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Reforma regulatória: proposta de criação das agências autônomas

CAPÍTULO 3 – REFORMA DO ESTADO DA DÉCADA DE 1990: AS AGÊNCIAS REGULADORAS

3.1 Regulação no Brasil

3.1.2 Reforma regulatória: proposta de criação das agências autônomas

Embora o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado enfatize a necessidade de regulação dos mercados, o modelo de Agências Reguladoras não foi contemplado na sua elaboração. Na realidade, as agências reguladoras surgem, enquanto proposta, em 1996.173 Para a implantação da administração

pública gerencial era necessária a instituição de agências executivas e de agências reguladoras, chamadas genericamente de “agências autônomas”.174

Ao se falar em agências autônomas, é preciso estabelecer a diferenciação entre as agências executivas e as agências reguladoras. Segundo Bresser Pereira, as agências executivas diferenciam-se das reguladoras porque são

173 SANTANA, Ângela. Agências executivas e agências reguladoras – o processo de agencificação: pressupostos do modelo brasileiro e balanço da experiência. In: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Balanço da reforma do Estado no Brasil: a nova gestão pública. Brasília: MP/SEGES, 2002, p. 76.

174 “As atividades exclusivas de Estado deverão ser em princípio organizadas através do sistema de ‘agências autônomas’”. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Da administração pública burocrática à gerencial, op. cit., p. 259.

entes públicos mais autônomos em relação ao governo, uma vez que a elas compete cumprir políticas de Estado, de caráter mais amplo e permanente, em defesa do cidadão, não devendo, por isso, estar subordinadas a prioridades e diretrizes de um governo específico. 175

Dessa forma, no caso das agências reguladoras, os dirigentes detêm mandato e devem ser aprovados pelo Congresso. Isso não ocorre com os dirigentes das agências executivas, que podem ser nomeados livremente pelo Presidente da República. Portanto, as agências reguladoras são mais autônomas do que as agências executivas, na medida em que a autonomia das primeiras deriva do fato de executarem políticas permanentes de Estado, enquanto as últimas devem realizar políticas de governo.176 O tema das agências executivas mereceu tratamento em documento homônimo, um dos Cadernos do MARE.177 A criação das agências reguladoras, por seu turno, comporia um importante passo do que se convencionou chamar de reforma regulatória.

Um dos principais documentos oficiais que contém a justificativa para a criação das agências reguladoras é Construção do Marco Legal dos Entes Reguladores, uma recomendação aprovada pelo Conselho de Reforma do Estado (CRE), em maio de 1996. A partir de uma visão sobre um aparato regulatório enorme, obsoleto, burocratizante e, em essência, intervencionista, a recomendação propugna a formulação de uma política regulatória que dê consistência e coerência às propostas de governo, objetivando a definição de um padrão de marco para a criação ou reforma de agências reguladoras. Para dar cabo a tal proposta, diagnosticou-se a necessidade de estabelecimento de critérios gerais para a criação de entidades de fiscalização e regulação de serviços públicos. 178

175 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado para a Cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo/Brasília: Ed. 34/ENAP, 2002, p. 226.

176 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado para a Cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo/Brasília: Ed. 34/ENAP, 2002, p. 225.

177 BRASIL. Agências executivas. Cadernos Mare da reforma do Estado. Caderno n. 9. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Brasília, 1997.

178 BRASIL, Construção do Marco Legal dos Entes Reguladores. Recomendação de 31 de maio de 1996 do Conselho de Reforma do Estado. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Brasília, 1996.

Assim, essas típicas agências reguladoras de serviços públicos teriam como tarefas precípuas o controle da qualidade do serviço e da sua regularidade, exercido por meio da fiscalização, assim como assegurar aos usuários o atendimento a seus direitos ao serviço adequado e a uma tarifa módica (ou no mínimo razoáveis).179 Tais agências regulatórias de serviços públicos

teriam então um duplo papel, qual seja, de estruturar mercados onde antes só havia a atuação estatal, e de garantir que esses mercados se pautem por regras predefinidas. A garantia de concorrência, segundo Salgado, é o parâmetro que sempre deve guiar a atuação das agências nessas funções.180 O incentivo aos investimentos para o desenvolvimento econômico, a promoção do bem-estar dos consumidores e usuários e o estímulo à eficiência econômica seriam as funções da regulação exercida pelas agências.181 A Recomendação do CRE aponta um rol de princípios para atuação de tais entes reguladores, bem como objetivos a serem seguidos para uma boa função regulatória (ver Quadro 2). O documento dispõe, ainda, sobre a necessidade de definição das características das agências, apontando formatos institucionais a serem utilizados na criação de tais entes por meio de projetos de lei.

