determinados contextos históricos. O corporativismo, segundo essa perspectiva, surge como uma reação à crise.

Outra vertente, baseada no papel das características estruturais dos sistemas, enfatiza o papel do Estado, fundamental para a construção de instituições corporativas. As estruturas de representação de interesses vinculam a sociedade ao Estado, e são apontadas como características do corporativismo estatal. Nessa vertente, denominada por Araújo & Tapia de “estruturalista”, seria possível identificar “um certo consenso” na literatura sobre a utilização do conceito de corporativismo como um tipo-ideal. O tipo-ideal do corporativismo não se refere a um ou outro sistema corporativo dado historicamente, mas, antes, constitui um instrumento útil para a análise comparativa na medida em que permite a identificação aproximada dos diferentes casos.110 Nesse sentido, Stepan recomenda cautela para a aplicação do conceito de corporativismo, nunca devendo-se associá-lo a uma característica totalizante dos sistemas políticos, pois, segundo o autor, nenhum sistema político até hoje tem se aproximado do apoio exclusivo nos mecanismos corporativistas para realizar todas as funções políticas chave.111 Sua utilidade é particularmente visível para o reconhecimento dos diversos tipos de corporativismos, presentes em contextos e realidades variados, ou seja, sua aplicação pode propiciar a identificação de formas variadas desses arranjos institucionais que surgem em diferentes momentos históricos e convivem com diferentes regimes políticos.112 As

109 STEPAN, op. cit., p. 81.

110 ARAÚJO & TAPIA, op. cit., p. 9. 111 STEPAN, op. cit., p. 95.

diferenças do tipo-ideal do corporativismo em relação ao pluralismo seriam marcadas pela sua aproximação a sistemas de representação de interesses constituídos de unidades não-competitivas, autorizadas e supervisionadas pelo Estado.

A vertente estruturalista de estudos latino-americanos é notadamente associada ao corporativismo estatal. As associações de interesse são criadas, promovidas e controladas pelo Estado. No corporativismo estatal, também chamado de autoritário, as representações do capital e do trabalho são freqüentemente subordinadas ao poder do Estado, que as tutela e condiciona o seu comportamento. A função do corporativismo de tipo estatal é a busca pela unidade de interesses dos atores, para a cooperação entre classes e setores sociais distintos com o Estado. Nele ocorre uma convergência entre os espaços público e privado, na medida em que ocorre, por um lado, uma “publicização” das entidades representativas privadas, através de seu reconhecimento e tutela pelo Estado, fazendo com que elas adquiram um caráter semi-público ou quase- público e, por outro lado, o acesso destas no âmbito do aparelho estatal, promovendo uma espécie de privatização da razão e dos interesses do Estado.

Uma conseqüência importante da utilização da noção estruturalista do corporativismo está presente na tendência de encará-lo como não mais do que uma característica de determinados setores de sistemas políticos, que apresentam, em menor ou maior medida, um padrão institucionalizado de relacionamento corporativista. Essa tendência distancia-se da visão presente na vertente culturalista, que chega a considerar o corporativismo como um tipo específico de regime político. A visão de Stepan alinha-se a de Collier e Collier, que mostram o corporativismo não como um “fenômeno que esteja presente ou ausente”, mas pelo contrário, como uma “série de características que podem estar presentes ou ausentes em vários graus”.113 Stepan conclui que estudos sobre os sistemas políticos corporativistas devem utilizar suplementarmente outras estruturas analíticas (além do corporativismo), como a máquina ou a política

113 COLLIER, David & COLLIER, Ruth Berins. Who does what, to whom, and how: toward a comparative analysis of Latin American corporatism. In: MALOY, James (ed.). Authoritarianism and

corporatism in Latin America. Pittsburgh: University of Pittsburg Press, 1977, pp. 489-512,

burocrática, as redes de clientela, ou a complexa organização dos militares. Isso se deve ao fato de o corporativismo ser encarado como um fenômeno setorial

parcial do sistema político global.114