QUADRO 2 - Princípios para atuação dos entes reguladores

Princípios para entidades de fiscalização e

regulação de serviços públicos Objetivos da função regulatória

• autonomia e independência decisória do ente regulador;

• ampla publicidade das normas pertinentes ao ente regulador, de seus procedimentos e decisões e de seus relatórios de atividade, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas em lei;

• celeridade processual e simplificação das relações mantidas entre o ente regulador e os consumidores, usuários e investidores; • participação de usuários, consumidores e investidores no processo de elaboração de normas regulamentares, em audiências públicas, na forma que vier a ser regulada em lei;

• limitação da intervenção do Estado, na prestação de serviços públicos, aos níveis indispensáveis à sua execução.

• promover e garantir a competitividade do respectivo mercado;

• garantir os direitos dos consumidores e usuários dos serviços públicos;

• estimular o investimento privado, nacional e estrangeiro, nas empresas prestadoras de serviços públicos e atividades correlatas;

• buscar a qualidade e segurança dos serviços públicos, aos menores custos possíveis para os consumidores e usuários;

• garantir a adequada remuneração dos

investimentos realizados nas empresas prestadoras de serviço e usuários;

• dirimir conflitos entre consumidores e usuários, de um lado, e empresas prestadoras de serviços públicos;

• prevenir o abuso do poder econômico por agentes prestadores de serviços públicos.

Fonte: Adaptado de BRASIL, 1996.

179 WALD e MORAES, 1999, op. cit., p 157.

180 SALGADO, Lucia Helena. Agências regulatórias na experiência brasileira: um panorama do atual desenho institucional. Texto para discussão n. 941. Rio de Janeiro: IPEA, 2003, p. 21.

As agências reguladoras surgem, pois, como produto da reforma regulatória. Apresentam-se, ainda, como instrumento para a atuação do Estado na regulação de mercados, notadamente naqueles casos em que serviços públicos passaram a ser exercidos porque setores haviam sido privatizados.

A liberalização de mercados e as privatizações ensejaram a defesa da necessidade de um aparato estatal que possibilitasse o planejamento a longo prazo, a coordenação das decisões privadas e o zelo ao cumprimento das regras para o bom funcionamento desses mercados. Tais mecanismos se prestariam a aumentar a confiança no ambiente regulatório possibilitando a redução do risco regulatório e dos ágios sobre os mercados financeiros.182

A previsibilidade de regras para garantir a estabilidade do mercado é um dos objetivos da chamada governança regulatória. É hoje consabido que um dos fatores mais importantes para a atração do investimento direto é a confiança depositada no ambiente regulatório. A proposta de constituição das agências cumpriria este papel, ou seja, melhorar a governança regulatória, sinalizando o compromisso dos legisladores de não interferir no processo regulatório e tranqüilizando os investidores potenciais e efetivos.183 Wald e Rangel, ponderam que se devem ter claras e precisas as normas de atuação desses órgãos regulatórios, de forma a trazer segurança e confiança à coletividade interessada, direta ou indiretamente, na atividade concedida, que lhe compete regular e fiscalizar.184

Destaca-se que a necessidade de previsibilidade protege tanto os investidores quanto os usuários do serviço de concessão. Essa estabilidade pressupõe, portanto, uma governança regulatória com autonomia e sem

ingerência política ou corporativa, que faça valer tanto as obrigações como os

182 PIRES, José Claudio Linhares; GOLDSTEIN, Andrea. Agências reguladoras brasileiras: avaliação e desafios. Rev. do BNDES, v. 8, n. 16, p. 3-42, Rio de Janeiro, dez. 2001, p. 6.

183 Idem, ibidem.

direitos dos operadores dos serviços concedidos.185 As agências criadas até

então no Brasil, aponta Salgado,186 desempenham funções típicas dos poderes

Executivo (concessão e fiscalização), Legislativo (criação de regras e procedimentos com força normativa em sua jurisdição) e Judiciário (julgamentos, imposição de penalidades, interpretação de contratos e obrigações). Para Nunes, as agências reguladoras, com tal vastidão de atividades, configuram-se como verdadeiras entidades híbridas (...) de funções legislativas, executivas e judiciárias, como se fossem um ‘quarto poder’ emergente.187

Ao questionar a legitimidade das agências reguladoras para exercerem a função regulatória no direito brasileiro, Di Pietro argumenta que o surgimento de tais entidades na administração pública copiou o modelo norte- americano somente no que respeita a delegação de parcela de poder, não no procedimento de criação do direito.188 Resta, assim, às agências reguladoras, uma sombra de dúvida sobre a constitucionalidade para o exercício de sua função regulamentar. Nesse aspecto, deve-se considerar que nos EUA, além das decisões judiciais, os regulamentos expedidos pelas agências reguladoras constituem-se como fonte do direito norte-americano.189

Nunes considera que o legislativo deu-lhes um mandato com contornos imprecisos.190 A imprecisão do mandato das agências reguladoras de

serviços públicos tem origem já na Lei das Concessões (Lei n 9.074, de 7 de julho de 1995). Embora esta discipline concessões e permissões de serviços públicos, não versa expressamente sobre os princípios, as diretrizes e as regras gerais para a operação das agências reguladoras. Dessa forma, deixou indefinidos aspectos relativos às suas funções, objetivos e principais atribuições, à sua estrutura organizacional e de custeio, à formatação jurídica do órgão e do seu

185 SALGADO, Lucia Helena e MOTTA, Ronaldo Seroa da. Introdução. In: SALGADO, Lucia Helena e MOTTA, Ronaldo Seroa da. (ed.) Marcos regulatórios no Brasil: o que foi feito e o que falta fazer. Rio de Janeiro: IPEA, 2005, p. 5. (Destaques meus).

186 SALGADO, 2003, op. cit., p. 22. 187 NUNES, 2001, op. cit., p. 10. 188 DI PIETRO, 2004, op. cit., p. 37.

189 CARVALHO, Ricardo Lemos Maia L. de. As agências de regulação norte-americanas e sua transposição para os países da civil law. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (org.). Direito

Regulatório: temas polêmicos. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 383.

grau de independência em relação ao Poder Público.191 Por isso, há uma

premente necessidade de se melhor delimitar as competências, atribuições e posicionamentos, dentro da estrutura do Estado, como observa Salgado, para quem mandatos imprecisos e vagos são da natureza das agências regulatórias.192

Essa imprecisão seria condição necessária para permitir a independência nas decisões das agências com relação a pressões provenientes do governo ou do mercado. Nesse sentido, as leis que determinam as competências de agências deixam usualmente em aberto as formas como as agências deverão alcançar os objetivos de eficiência e eqüidade.193 Embora considere aceitável que as agências reguladoras exerçam essa miríade de funções de naturezas executiva, legislativa e judicante, a autora ressalva que o importante é que tais funções sejam exercidas dentro de limites predefinidos e sob o controle da sociedade.194

É patente que ainda não há no Brasil um marco regulatório claro a ser seguido pelas agências reguladoras, uma vez que a criação das agências prescindiu, até o momento, de um verdadeiro regime regulatório amplo, que desse sentido global à nova instância regulatória.195 Outro problema é o atual quadro de pessoal diverso e não profissionalizado das agências reguladoras federais brasileiras. Contratações sem concurso público, por meio de cargos comissionados ou mesmo terceirização são comuns nas estruturas das agências. A multiplicidade de vínculos e a incerteza na permanência dos funcionários dificultam as possibilidades de investimento em qualificação e especialização do corpo funcional, prejudicando o desempenho do ente regulador nas suas atribuições.

Tais fatos potencializam o risco de captura pelo estabelecimento de vínculos e compromissos com atores externos à agência, o que põe em xeque a independência do agente regulador, uma das razões de existência das entidades reguladoras na Administração Pública brasileira. Acordos de natureza clientelística e corporativista ocorrem mais comumente em ambientes de menor

191 WALD e MORAES, op. cit., p. 153. 192 SALGADO, 2003, op. cit., p. 22. 193 Idem, p. 17.

194 Idem, p. 18.

compromisso e formalização. Como destaca Considera, os cargos das agências reguladoras são ainda hoje preenchidos atendendo-se mais a pressões políticas do que a qualidades técnicas das pessoas, o que, muitas vezes, acaba aparelhando essas instituições com apadrinhados partidários sem qualquer conhecimento técnico na área.196